114 - Política criminal e a Lei nº 11.343/2006: nova Lei de Drogas, novo conceito de substância causadora de dependência

 

 
JOÃO JOSÉ LEAL - Professor de Direito
 

1.         Introdução – Duas Leis Conflitantes e Necessidade de uma Nova Lei de Drogas

 

Após 30 anos de vigência e diversas tentativas de mudança, a Lei 6.368/76 acabou revogada. Para muitos penalistas, estava ela superada pelas mudanças ocorridas na sociedade brasileira e não servia mais – como instrumento de controle penal eficaz e adequado - para os fins a que se propunha: prevenção, tratamento e repressão aos usuários e traficantes de substância entorpecente.

 

Revogada, também, está a Lei 10.409/2002,[1] aprovada para substituir sua congênere da década de 1970. Objeto de inúmeros vetos, que lhe suprimiu toda a parte relativa aos crimes e penas, a Lei 10.409/02 acabou promulgada pela metade. Portanto, cumpriu, parcialmente, sua função revogadora e de substituição de sua irmã mais velha, com a qual teve de repartir a função de prevenir e reprimir  a conduta do uso e do tráfico ilícito de substância entorpecente, até o momento da vigência da atual lei. Seu texto deformado, desfigurado, lacunoso e marcado por diversas imperfeições técnicolegislativas, certamente, não deixará saudade.

 

Em face da situação extremamente confusa, causada pela vigência concorrente e simultânea de dois textos conflitantes e assimétricos, não restava outra alternativa ao Congresso Nacional senão a de aprovar uma nova lei que viesse a ordenar, de forma completa e unificada, esta matéria penal. Daí a aprovação da atual Lei nº 11.343/2006, de 23.08.2006, publicada no dia seguinte e que denominaremos de Lei de Drogas.

 

Neste artigo, e de forma breve, abordaremos uma das inovações trazidas pela atual Lei de Drogas: a nova nomenclatura jurídicopenal utilizada para denominar a substância entorpecente.

 

 

2.         Nova Nomenclatura para as Substâncias Entorpecentes

 

No âmbito da semântica jurídicopenal, merece ser ressaltada a opção da nova lei pelo termo drogas, em vez da expressão substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica. Assim, no preâmbulo, estão definidos os seus fins maiores e o abandono dessa expressão, já superada no discurso médicocienntífico e jurídico: instituir o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescrever medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelecer normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas.

 

No parágrafo único do art. 1º, após reiterar os termos programáticos previstos na ementa preambular, a nova lei estabelece textualmente:

 

Para fins desta Lei. Consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.

 

Temos, a partir de agora, um conceito legal desta categoria jurídica chamada drogas, que não ficou restrito à categoria dos entorpecentes, nem das substâncias causadoras de dependência física ou psíquica. Drogas serão todas as substância ou produtos com potencial de causar dependência, com a condição de que estejam  relacionadas em dispositivo legal competente.

  

A Lei 10.409/02 já havia feito esta mesma opção terminológica, mas como todo o seu Capítulo III, que tratava dos crimes e das penas, foi vetado, permaneceu vigendo o texto penal da Lei 6.368/76 e, em conseqüência, a velha expressão vinha se mantendo na linguagem do Direito Positivo.

 

A verdade é que o de termo drogas é de uso corrente no discurso acadêmicocientífico. Isso já poderia justificar a opção modificadora. Mas é, também, a nomenclatura preferencial da Organização Mundial de Saúde – OMS, que há muito abandonou o uso dos termos ou das expressões “narcóticos”, “substâncias entorpecentes” e “tóxicos”.[2] Além disso, a Convenção Única sobre Entorpecente, da ONU, promulgada em 1961 e a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de Viena, de 1988, ao se referirem às substâncias tóxicas ou entorpecentes utilizam simplesmente o termo drug.

 

Trata-se, portanto, de nomenclatura que se consolidou mundialmente. E não podemos esquecer que nossa legislação sobre uso e tráfico ilícito de drogas, desde a década de 1960, tem sido baseada nas normas e recomendações constantes dessas duas Convenções internacionais, como também em outras diretivas emanadas da ONU e da Organização Mundial da Saúde.

 

Por outro lado, é interessante notar que a literatura jurídicopenal brasileira sobre o tema tem preferido o termo “tóxicos”. Pode-se dizer que o vocábulo “tóxicos” tem sido utilizado de forma corrente na linguagem jurídica brasileira, para se referir às substâncias até então legalmente denominadas de “substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica”.[3]

Em segundo lugar, mas de forma crescente, o termo “drogas” vem sendo utilizado para intitular obras monográficas sobre a matéria.[4] Verifica-se que, com a publicação da nova lei, o termo drogas ganhou a preferência da doutrina, nos textos da produção científica recente.

 

São raras as obras com o título de “entorpecentes”. Entre estas, encontra-se a obra de João Bernardino Gonzaga, que reconhece a dificuldade e impropriedade de empregá-lo como conceito operacional, “para designar certa categoria de substâncias nocivas à saúde.” E admite que o emprego da “palavra ‘entorpecente’ se adapta mal, ou não se apta de todo à idéia que ela deve aqui encerrar”.[5] É curioso verificar que o próprio autor admite que o termo “entorpecentes” não é adequado para denominar o objeto estudado.

 

Na verdade, a divergência terminológica decorreu da opção feita quando da tradução oficial dos textos das referidas convenções internacionais para a Língua Portuguesa.[6] Se pesquisarmos o texto oficial em Inglês, podemos constatar que a palavra drug, utilizada em todo o texto convencional, foi traduzida, para o texto em Língua Portuguesa, por substância entorpecente ou, simplesmente, entorpecente, quando poderia ter sido drogas. Com a oficialização da expressão, é compreensível que a Lei 6.368/76 tivesse optado pelo uso da expressão substância entorpecente e não drogas

 

Por isso, era necessário e válido o ajuste terminológico.

 

 

3. Drogas que não São Necessariamente Entorpecentes

 

Tal ajuste terminológico era necessário, também, para eliminar de vez um foco de divergência, pois nem todas substâncias causadoras de dependência podem ser classificadas como entorpecentes, como parecia indicar a lei anterior. Além disso, passou-se a entender que o essencial é o caráter de nocividade à saúde da substância tóxica ou entorpecente e de seu potencial para causar dependência, independentemente do resultado.

 

Como a Lei 6.368/76 utilizava a expressão substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, havia discussão, na doutrina e na jurisprudência, sobre a possibilidade de determinada substância, embora não relacionada oficialmente como entorpecente, pudesse causar tal dependência e, em conseqüência ser considerada como objeto material do crime de tráfico.[7]

 

Não se pode concordar com a crítica de que o engessamento oficial e burocratizado do rol das drogas proibidas deve ser evitado, sob o argumento de que pode ser fator de insegurança e de impunidade. Afirma-se que a atividade relacionada à droga é dinâmica e se transforma com muita rapidez para criar sempre novas espécies de drogas, que não estariam necessariamente arroladas no ato normativo oficial, por natureza estático e de difícil atualização de sua pauta descritiva das drogas nocivas à saúde pública. E isto poderia acarretar prejuízos à ordem jurídica e à segurança coletiva. Para essa corrente doutrinária, melhor seria deixar na esfera do poder discricionário do juiz a tarefa de, em cada caso concreto e com base no laudo pericial, decidir sobre a natureza nociva à saúde da droga.

 

É o entendimento de Vicente Greco Filho. Rejeitando a possibilidade de qualquer forma de ofensa ao princípio da legalidade e da liberdade individual, afirma que a melhor solução seria deixar “ao laudo a identificação da capacidade de causar dependência no caso de não estar a substância relacionada”. E justifica sua posição, com o seguinte argumento: “A interpretação de que as substâncias não relacionadas também poderiam determinar a incidência penal desde que causem dependência física ou psíquica resolveria o problema da chamada ‘psicofarmacologia clandestina’. Se o desvio de destinação, ou as combinações de drogas feitas pelos próprios viciados, tornarem a substância apta a causar dependência física ou psíquica, o delito passaria a existir”.[8]

 

Esta, no entanto, é uma posição hoje completamente superada, seja na doutrina, seja na jurisprudência, cujo entendimento converge para defender a solução legal de que a droga esteja taxativamente descrita na Portaria ministerial para o fim de se estabelecer o juízo positivo de tipicidade da conduta. É a solução que melhor se coaduna com o princípio da estrita legalidade.

 

Na verdade, a própria Lei 6.368/76, com a disposição contida em seu artigo 36, já havia  colocado termo a essa discussão. A atual manteve idêntica orientação, estabelecendo que a substância configuradora do tráfico ilícito deve estar necessariamente prevista na relação oficial publicada pelo órgão competente do Ministério da Saúde. Neste sentido, o art. 66 da atual lei, em consonância com o referido parágrafo único, do art. 1º, é taxativo ao definir como “drogas as substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maior de 1998.”

 

Trata-se, portanto, de norma penal em branco, cujo preceito deve ser complementado por norma de natureza extrapenal, no caso a referida Portaria do Serviço de Vigilância Sanitária, do Ministério da Saúde. Assim sendo, se for constatada a existência de alguma substância entorpecente não relacionada na Portaria nº 334, por força do princípio da estrita legalidade, sua produção, comercialização, distribuição ou consumo não constituirá crime de tráfico ou de porte para consumo pessoal.

 

 4. Considerações Finais

        

Para finalizar, vale reiterar a afirmativa de que era necessário e válido o ajuste terminológico. O termo drogas, agora adotado, é mais claro e objetivo e menos suscetível de complicação, no que concerne à hermenêutica conceitual. Afinal, a antiga expressão substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica não correspondia mais ao verdadeiro conceito médicocientífico, capaz de aglutinar todos os produtos e substâncias causadoras de dependência.

 

Pode-se dizer que, com a atual Lei de Drogas, nosso direito positivo está devidamente ajustado ao discurso internacional e em harmonia com a nomenclatura utilizada nos documentos da ONU e da OMS, ao menos em termos conceituais e de linguagem jurídicopenal.

 

Quanto à eficácia de suas normas para atingir o fim a que se propõe – reinserção social dos usuários e dependentes e de prevenção e repressão ao tráfico ilícito de drogas – é claro que tão relevante e altruístico propósito éticopolítico e jurídico não dependerá apenas de seu correto conceito de drogas.

 

 
JOÃO JOSÉ LEAL é livre docente, doutor em Direito Penal; professor do curso de pós-graduação em Ciência Jurídica – CPCJ/UNIVALI; ex-procurador geral de Justiça de SC; ex-diretor do CCJ/FURB e associado do IBCCrim e da AIDP.

 

 

 

Bibilografia

 

BEZERRA  FILHO. Aluízio. Lei de Tóxicos Anotada e Interpretada pelos Tribunais. Curitiba: Juruá, 1999.

DELMANTO, Celso. Tóxicos. São Paulo: Saraiva, 1982.

GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos – Prevenção – Repressão. São Paulo: Saraiva, 1996.  GONÇALVES. Vitor Eduardo Rios. Crimes Hediondos, Tóxicos, Terrorismo Tortura. São Paulo: Saraiva, 2001.

GRAÇA, Jaime Ribeiro da. Tóxicos. Rio de Janeiro: Renes, 1971.

GUIMARÃES. Isaac Sabbá. Tóxicos. Comentários, Jurisprudência e Prática. Curitiba: Juruá, 2003.

MENA BARRETO, João de Deus Lacerda. Estudo Geral da Nova Lei de Tóxicos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1988. 

PACHECO, José Errani de Carvalho. Tóxicos, Prática, Processo e Jurisprudência. Curitiba: Juruá, 2002.

RANGEL, Lei de Tóxicos.  Rio de Janeiro: Forense, 1978.

SILVA, Edevaldo Alves da. Lei de Tóxicos Anotada e Interpretada pelos Tribunais. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1979.

SILVA, Jorge Vicente. Tóxicos. Manual Prático. Curitiba: Juruá, 2006.

 

 

 

 

 

 



[1] Cabe ressaltar que, na verdade, essas duas leis penais terão vigência até o término do  prazo de vacatio legis, previsto na nova lei, que é de 45 dias e cujo termo final acontecerá no dia  07.10.2006.  Só então, terá vigência a nova Lei 11..343/06 e revogadas estarão as Leis 6..368/76 e 10.409/02.

[2] GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos – Prevenção – Repressão. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 4. Ver, também, GONZAGA, João Bernardino.Entorpecentes. Aspectos Criminológicos e Jurídico-Penais. São Paulo: Max Limonad, 1963,  p. 34, N..P. nº 2.

[3] Pesquisa sobre a produção científica brasileira comprova a afirmação da preferência de nossos autores pelo termo “tóxicos”. São as seguintes, as obras monográficas editadas e que conseguimos catalogar: BEZERRA  FILHO. Aluízio. Lei de Tóxicos Anotada e Interpretada pelos Tribunais. Curitiba: Juruá, 1999. DELMANTO, Celso. Tóxicos. São Paulo: Saraiva, 1982. GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos – Prevenção – Repressão. São Paulo: Saraiva, 1996.  GONÇALVES. Vitor Eduardo Rios. Crimes Hediondos, Tóxicos, Terrorismo Tortura. São Paulo: Saraiva, 2001. GRAÇA, Jaime Ribeiro da. Tóxicos. Rio de Janeiro: Renes, 1971. GUIMARÃES. Isaac Sabbá. Tóxicos. Comentários, Jurisprudência e Prática. Curitiba: Juruá, 2003. MENA BARRETO, João de Deus Lacerda. Estudo Geral da Nova Lei de Tóxicos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1988.  PACHECO, José Errani de Carvalho. Tóxicos, Prática, Processo e Jurisprudência. Curitiba: Juruá, 2002. RANGEL, Lei de Tóxicos.  Rio de Janeiro: Forense, 1978. SILVA, Edevaldo Alves da. Lei de Tóxicos Anotada e Interpretada pelos Tribunais. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1979. SILVA, Jorge Vicente. Tóxicos. Manual Prático. Curitiba: Juruá, 2006.

[4] Com esta nomenclatura, podem ser referidas as seguintes obras: BOTELHO, Valterson.Por Que Drogas? Rio de Janeiro: J. Di Giorgio Ed., 1984. SANCHEZ,  Amauri Tonucci e outros. Drogas e Drogados. O Indivíduo, a Família, a Sociedade. São Paulo: E..P.U., 1982.

[5] GONZAGA, João Bernardino. Ob. cit.,  p.33.

[6] A Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 foi promulgada pelo Decreto presidencial nº 54.216, de 27.08.1964. Esta Convenção, que pode ser considerada como a carta normativa internacional magna em matéria de uso e tráfico ilícitos de drogas, teve seu texto “ fortalecido”, c omplementado e atualizado  pela da Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas, de Viena, de 20.12.1988. Esta foi promulgada pelo Decreto nº 154, de 26.06.1991.

[7] Ver, sobre o assunto: GRECO FILHO, Vicente.Ob. cit.,  p. 87-94.

[8] Ob. cit.,  p. 90-1.



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