110 - Experiência jurídica, prudência e “arte do bom e do eqüitativo”

 
EMERSON IKE COAN - Assistente Jurídico
 

 

O termo “experiência” (do latim “experientia, ae”, no sentido de “prova, ensaio, tentativa”) compreende tanto o lado subjetivo como o objetivo de uma realidade complementar, isto é, o ato de experienciar, ou a experiência ‘a parte subjecti’, bem como aquilo que se põe ao final como experenciado, ou a experiência ‘a parte objecti’. É preferível o verbo “experienciar” ao “experimentar”, porquanto este último ao gerar o substantivo “experimentação”, numa apreciação semântica conjunta cobre mais propriamente o campo da experiência natural ou do ‘mundo das coisas’, especialmente quando traduz o processo mimético de produção ou reprodução, por exemplo, de um fenômeno físico, graças ao artifício de reproduzi-lo para a observação de suas causas e a captação das leis que o regem, e sobre àquele primeiro verbo, por sua vez, além de se referir mais propriamente ao ‘mundo do homem’ ou da “consciência”, guarda um sentido originário de “vivência” direta da realidade, de algo que é posto ou pelo menos subentendido como sendo distinto, mas não separável, da pessoa que a observa e a examina, qualquer que seja o fim visado, ético, estético ou científico. Está aí assentado o pressuposto da experiência no campo da ética, e das ciências sociais em geral, correlacionada, pois, ao sentido amplo de cultura. [1]

 

Seu processamento dá-se em função de “causas motivacionais”, por certo que o sujeito, de acordo com o seu objetivo, faz “escolhas” ou “opções” em relação ao objeto que deve ser conhecido, e disso resulta o afastamento de qualquer posicionamento que se diga puramente ‘objetivo’, ‘neutro’ ou ‘imparcial’, uma vez que aquelas “não podem ser estatisticamente ou numericamente objetivas, porque dotadas tão somente de ‘objetividade de sentido’, somente captável mediante juízos de plausibilidade fundados na convergência temporal e na correlação lógica entre causas motivacionais.” [2] A ressalva é a de que, se não existe uma objetividade pura, não se quer proclamar ao reverso uma subjetividade pura, como sinônimo de irracionalidade ou arbítrio imprevisível.

 

Significa dizer apenas que não se trata de um apego predominante a regularidades lógico-formais, mas valorativas, ao se preocupar não propriamente com a verdade, mas com a verossimilhança, para que diante de uma “questão” (implícito o elemento “dubium”) se possa optar (“decidir”) por uma solução adequada.

 

De tal pressuposto resulta que o homem, como ‘ser histórico’, vive o processo contínuo de objetivação da intencionalidade valorativa, o que implica, portanto, uma existência de contínuo conhecimento e escolha (nunca racionalmente certa ou verdadeira, mas razoável ou plausível), nesse fluir complementar entre “subjetividade-objetividade”, “consciência-mundo”, “pensamento-ação”, que é o mundo da cultura.

 

Algo haverá sempre a ser convertido em objeto e, ao mesmo tempo, algo haverá de atualizar-se no tocante à subjetividade por meio de sínteses empíricas que se ordenam progressivamente no processo cognoscitivo, que, no plano da experiência (o mundo natural da vida ou do viver comum: Lebenswelt [3]) é o liame que cada vez mais projeta a natureza no campo sempre aplicável e aberto da cultura, na qual referida unidade concreta e dialética encontra correspondência entre “valor e realidade”, e no plano jurídico deve ser compreendida como “direção constante para a garantia de algo” [4].

 

Assim, o ato do conhecimento é um ato cultural “no instante mesmo em que se pensa algo, algo se objetiviza como um elemento transubjetivo, que, por mais elementar que seja, compõe o mundo da cultura” e por isso mesmo Reale reconhece na modernidade um ‘a priori’ cultural, “como condição de objetivização”, pela qual “ao mesmo tempo em que intelectivamente ordena o mundo disperso e confuso das impressões sensoriais, o torna objetivo. Na raiz do conhecimento há, pois, subjetivização, objetivização e, como resultado imediato, cultura.” [5]

 

O mundo cultural é expressão de ‘intencionalidades objetivadas’ do homem, na sua ‘possibilidade de atuação infinita e livre’, no qual os bens culturais possuem uma natureza binária: ‘são’ enquanto ‘devem ser’ (‘realidades’ referidas a ‘valores’), e, em razão disso, existem tão-somente na medida em que valem para algo.

 

O jurista coevo deve enraizar a objetividade científica na sua subjetividade viva, pontuada sócio-histórica e culturalmente.

 

Prende-se isso à concepção de que o “Direito” é uma realidade histórico-cultural que se constitui e se desenvolve em função de exigências axiológicas da vida humana, examinando-se, pois, as condições não apenas lógicas de seu estudo, mas também éticas, vendo-o “como Experiência”:

 

“em virtude do reconhecimento que os homens vão, paulatinamente, fazendo dos diversos valores, verificaremos que o Direito constitui fenômeno singular de ‘especificação de garantia’ em benefício de todos os bens culturais. Ao passo que cada bem cultural tende à realização de determinados valores, ou traduz uma integração de valores distintos, o Direito é o único bem que visa a pura garantia de realização de todos e cada um dos demais valores. A dignidade e a excelência do Direito consiste em ser um valor a serviço dos demais valores: não entranha em si mesmo a sua razão de ser, pois esta reside na condição comum de realização social possível dos fins humanos”.[6]

Na Ciência Jurídica contemporânea, é certo que a implicação dialética entre pólos dentro do Direito, assim considerado unitário a partir de constantes de sua realidade, e por isso a expressão “experiência jurídica”, é verificada sob a denominação de multiplicidade, significa dizer o exame interno de suas partes especiais, ao formar o conjunto de disciplinas, sendo certo também que, no seu sentido da complementaridade, porquanto suas diferentes partes não se situam uma ao lado da outra como coisas acabadas e estáticas, perfaz o caráter sistemático da unidade do fenômeno jurídico, que, objeto cultural, obedece ao tipo finalístico ou teleológico, também nas suas relações externas, pois partilhada com outros ramos do saber humano, o que sempre aparece como relação com ciências afins, hoje revestida sob o manto metodológico da “interdisciplinaridade”, na busca de soluções adequadas às demandas cada vez mais diversificadas. [7]

 

Esse paradigma sai de um olhar meramente especulativo para o âmbito metodológico com vistas também ao da técnica jurídica, na diuturna questão da “aplicação prudencial” do Direito, instância de atuação do “princípio da eqüidade” como elemento essencial para que seja “boa”, por certo ser toda relação jurídica uma coordenação atributiva de poderes segundo regras objetivas de “proporção” e “igualdade”, como expressão da “alteridade” (“alteritas”), ou um liame normativo de reconhecimento mútuo, possível somente pela “consciência do ‘nós’ (relação entre o ‘eu’ e o ‘outro’)”. E mais: revela-se “arte”, na associação da “sensibilidade humana” com a “técnica jurídica”, cujo esboço é conhecido no direito romano, mais detidamente na noção efetiva de “prudentia”.

 

É de se ter em conta que os “jurisprudentes” romanos não levavam em consideração se se tratava de “ciência” ou “arte” a atividade jurídica em Roma, porquanto recebia indistintamente as designações de “ars” (equivalente semântico do termo grego “tékhne”), “disciplina”, “scientia” ou “notitia” [8] (conhecimento técnico, sistema, saber, fato conhecido), todas a indicar um conjunto de atividades para as quais se exigia uma habilidade específica para o seu exercício.

 

A “Jurisprudência” é, nesses termos, “uma virtude desenvolvida em um conjunto de conhecimentos teóricos e práticos com o fim de descobrir cientificamente o justo e realizá-lo num meio social dado” [9].

 

É de se considerar ainda que o direito (“jus”) é um termo empregado sobretudo no sentido objetivo de “lei”, de instituições jurídicas ou de um conjunto de regras, tomando-se por base a idéia de “arte”, mais precisamente, na expressão do jurisconsulto Ulpiano - em colaboração com Celso, “arte do bom e do eqüitativo” (“ars boni et aequi”), isto é, como adverte Reynaldo Porchat, “a arte de discernir o bom e o justo” [10], em suma, ação de separar o que é justo do que é injusto (por isso, arte do que é objetivamente bom, justo, útil) [11]. Esse sentido objetivo também é percebido na significação dada por aquele jurisconsulto, e inserida nas “Instituições” do Imperador Justiniano, qual seja, “juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere” (“os preceitos do direito são os seguintes: viver honestamente, não lesar os outros, dar a cada um o seu”), sintetizando-o nesses três preceitos, no sentido de categorias, ou seja, três normas gerais, em que se enquadram todas as diversas regras jurídicas.

 

Há notável influência do pensamento grego, mais universalista pelo estoicismo com a “recta ratio” e mais particularizada com o pensamento aristotélico, constatada esta na “dialética” (arte das contradições), cujo raciocínio se desenvolve no sentido de “virtude”, capaz de sopesar, diante da mutabilidade das coisas, o valor e a utilidade delas, bem como a correção e justeza do comportamento humano. Por isso, o “saber prudencial” desenvolvido nos “responsa” dos juristas romanos, em termos de uma informação sobre determinadas questões jurídicas levantadas por uma das partes (ao que a filosofia grega chamava de “fronesis” - arte no trato e no confronto de opiniões), conduziu a um saber considerado de “natureza prática”, ou seja, “solução dos conflitos concretos”. E, desta “práxis”, tem-se que a técnica da “divisio”, construção de conceitos sob a forma de pares (“actio in rem”, “actio in personam”, “jus publicum”, “jus privatum”) [12], é pré-categoria de modelos jurídicos, tal qual serão vistos adiante, na percepção da possibilidade lógica e da necessidade ética de conceber a conduta humana em termos de “modelos ideais de ação”, reconhecidos e queridos como essenciais ao bem-estar da coletividade, ao revelar a exigência de concretude (“factibus dictantibus ac necessitate exigente” – “adequação necessária ao caso concreto” [13]).

 

Cabe reforçar a noção, a par disso tudo, de que “enquanto a prudência grega - em Aristóteles, por exemplo - era uma promessa de orientação para a ação no sentido de se descobrir o certo e o justo, a jurisprudência romana era, antes, uma confirmação, ou seja, um fundamento do certo e do justo” [14] e a distinção entre o pensamento de um povo e de outro é que “o povo grego move-se à luz da ratio, esquematizadora do real, enquanto o romano refoge das atitudes contemplativas frente à vida: seu pensamento já é esboço de ação” [15].

 

Vem dos jurisconsultos romanos, repita-se, numa primeira grande elaboração teórica, a noção efetiva de “prudentia”, como “virtude” ou centro gravitacional de fazer e aplicar o “Direito”, a conduzir um saber considerado de natureza prática, pois sua racionalidade não era apenas contemplativa e esquematizadora do real (como nos filósofos gregos) mas dirigida à ação, à construção, enfim, como “voluntas”, sob forma imperativa de regra, à solução de conflitos concretos, por meio de um fino lavor interpretativo das necessidades da “Urbs”, num processo criativo do Direito na “aderência ao concreto” com correlata “vivência do justo”.

 

Dado esse contexto:

 

“A prudência, sucessivamente identificada com a sapiência e a sabedoria, veio aos poucos se enriquecendo de novos valores, até se tornar a mais importante das virtudes que compõem a ética, condição primordial que é de uma solução justa para solução dos conflitos humanos. (...) em última análise, é a sábia arte de encontrar, com justa proporção e cautela, a solução mais adequada à compreensão e ao julgamento dos atos humanos.” [16]

 

Eis a contemporaneidade do “jus est ars boni et aequi”.

 

Ora, a propalada busca de soluções adequadas às demandas cada vez mais diversificadas na sociedade coeva mais o quanto considerado sobre ser o Direito “arte do bom e do eqüitativo” indicam tratar-se o “trabalho hermenêutico” de um “labor de construção prudencial”.

 

De fato:

 

“Interpretar é valorar, ou seja, optar entre valores compatíveis com a estrutura normativa. Todo intérprete, por mais isento e neutro que queira ser, jamais poderá libertar-se, primeiro, de seu coeficiente pessoal axiológico e, segundo, do coeficiente social de preferências inerente à sociedade a que ele pertence, ou ao ‘tempo histórico’ que está vivendo.

 

O advogado, o teórico ou o juiz são, antes de mais nada, homens inseridos num contexto de valorações e de preferências. Antes do jurista, há, em suma, a ‘consciência’, que é, ao mesmo tempo, uma realidade psíquica, com motivações econômicas, morais e religiosas, as quais não podem deixar de condicionar o ato interpretativo.” [17]

 

Todo o exposto pode ser aproveitado para uma “realização valorativa e concreta do Direito”, no condizente à aplicação experiencial do Direito, para a qual se faz uso de uma hermenêutica jurídica globalizante ou estrutural, na procura de atender à dinamicidade ou à mobilidade da vida (do caso concreto, revestido de contingência), por isso “globalizante”, embora preservando o necessário à estabilidade da ordem legitimamente constituída (a teleologia imanente ao sistema), o “estrutural”, para a aplicação de normas com vistas a decisões judiciais mais adequadas aos valores sociais vigentes. Em suma, valendo-se de uma “visão global do mundo e da vida, em cujas coordenadas se situa o quadro normativo objeto de exegese.” [18]

 

O fundamento é o de que a norma é sua interpretação (“lex non est textus, sed contextus” – “lei não é texto, mas contexto”), ou, por outras palavras, não há norma sem que haja interpretação, uma vez que é sempre um momento de “intersubjetividade” (“alteridade”): o ato interpretativo de alguém procurando captar e trazer a si o ato de outrem, não para que ele mesmo signifique, mas para que ele se apodere de um significado objetivamente válido. Tem-se, pois, um modelo funcional, no qual, por serem prescrições de caráter fático-axiológico, as normas obrigam, não em virtude de um querer de quem as emanou, mas em razão da pressão objetiva que os valores exercem no meio social [19] e, desse modo, possuem seu processo evolutivo de significação. [20] Procura atender ao aspecto dinâmico da vida, que pode provocar nas normas jurídicas mudanças de acepções, quer por um processo de erosão ou, ao contrário, de enriquecimento. [21]

 

Esses são os pressupostos para uma tridimensionalidade dinâmica, específica e concreta, porque a norma e a realidade normada não ficam presas às correntes da regra estática da subsunção, típica de uma estrutura lógico-formal positivista (kelseniana, principalmente), pela qual o fato a que se dirige a norma ganha forma apenas porque se torna conteúdo normativo geral, ou seja, a norma é um dado abstrato anterior ao caso concreto, servindo-lhe de “mero esquema”. Para essa estrutura, pouco importa o dinamismo ético-valorativo pelo decurso do tempo ou pelas determinantes específicas sócio-espaciais concretas. Em suma, não se preocupa com seu efetivo fim, sua efetiva “realizabilidade”.

 

Diferentemente disso, o campo do Direito é aberto ao complexo fático e às conexões de sentido normativas e axiológicas como subsistemas (ou fatores subsistemáticos) de um todo ontologicamente dialético: o ordenamento ou o sistema jurídico. Daí, Miguel Reale falar em modelos jurídicos, a partir da denominação clássica de “fontes do direito” (lei, costume, ato negocial e decisão judicial), na busca de superá-la em seu caráter meramente retrospectivo, pois por demais apegada à idéia de que a lei deve ser interpretada segundo a intenção do legislador, ensejando “o fetichismo da ‘lex lata’, ou seja, do Direito posto por lei” [22] com predomínio do brocardo “In claris, cessat interpretatio” (“Na clareza, cessa a interpretação”), no sentido de um apego estrito à literalidade da lei, em que o juiz é “bouche de la loi” (“boca da lei”), sem se falar na fatalidade do summum jus, summa injuria (“sumo o direito, suma a injustiça”).

 

Cuida-se, sem que se despreze o que há de retrospectivo nem que sirva de incentivo para decisões “contra legem” (“contra a lei”), de uma visão prospectiva, como critério para o legislador ordinário, o Judiciário, o Executivo e toda a sociedade, como meio de concretizar os “valores fundamentais reconhecidos” ou “invariantes axiológicas”, tomada a “pessoa” como “valor-fonte”, ao exercerem uma função diretiva e integrativa do sistema jurídico, sobremaneira por força de avanços científicos e tecnológicos em diversos campos do saber humano. [23]

 

O “sentido prospectivo”, porque atrelado a uma incansável busca do sentido válido e eficaz nas determinadas situações ou circunstâncias, dessa teoria dos modelos jurídicos está no fato de que estes criam-se e recriam-se em virtude de um “processo dinâmico”, de que participa, não apenas o poder de legislar do Estado, mas outros, como o poder social, o poder negocial e o poder jurisdicional, diante da realidade aberta que é a experiência do homem social.

 

Reale, em sua construção intelectual, distingue os modelos jurídicos dos modelos hermenêuticos.

 

Nos primeiros estão compreendidos: 1) - os modelos legais, que ocupam posição proeminente a partir da Constituição, e possuem um caráter geral e universal, podendo se confundir com uma única regra ou, como na maioria das vezes, uma pluralidade de normas entre si articuladas compondo um todo irredutível às suas partes componentes; 2) - os modelos costumeiros, como regras de direito produzidas pela sociedade civil que nascem de reiteradas formas de ação social com sentido de juridicidade e possibilitam, quer em seu caráter normal (ou subordinado), isto é, de aplicar o que a norma prevê “in abstracto” ao caso concreto (“secundum legem” – “segundo a lei do lugar”, por exemplo), quer em caráter autônomo, a integração normativa, quando o julgador tiver de dar solução em casos de lacuna, obscuridade da lei ou omissão (“praeter legem”); 3) - os modelos jurisdicionais, porquanto decorrentes do imperativo constitucional de explicitar normas jurídicas, apresentam-se de duas formas: 3.1) - subordinados, que não passam de aplicação daquilo que a norma prevê “in abstracto” ao caso concreto; e 3.2) - autônomos, que são modelos jurisdicionais por excelência, e que decorrem de dois postulados jurídicos fundamentais: a) - o julgador não pode deixar de decidir sob pretexto de lacuna ou obscuridade da lei; b) - quando a lei for omissa, o julgador procederá como legislador no caso concreto; 4) - os modelos jurídicos negociais, que resultam do acordo de vontades, tendo por base o bem comum. [24]

 

Já os modelos hermenêuticos, onde contidos os jurisdicionais, se prendem ao ato hermenêutico em correlação com a estrutura do ordenamento jurídico (como já se mostrou acima), sobretudo na vinculação aos valores reconhecidamente fundamentais, não olvidando aqueles modelos hermenêuticos supletivos e complementares (analogia, costumes etc.). [25]

 

Disso resulta uma “aplicação prudencial ou eqüitativa” dos esquemas normativos, para o qual a interpretação abrange uma atividade volitiva e decisória como um ato de construção do julgador embasado, como visto, na justa proporção e cautela para a solução mais adequada à compreensão e ao julgamento dos atos humanos. Daí que a solução “justa” é a solução adequada do caso, conveniente às suas condições e apropriada às circunstâncias.

 

Intento hermenêutico apoiado na prudência para a solução de um caso “sub judice” deve prevalecer na atividade do julgador como um labor interpretativo e construtivo, porquanto infere-se que a eficácia do direito positivo depende, de um lado, do técnico que formula as leis, e cria, em abstrato, sobre o querer social estático, e, de outro lado, do aplicador que impõe, e cria, em concreto, o querer social dinâmico; e ambos concriam.

 

Desse modo, a interpretação jurídica não pode ser concebida como fim de si mesma, mas como um momento normativo e fundamentalmente vinculado à aplicação do direito, isto é, deve concorrer na determinação do sentido juridicamente válido e eficaz da decisão normativa com vistas à aplicação concreta, consumida pois nesse ato de valoração com referência à realidade sócio-histórica.

 

Cabe, pois, ao julgador fazer uso de seu “prudente arbítrio ou critério” (“arbitrium boni viri”) que, no dizer de Eduardo J. Couture, significa a “Facultad circunstancialmente atribuída a los jueces para decidir sobre los hechos de la causa o apreciar las pruebas de los mismos, sin estar sujetos a previa determinación legal, con arreglo a su leal saber y entender” [26], com sensibilidade (de sentir, de sentimento, enfim, de “sentença”; del latín sententia, -ae, voz formada del verbo sentio, -ire con la acepción específica de ‘expressar un sentimiento, juzgar, decidir, votar’” [27]) no conhecimento, na avaliação e na solução dos casos concretos em suas especificidades, ao declarar o que é “de direito” (“‘Juris dicere’ não significa dizer o direito, porquanto quem diz o direito não é o juiz, são os doutrinadores, de um lado, e os legisladores, do outro. O juiz declara o que é ‘de direito’. É por isso que a palavra está no genitivo iuris, que quer dizer ‘de direito’” [28]).

 

No Direito do ‘homem situado’ no espaço e no tempo sociais, o “experienciar” é inseparável, para uma construção hermenêutica prudencial, de um “pensamento conjetural”, a saber:

 

“tentativa de pensar além daquilo que é conceitualmente verificável, mesmo na linha do provável por admitir-se a necessidade de cogitar-se de algo correlato, que venha completar o experienciado, sem perda de sentido do experienciável que condicione a totalidade do raciocínio.” [29]

 

Em Couture, no seu “Vocabulario Jurídico”, “conjetura” é “Juicio de probabilidad; inferência que permite admitir como ciertos, hechos desconocidos, partiendo de los conocidos.” [30]

 

Suas diretrizes fundamentais se assentam exatamente em “juízos de plausibilidade”, porquanto a conjetura legitima-se quando se sente a necessidade de compreender algo que não podemos determinar, analiticamente, a partir de evidências, nem tampouco segundo conceitos sintetizadores dos dados verificáveis da experiência. Parte, de certa forma, da experiência, para transcendê-la, visando a uma solução plausível, sem nunca entrar em contradição lógica ou real com o que já foi cientificamente comprovado e, como suposição segundo razões de verossimilhança e plausibilidade, desenvolve-se no plano das idéias, como esquema regulativo, destinado a validamente ordenar o que não se mostra ordenável segundo conceitos, nem demonstrável analiticamente. Significa dizer: o racional se compõe com a imaginação. [31]

 

No campo do Direito, em sentido amplo, o pensamento conjetural é permanente, porquanto, como parte do vasto campo das ciências humanas e sociais, acha-se na dependência de variados fatores pragmáticos, com íntima ligação com a lógica indutiva, normalmente operando com probabilidades qualitativas ou quantitativas, organiza “idealmente” (e não conceitualmente) a aceitação, confirmação ou refutação de hipóteses e teorias. Enfim, juízos de plausibilidade ou de verossimilhança, dosados de racionalidade e ricos de sentido, porque pluralista, razoável, intuitivo e natural do saber humano, impondo a relatividade de todo tipo de conhecimento. E, tendo por objeto a “validade”, e não a verdade ou a certeza, nunca despreza o chamado ‘senso comum’.

 

Liga-se estreitamente à função judicante, pois:

 

“A actividade judiciária, porém, não se reduz ao trabalho de subsunção dos factos à norma de direito.

 

Apertar nestes limites a função do juiz, é concepção falsa e estreita. Pois o juiz não é um autômato de decisões; é um homem pensante, inteligente, e participe de todas as idéias e conhecimentos que formam o patrimônio intelectual e a experiência do seu tempo.

 

Ao julgar, portanto, o juiz utiliza, e deve utilizar, conhecimentos extra-jurídicos que constituem elementos ou pressupostos do raciocínio. Verdades naturais ou matemáticas, princípios psicológicos, regras do comércio ou da vida social, compõem um acervo inesgotável de noções do saber humano, de que o juiz todos os dias se serve no desenvolvimento da sua actividade. Tais são os ‘princípios de experiências’, definições ou juízos hipotéticos de conteúdo geral, ganhos por observação de casos particulares, mas elevados a princípios autônomos com validade para o futuro” (sic). [32]

 

Não é isso destoante da ortodoxia jurídica, já dito remontar ao período clássico do direito romano, instauração da consciência jurídica ocidental, a concepção de que a lógica jurídica não é puramente racional, mas sim “razoável” ou de estilo de pensar por problemas (“tópica”), por não esconder assim recursos a juízos conjeturais, “recorrendo a ‘fictiones juris’ para compreender e disciplinar certas atividades humanas, ou reconhecendo critérios variáveis de evidência em matéria probatória, sempre sujeita a fatores contingentes” [33], e é forçoso reconhecer a “convergência de ‘eticidade e cientificidade’ no que se refere ao estudo do Direito, que é sempre uma dimensão da vida humana. Donde se conclui que a idéia de ordenamento jurídico, enquanto expressão da experiência jurídica em sua integralidade normativa, nasce tanto de razões éticas quanto científicas” [34].

 

Daí a advertência uma vez mais de Miguel Reale:

 

“A aderência à realidade, o apego à natureza ‘efetiva’ e específica das relações sociais, determina a formação de uma técnica jurídica não escravizada a conceitos abstratos, mas governada pelo objetivo de satisfazer aos valores da ‘utilitas’, nos limites éticos da ‘aequitas’. Daí duas conseqüências fundamentais, que deveriam ser mais lembradas por nossos formalistas inveterados: perante as exigências do justo, verificadas em cada caso concreto, não pode prevalecer o amor por formas lógicas vazias, ou por processos dialéticos abstratos, razão pela qual as ‘fictiones’, por exemplo, ou as exceções surgiam, não para salvar a harmonia formal do sistema dogmático, mas para atender aos fatos particulares e ao valor neles imanentes; as generalizações ou as ordenações normativas, surgidas da apreciação direta dos fatos, não passam a valer radicalmente por si mesmas, como dogmas, mas possuem antes uma validez temporária, que não põe termo à incessante pesquisa à luz de novos dados da experiência.” [35]

 

Tal concepção culturalista, ao inserir a noção de ‘certos fins que se quer atingir’, no campo do Direito tem o objetivo de se superar mencionada visão típica do positivismo legalista, na concepção do ordenamento jurídico como um sistema de normas fechado, pleno e completo, sem indagar a que ele servia, quer axiológica, quer sociologicamente. Como se vê, “não é possível reduzir o dever-ser jurídico a um mero enlace lógico-proposicional (...) pois o dever-ser no mundo do Direito envolve e representa sempre um momento volitivo da vida humana, com tudo o que nesta existe de intencional e funcional.” [36]

 

Diz ainda que:

 

“Quando me refiro, pois, a patamares axiológicos, quero focalizar a instauração, em estágios mais avançados do processo histórico-cultural, de formas coletivas de sentir, pensar e agir, que correspondem a imprevistos modos de ser da espécie humana, cuja vida se desenvolve, fundamentalmente, segundo conjeturas e conjunturas, as quais, por sua vez, condicionam e até mesmo possibilitam a formação do mundo conceitual que é o mundo do cognoscível segundo leis e princípios. Poder-se-ia afirmar que a história humana se desenvolve segundo paradigmas de pensar e conhecer.”  [37]

 

A vinculação fundamental entre história, cultura e axiologia toma este último termo desvinculando-o dos objetos ideais, uma vez que passa a constituir uma autônoma ciência dos valores, ao deixar de ser parte da metafísica. Desse modo, passa-se a ter um conceito mais preciso do que seja “objeto cultural”, no sentido de aquele que é enquanto deve ser com a correlação essencial entre objeto e objetivo.

 

Por fim, lembra Reale, Ortega y Gasset, ao afirmar que ‘o homem é a sua circunstância’ e na experiência jurídica “compreende-se a natureza ao mesmo tempo circunstancial e histórica da justiça, tornando-se transparente a complementaridade destas duas asserções: ‘o Direito Positivo pressupõe a Justiça como condição de sua legitimidade; e ‘a Justiça põe o Direito Positivo como condição de sua realizabilidade’ (...) Donde se conclui que estamos perante uma idéia cultural, isto é, histórico-axiológica da justiça, sendo vãs todas as tentativas de alcançar-se uma idéia absoluta e a-histórica do justo.” [38]

 

 

Referências bibliográficas

 

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[1] REALE, Miguel. “Experiência e Cultura: para a fundação de uma teoria geral da experiência”, pp. 278-287 e “Variações sobre a experiência” In: “Variações”, pp. 13-15.

[2] “Variações sobre a experiência” In: “Variações”, p. 16-17 – destaques no original.

[3] “Experiência e cultura”, p. 127.

[4] “Filosofia do Direito”, p. 368.

[5] “O a priori cultural” In: “Cinco temas de Culturalismo”, p. 42 – os destaques pertencem ao original.

[6] REALE, Miguel. “Direito e Cultura” In: “Horizontes do Direito e da História”, pp. 294-295 – destaque no original.

[7] COAN, Emerson Ike. “Ensino jurídico, interdisciplinaridade e o espírito da nova lei civil” In: “Revista de Direito Privado” n° 14, pp. 07-37.

[8] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. “A ciência do direito”, pp. 18-19.

[9] PEREIRA, Aloysio Ferraz. “Aparelhos conceituais do direito: as quatro noções fundamentais do direito romano” In: “O direito como ciência”, p. 25.

[10] “Curso elementar de Direito Romano”, p. 106, nota (1).

[11] PEREIRA, Aloysio Ferraz. Texto citado, p. 23-24.

[12] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. “A função social da dogmática jurídica”, pp. 20-31.

[13] REALE, Miguel. “Religiosidade do Direito” In: “Estudos de filosofia e ciência do Direito”, p. 6.

[14] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Op. cit., p. 30.

[15] REALE, Miguel. “Concreção de fato, valor e norma no direito romano clássico” In: “Horizontes do Direito e da História”, p. 50.

[16] “Variações sobre a prudência”. “O Estado de São Paulo”, p. 2, 19/07/2003.

[17] REALE, Miguel, ao expor seu ponto de vista sobre o ato interpretativo, em texto intitulado “A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli” In: “Questões de Direito”, pp. 7-8.

[18] REALE, Miguel. “Para uma hermenêutica jurídica estrutural” In: “Estudos de Filosofia e Ciência do Direito”, pp. 81-82.

[19] REALE, Miguel. “O Direito como Experiência”, p. 248.

[20] Idem, ibidem, p. 210.

[21] REALE, Miguel. “Filosofia do Direito”, p. 567.

[22] “Fontes e modelos do Direito: para um novo paradigma hermenêutico”, p. 24 - os destaques pertencem ao original.

[23] Ver nosso “Direito natural e invariantes axiológicas na acepção estrutural de Miguel Reale: atualidade do tema” In: “Revista Brasileira de Filosofia”, vol. LIII, fasc. 216, pp. 505-532.

[24] “Fontes e modelos do Direito”, pp. 66-75.

[25] Idem, pp. 105-122.

[26] “Vocabulario Jurídico”, verbete ‘Arbitrio Judicial’.

[27] COUTURE, citado, verbete “sentencia” - destaques no original.

[28] REALE, Miguel. “A ética do juiz na cultura contemporânea” In: “Questões de Direito Público”, p. 65 - destaques no original.

[29] REALE, Miguel. “Verdade e conjetura”, p. 46 apud CARVALHO, José Maurício de. “O pensamento filosófico de Miguel Reale” In: Revista Brasileira de Filosofia, v. XLIII, fac. 183, p. 341.

[30] Verbete “conjetura” – destaques no original.

[31] REALE, Miguel. “Conjeturas da Experiência Jurídica” In: “Nova Fase do Direito Moderno”, p. 132 – destaques no original.

[32] FERRARA, Francesco. “Interpretação e aplicação das leis”, pp. 186-187 – destaque no original.

[33] REALE, Miguel. “Conjeturas da Experiência Jurídica” In: “Nova Fase do Direito Moderno”, p. 133 – destaques no original.

[34] Idem, ibidem, p. 137 – destaques no original.

[35] “Concreção de fato, valor e norma no direito romano clássico” In: “Horizontes do Direito e da História”, p. 49.

[36] “Fontes e modelos do Direito”, p. 7 - os destaques pertencem ao original.

[37] “Historicismo axiológico e Direito Natural” In: “Nova fase do Direito Moderno”, pp. 46-47 – destaques no original.

[38] “Teoria da Justiça” In: “Nova fase do Direito Moderno”, pp. 35-39 – os destaques pertencem ao original.


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