94 - O caráter instrumental dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência

 

MARIO LUIZ ELIA JUNIOR - Advogado
 

(Sumário: I. Introdução. II. Contextualização da "livre iniciativa"  na Constituição de 1988. III. A "livre concorrência" e sua relação com a "livre iniciativa". IV. Regulação da concorrência no Brasil. V. Conclusões. VI. Bibliografia Consultada)

 

 

I – INTRODUÇÃO

 

O interesse pelo desenvolvimento do presente tema – a proteção constitucional da livre iniciativa e da concorrência – decorre, sobretudo, da sua compreensão como instrumento, e não como um fim em si mesmo.

                  

Os princípios constitucionais que serão brevemente abordados nesta oportunidade devem ser vistos como instrumento para o alcance de algo ainda maior que a livre iniciativa e a concorrência – devem ser vistos como instrumento para se assegurar a “dignidade da pessoa humana”, que é prevista pela Constituição de 1988 tanto como fundamento da República Federativa do Brasil, nos termos de seu art. 1º, inc. III, quanto como finalidade da ordem econômica, conforme seu artigo 170, caput.

 

Preleciona o Professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e Ministro do E. Supremo Tribunal Federal Eros Grau “que o Brasil – República Federativa do Brasil – define-se como entidade política constitucionalmente organizada, tal como a constitui o texto de 1988, enquanto assegurada, ao lado da soberania, da cidadania, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político, a dignidade da pessoa humana. Por outro, significa que a ordem econômica mencionada pelo art. 170, caput do texto constitucional – isto é, mundo do ser, relações econômicas ou atividade econômica (em sentido amplo) – deve ser dinamizada tendo em vista a promoção da existência digna de que todos devem gozar”[1].

                  

A Professora Paula Andréa Forgioni, também da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, por sua vez, tratando mais especificamente da disciplina da concorrência, assevera que essa surge, no Brasil, “em um contexto de proteção da economia popular (cf. Decreto-lei 869, de 1938, e Decreto-lei 7.666, de 1945), o que, sem sombra de dúvidas, já lhe atribui um caráter instrumental ainda que vinculado à economia popular e ao consumidor. O caráter instrumental da proteção da concorrência permanece na atual Constituição, que manda reprimir o abuso do poder econômico que vise a dominação dos mercados e à eliminação da concorrência (art. 173, §4º), em atenção ao princípio da livre concorrência (art. 170, IV). Manda, também, reprimir o aumento arbitrário de lucros (art. 173, §4º), conforme o princípio da defesa do consumidor (art. 170, inc. V). Essa proteção, entretanto, vai inserta no fim geral e maior, qual seja, “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”[2].

 

Tal “fim geral e maior”, nos termos do art. 170, caput, da Constituição da República, pressupõe uma ordem econômica fundada na “valorização do trabalho humano” – frise-se que “o valor social do trabalho” não apenas deve ser o fundamento da ordem econômica, como também deve ser a base de sustentação da República Federativa do Brasil, como entidade política constitucionalmente organizada, nos termos do artigo 1º, inc. IV, da Constituição de 1988.

 

Nessa linha, a “valorização do trabalho humano”, acompanhada da “livre iniciativa”, que, em verdade, “é um modo de expressão do trabalho e, por isso mesmo, corolária da valorização do trabalho”[3], ambas previstas no caput do art. 170 da Constituição como fundamentos da ordem econômica, são condições para que se assegure a “dignidade da pessoa humana”.

 

A “livre concorrência”, princípio que complementa o da “livre iniciativa”, dessa mesma forma, sendo princípio voltado à preservação do modo de produção capitalista, através da tutela do consumidor –  na medida em que a competitividade leva a uma distribuição de recursos por um preço menor –  e da garantia de oportunidades iguais a todos os agentes do mercado, deve também ser encarada, em última análise, como adiante se verá, como asseguradora da “dignidade da pessoa humana”.

 

Essa é a perspectiva que se pretende dar nessa breve abordagem sobre o tema.

 

II – CONTEXTUALIZAÇÃO DA "LIVRE INICIATIVA"  NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

 

Os esclarecimentos introdutórios são necessários para que se tome o princípio da “livre iniciativa” como expressão de algo inserto dentro de um contexto socialmente valioso. Afinal de contas, é conhecida a lição de Eros Grau de que “jamais se aplica uma norma jurídica, mas sim o direito, não se interpretam normas constitucionais, isoladamente, mas sim a Constituição, no seu todo. Não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços”[4].

 

O ilustre José Afonso da Silva, nesse sentido, ensina que a livre iniciativa, “num contexto de uma Constituição preocupada com a realização da justiça social (o fim condiciona os meios), não pode significar mais do que ‘liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público, e, portanto, possibilidade de gozar das facilidades e necessidade de submeter-se às limitações postas pelo mesmo’. É legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima, quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário.”[5].

 

Na concepção de Celso Ribeiro Bastos, a livre iniciativa “é uma manifestação dos direitos fundamentais e no rol daqueles devia estar incluída. De fato o homem não pode realizar-se plenamente enquanto não lhe for dado o direito de projetar-se através de uma realização transpessoal. Vale dizer, por meio da organização de outros homens com vistas à realização de um objetivo. Aqui a liberdade de iniciativa tem conotação econômica. Equivale ao direito de todos têm de lançarem-se ao mercado da produção de bens e serviços por sua conta e risco. Aliás, os autores reconhecem que a liberdade de iniciar a atividade econômica implica a de gestão e a de empresa.”[6].

 

É importante que se diga, entretanto, que a “livre iniciativa”, prevista pela Constituição da República tanto no artigo 1º, inc. IV, como fundamento da República Federativa do Brasil, quanto no artigo 170, caput, como fundamento da ordem econômica, não se resume apenas à liberdade de desenvolvimento da empresa, sob pena de se vislumbrar a “livre iniciativa” apenas e tão-somente como uma afirmação do capitalismo.

 

A “livre iniciativa” é não só expressão de liberdade da empresa como também do trabalho, abrangendo todas as formas de produção, individuais ou coletivas, como por exemplo as iniciativas cooperativa, autogestionária e pública – no que diz respeito à iniciativa pública, esclareça-se que a “livre iniciativa” não consistirá na livre atuação da empresa privada no serviço público, mas sim que o Estado não deverá opor empecilhos à liberdade humana[7].

 

O renomado mestre Tércio Sampaio Ferraz Jr. proferiu parecer[8], do qual se fará, abaixo, parcial transcrição, no qual realizou detida análise sobre o tema, tratando a liberdade de iniciativa como atributo inalienável do ser humano:

 

Nestes termos, o art. 170, ao proclamar a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano como fundamentos da ordem econômica está nelas reconhecendo a sua base, aquilo sobre o que ela se constrói, ao mesmo tempo sua conditio per quam e conditio sine qua non, os fatores sem os quais a ordem reconhecida deixa de sê-lo, passa a ser outra, diferente, constitucionalmente inaceitável. Particularmente a afirmação da livre iniciativa, que mais de perto nos interessa neste passo, ao ser estabelecida como fundamento, aponta para uma ordem econômica reconhecida então como contingente. Afirmar a livre iniciativa como base é reconhecer na liberdade um dos fatores estruturais da ordem, é afirmar a autonomia empreendedora do homem na conformação da atividade econômica, aceitando a sua intrínseca contingência e fragilidade; é preferir, assim, uma ordem aberta ao fracasso a uma ‘estabilidade’ supostamente certa e eficiente. Afirma-se, pois, que a estrutura da ordem está centrada na atividade das pessoas e dos grupos e não na atividade do Estado. Isto não significa, porém, uma ordem do ‘laissez faire’, posto que a livre iniciativa se conjuga com a valorização do trabalho humano, mas a liberdade, como fundamento, pertence a ambos. Na iniciativa, em termos de liberdade negativa, da ausência de impedimentos e da expansão da própria criatividade. Na valorização do trabalho humano, em termos de liberdade positiva, de participação sem alienações na construção da riqueza econômica. Não há, pois, propriamente, um sentido absoluto e ilimitado na livre iniciativa, que por isso não exclui a atividade normativa e reguladora do Estado. Mas há ilimitação no sentido de principiar a atividade econômica, de espontaneidade humana na produção de algo novo, de começar algo que não estava antes. Esta espontaneidade, base da produção da riqueza, é o fator estrutural que não pode ser negado pelo Estado. Se, ao fazê-lo , o Estado a bloqueia e impede, não está intervindo, no sentido de normar e regular, mas está dirigindo e, com isso, substituindo-se a ela na estrutura fundamental do mercado”.

 

Compreendida dessa forma a “livre iniciativa”, não há que se cogitar dela como afirmação constitucional do capitalismo, como pretendem muitos estudiosos do tema. A consagração do sistema capitalista na Constituição de 1988 é decorrência não exclusivamente do princípio da “livre iniciativa”, mas sim desse princípio complementado pelo princípio da “livre concorrência”, que é corolário do capitalismo. Cumpre-nos analisar, dessa feita, a “livre concorrência” e sua relação com a “livre iniciativa”, sem perder de vista a função instrumental de tais princípios.

 

III- A "LIVRE CONCORRÊNCIA" E SUA RELAÇÃO COM A "LIVRE INICIATIVA"

 

Acerca da relação entre a “livre concorrência” e a “livre iniciativa”, preleciona José Afonso da Silva[9] que “os dois dispositivos se complementam no mesmo objetivo. Visam tutelar o sistema de mercado e, especialmente, proteger a livre concorrência, contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista. A Constituição reconhece a existência do poder econômico. Este não é, pois, condenado pelo regime constitucional. Não raro esse poder econômico é exercido de maneira anti-social. Cabe, então, ao Estado intervir para coibir o abuso”.

 

Carlo Barbieri Filho[10], a respeito especificamente do princípio da “livre concorrência”, previsto no artigo 170, inciso IV, da Constituição da República, conceitua-o e demonstra sua importância numa economia de mercado, considerando a concorrência como “elemento fundamental para o democrático desenvolvimento da estrutura econômica. É ela a pedra de toque das liberdades públicas no setor econômico. Concorrência é disputa, em condições de igualdade, de cada espaço com objetivos lícitos e compatíveis com as aspirações nacionais. Consiste, no setor econômico, na disputa entre todas as empresas para conseguir maior e melhor espaço no mercado. O objetivo da legislação antitruste é proteger e amparar aqueles que participam desse jogo”.

 

Celso Ribeiro Bastos[11], por sua vez, também a esse respeito, afirma que “a livre concorrência é indispensável para o funcionamento do sistema capitalista. Ela consiste essencialmente na existência de diversos produtores ou prestadores de serviços. É pela livre concorrência que se melhoram as condições de competitividade das empresas, forçando-as a um constante aprimoramento dos seus métodos tecnológicos, dos seus custos, enfim, da procura constante de criação de condições mais favoráveis ao consumidor. Traduz-se portanto numa das vigas mestras do êxito da economia de mercado. O contrário da livre concorrência significa o monopólio e o oligopólio, ambos situações privilegiadora do produtor, incompatíveis com o regime de livre concorrência”.

 

Eros Roberto Grau[12], em suas lições, parte para uma análise mais acurada do princípio da “livre concorrência”:

 

A afirmação, principiológica, da livre concorrência no texto constitucional é instigante. De uma banda porque a concorrência livre – não liberdade de concorrência, note-se – somente poderia ter lugar em condições de mercado nas quais não se manifestasse o fenômeno do poder econômico. Este, no entanto – o poder econômico – é não apenas um elemento da realidade, porém um dado constitucionalmente institucionalizado, no mesmo texto que consagra o princípio. (...) De outra banda, é ainda instigante a afirmação do princípio porque o próprio texto constitucional fartamente o confronta. A livre concorrência, no sentido que lhe é atribuído – ‘livre jogo das forças de mercado, na disputa de clientela’ -, supõe desigualdade ao final da competição, a partir, porém, de um quadro de igualdade jurídico-formal. Essa igualdade, contudo, é reiteradamente recusada (...). O que se passa, em verdade, é que é outro, que não aquele lido no preceito por quantos se dispõem a fazer praça do liberalismo econômico, o sentido do princípio da livre concorrência. Deveras, não há oposição entre o princípio da livre concorrência e aquele que se oculta sob a norma do § 4º do art. 173 do texto constitucional, princípio latente, que se expressa como princípio da repressão aos abusos do poder econômico e, em verdade – porque dele é fragmento –compõe-se no primeiro. É que o poder econômico é a regra e não a exceção. Frustra-se, assim, a suposição de que o mercado esteja organizado, naturalmente, em função do consumidor. A ordem privada, que o conforma, é determinada por manifestações que se imaginava fossem patológicas, convertidas porém, na dinâmica de sua realidade, em um elemento próprio a sua constituição natural. (...) Livre concorrência, então – e daí porque não soa estranho nem é instigante a sua consagração como princípio constitucional, embora desnecessária (bastava, nesse sentido, o princípio da livre iniciativa) –, significa liberdade de concorrência, desdobrada em liberdades privadas e liberdade pública”.

 

Do que até aqui foi exposto, pode-se concluir que o princípio constitucional da livre concorrência deve ser entendido como liberdade de concorrência enquanto direito subjetivo a competir no mercado, sempre sob o manto da proteção da legislação antitruste pátria, que garante a igualdade de oportunidade entre os players.

 

Por outras palavras, no princípio da livre concorrência se contém a crença de que a competição entre os players e, paralelamente, a liberdade de escolha dos consumidores, produzirão os melhores resultados sociais, promovendo a elevação da qualidade dos bens e serviços ofertados, bem como a prática de preços justos. Os players, entretanto, não têm apenas o direito subjetivo a competir no mercado, mas também o dever jurídico de não adotarem práticas entendidas pela legislação antitruste como anticoncorrenciais, sob pena de sobre eles recair a ação disciplinadora e punitiva do Estado.

 

O princípio da “livre concorrência”, entendido nesse sentido de liberdade de concorrência, pode ser considerado como desdobramento do princípio da “livre iniciativa”. A “livre iniciativa”, como visto, é atributo inalienável do ser humano, é a liberdade “da expansão da própria criatividade, da participação sem alienações na construção da riqueza econômica”; é a liberdade, outrossim, da empresa, “da organização de outros homens com vistas à realização de um objetivo”.

 

A “livre concorrência”, nesse contexto, nada mais é que uma extensão do conceito de “livre iniciativa”, desdobrando a liberdade de empresa na liberdade de competição entre as empresas.

 

Por outro lado, o que se protege pela “livre iniciativa” e, em última análise, pela “livre concorrência”, é a liberdade de trabalho, de todas as formas de produção, individuais ou coletivas, e por conseguinte, a “dignidade da pessoa humana”.

 

Do exposto, pode-se concluir que a “livre iniciativa” é complementada pela “livre concorrência” e ambas têm a finalidade de assegurar a “dignidade da pessoa humana”. A respeito dessa perspectiva da “livre concorrência”, confira-se as lições do mestre Tércio Sampaio[13]:

 

A livre concorrência de que fala a atual Constituição como um dos princípios da ordem econômica (art. 170, IV) não é a do mercado concorrencial oitocentista de estrutura atomística e fluida, isto é, exigência estrita de pluralidade de agentes e influência isolada e dominadora de um ou uns sobre outros. Trata-se, modernamente, de um processo comportamental competitivo que admite gradações tanto de pluralidade quanto de fluidez. É este elemento comportamental – a competitividade – que define a livre concorrência. A competitividade exige, por sua vez, descentralização de coordenação como base da formação dos preços, o que supõe livre iniciativa e apropriação privada dos bens de produção. Neste sentido, a livre concorrência é forma de tutela do consumidor, na medida em que competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preço. De um ponto de vista político, a livre concorrência é garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou seja, é uma forma de desconcentração de poder. Por fim, de um ângulo social, a competitividade deve gerar extratos intermediários entre grandes e pequenos agentes econômicos, como garantia de uma sociedade mais equilibrada”.

 

Nesse mesmo sentido, Eros Grau[14] proferiu parecer:

 

É que a liberdade de concorrência deve ser visualizada como elemento moderador do princípio da liberdade de comércio e indústria, e não como ratificador deste último. Não deve ser tomado, pois, como princípio negativo. Este sentido já é coberto pelo princípio da liberdade de comércio e indústria (não ingerência do Estado no domínio econômico). A liberdade de concorrência é, fundamentalmente, uma liberdade privada e se apresenta dotada de caráter positivo, expressando-se como direito a que o abuso (deslealdade) da liberdade de comércio e indústria não comprometa o funcionamento regular dos mercados. Esse o sentido sob o qual o princípio é consagrado no plano constitucional, no inc. IV do art. 170 da vigente Constituição”.

 

Para que a “livre concorrência”, nessa ordem de idéias, possa operar, na expressão utilizada por Paula A. Forgioni[15], como “concorrência-instrumento” para se “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, mostra-se indispensável a existência de legislação apta a evitar “a ocorrência de práticas desvirtuadoras da livre concorrência” que ferem “o direito subjetivo daqueles que, ao lançarem-se no mercado, o fazem sob o manto certo da proteção dos princípios da Constituição referente ao livre mercado”[16].  E é nesse sentido que atua a vigente lei antitruste nacional, a Lei n.º 8.884, de 11de junho de 1994, que está voltada à prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, da qual adiante se fará breve análise.

 

IV- REGULAÇÃO DA CONCORRÊNCIA NO BRASIL

 

O histórico da legislação antitruste brasileira consiste nas seguintes leis, que antecederam à atual lei em vigor: Lei n.º 4.137/62, Lei n.º 8.137/90 Lei n.º 8.158/91. Para o momento, entretanto, interessa-nos apenas abordar, brevemente, a Lei n.º 8.884, de 11.06.1994.

 

Em seu artigo 1º, a Lei n.º 8.884/1994 define a amplitude de seu conteúdo, nestes termos: “esta lei dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico”; e completa o seu parágrafo único: “a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta lei”.

 

Ressalte-se que, orientada por tais princípios constitucionais, dentre eles os da “livre iniciativa” e da “livre concorrência”, e não exclusivamente no §4º do art. 173 da Constituição da República, a Lei n.º 8.884/1994 não consiste simplesmente em um diploma antitruste, mas se encontra voltada à preservação do modo de produção capitalista.

 

Com efeito, uma vez que as regras da mencionada Lei “conferem concreção aos princípios da liberdade de iniciativa, da livre concorrência, da função social da propriedade, da defesa dos consumidores e da repressão ao abuso do poder econômico, tudo em coerência com a ideologia constitucional adotada pela Constituição de 1988”[17] e tendo em vista que tais princípios, em especial os da “livre iniciativa” e da “livre concorrência”, complementam-se e voltam-se à preservação do modo de produção capitalista, através da tutela do consumidor e da garantia de oportunidades iguais a todos os players do mercado, outra não poderia ser a conclusão.

 

A “livre iniciativa” e a “livre concorrência”, princípios preservadores do modo de produção capitalista, são protegidos pela Lei n.º 8.884/1994, que estabelece, em seu artigo 20, “que os atos de qualquer natureza que tenham o efeito, potencial ou real, de limitar, falsear ou prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa são definidos como infração da ordem econômica”[18].

 

Três são, dessa feita, as condutas definidas como infração da ordem econômica: limitar, falsear ou prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa. Esclareça-se que, “se a limitação, falseamento ou prejuízo atingiu a liberdade de concorrer” – livre concorrência – “ou a liberdade de empreender” – livre iniciativa –, “as repercussões jurídicas são rigorosamente idênticas”[19].

 

Fábio Ulhoa Coelho, em seu “Curso de Direito Comercial”, define brevemente no que consistem as condutas acima apontadas[20]:

 

 

“limitar a livre concorrência ou a livre iniciativa é barrar total ou parcialmente, mediante determinadas práticas empresariais, a possibilidade de acesso de outros empreendedores à atividade produtiva em questão. Em geral, a obstaculização do acesso decorre do aumento dos custos para novos estabelecimentos, provocado com vistas a desencorajar eventuais interessados”;

 

“falsear a livre concorrência ou iniciativa significa ocultar a prática restritiva, através de atos e contratos aparentemente compatíveis com as regras de estruturação do livre mercado”. Frise-se, entretanto, que “pode haver falseamento da concorrência, sem que o negócio jurídico que o viabiliza se caracterize como simulado”; e

 

“prejudicar a livre concorrência ou iniciativa, por fim, significa incorrer em qualquer prática empresarial lesiva às estruturas do mercado, ainda que não limitativas ou falseadoras dessas estruturas. Trata-se de conduta difícil de se exemplificar em nível conceitual. A previsão normativa se explica como cautela do legislador, tendo em conta as imprevisíveis e variadíssimas possibilidades abertas pelas múltiplas formas de relacionamento entre empresas, de que podem derivar restrições horizontais ou verticais”.

 

O que se verifica é que a Lei n.º 8.884/1994 sistematiza a matéria antitruste, de forma a aperfeiçoar o tratamento legislativo que lhe era dado anteriormente. Como visto, mais do que sistematizar a matéria antitruste, o referido texto legal pretende a manutenção do modo de produção capitalista, concretizando, dessa forma, os princípios constitucionais analisados nesse estudo.

 

Mas o mais importante de tudo isso, conforme obtempera Paula A. Forgioni[21], é que, de forma diversa da ocorrida com as leis que antecederam a que ora se analisa, a Lei n.º 8.884/1994 não é mais aplicada apenas em “surtos”:

 

Não obstante a utilização da Lei Antitruste, pelo governo, com fins populistas, a atuação do CADE, nos últimos quatro anos, vem-se consolidando de forma a já não se vislumbrar ‘surtos’ de aplicação da Lei Antitruste, mas sim uma linha contínua de atuação. Identifica-se um novo interesse acadêmico pela matéria e o aumento do número de monografias jurídicas publicadas. Os conselheiros do CADE, por sua vez, têm proferido várias palestras, com o escopo de chamar a atenção do empresariado para alguns dispositivos da Lei Antitruste, desempenhando as funções educativas que estão previstas no inc. XVIII do art. 7º da Lei Antitruste. (...) Espera-se que com o fortalecimento do CADE perante o sistema político e a própria opinião pública uma maior atenção seja dada, por parte das autoridades antitruste, às chamadas condutas anticoncorrenciais dos agentes econômicos”.

 

A aplicação da legislação antitruste, dessa feita, deve continuar, sem que por “surtos”. Ademais, tendo em vista que a legislação antitruste tem por escopo a preservação do modo de produção capitalista através da proteção aos princípios constitucionais da “livre iniciativa” e da “livre concorrência” – por outras palavras, tendo em vista que tal legislação é instrumento para se “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” – “aparece clara”, na lição de Paula A. Forgioni[22], “conjuntamente com o aspecto instrumental desse tipo de norma, sua aptidão para servir à implementação de políticas públicas, especialmente de políticas econômicas entendidas como ‘meios de que dispõe o Estado para influir de maneira sistemática sobre a economia’”.

 

Ou seja, ainda conforme os ensinamentos da professora, “o antitruste já não é visto apenas em sua função de eliminação dos efeitos autodestrutíveis do mercado, mas passa a ser encarado como um dos instrumentos (...) de que dispõe o Estado para conduzir o sistema”.

 

Assim se dá, dessa feita, nos dias de hoje, a regulação da concorrência no Brasil enquanto forma de proteção da “livre iniciativa” e da “livre concorrência” e, por conseguinte, como forma de “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.

  

V - CONCLUSÕES

 

Por esse breve ensaio, restou esclarecido que a “valorização do trabalho humano”, acompanhada da “livre iniciativa”, são condições para que se assegure a “dignidade da pessoa humana”. A “livre concorrência”, princípio que complementa o da “livre iniciativa”, dessa mesma forma, deve ser vislumbrada como condição para que se atinja o fim maior da dignidade humana.

 

Isso porque o princípio constitucional da “livre iniciativa” deve ser entendido como atributo inalienável do ser humano, como a liberdade “da expansão da própria criatividade, da participação sem alienações na construção da riqueza econômica” e “da organização de outros homens com vistas à realização de um objetivo”, vale dizer, da empresa. O princípio da “livre concorrência”, por sua vez, deve ser entendido como liberdade de concorrência, no sentido de direito subjetivo a competir no mercado, observada a garantia de igualdade de oportunidade entre os players. Ou seja, “livre concorrência” nada mais é que uma extensão do conceito de “livre iniciativa”, desdobrando a liberdade de empresa na liberdade de competição entre as empresas.

 

Assim sendo, para que, pela “livre iniciativa” e pela “livre concorrência”, princípios que se complementam e se voltam à preservação do modo de produção capitalista, se possa “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, indispensável a existência de legislação que estabeleça aos players o dever jurídico de não adotarem práticas entendidas pela legislação antitruste como anticoncorrenciais, sob pena de sobre eles recair a ação disciplinadora e punitiva do Estado.

 

A atual lei antitruste nacional (Lei n.º 8.884, de 11 de junho de 1994),  na medida em que protege os princípios da “livre iniciativa” e da “livre concorrência”, protege, em verdade, o próprio modo de produção capitalista.

 

Mas o mais importante é que a Lei n.º 8.884/1994 vem sendo aplicada com regularidade, não mais em “surtos”, como eram as legislações antitruste anteriores, possibilitando, dessa forma, a efetiva concretização dos princípios em comento. Dessa feita, importante que se preserve constante a aplicação da Lei nesse sentido e, sobretudo, que se passe à “implementação de políticas públicas, especialmente de políticas econômicas entendidas como ‘meios de que dispõe o Estado para influir de maneira sistemática sobre a economia’”, tudo com o objetivo de se atingir o fim último e maior de se assegurar a dignidade humana.

 

VI – BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

 

.   Calixto Salomão Filho, “Direito Concorrencial: as estruturas”, São Paulo, Malheiros, 1998.

.   Celso Ribeiro Bastos, “O Princípio da Livre Concorrência na Constituição Federal”, Revista dos Tribunais – Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, n.10, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995.

.   Celso Ribeiro Bastos, Ives Gandra Martins, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 7, São Paulo, Saraiva, 1990.

.   Eros Roberto Grau, “A Ordem Econômica na Constituição de 1988”, 5ª ed., São Paulo, Malheiros, 2000.

.   Eros Roberto Grau, “Contrato de Obrigações – Falsa ‘reserva de mercado’; livre iniciativa, livre concorrência e soberania nacional; o princípio da igualdade”, Revista Trimestral de Direito Público, 6/1994, São Paulo, Malheiros.

.   Eros Roberto Grau, “Princípio da Livre Concorrência – Função Regulamentar e Função Normativa”, Revista Trimestral de Direito Público, 4/1993, São Paulo, Malheiros.

.   Fábio Ulhoa Coelho, “Curso de Direito Comercial”, 3ª ed., vol. 1, São Paulo, Saraiva, 2000.

.   J. Cretella Jr., “Comentários à Constituição de 1998”, 2ª ed., vol. 8, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1993.

.   José Afonso da Silva, “Curso de Direito Constitucional Positivo”,  15ª ed., São Paulo, Malheiros, 1998.

.   Paula A. Forgioni, “Os Fundamentos do Antitruste”, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998.

 

 

 


[1]  “A Ordem Econômica na Constituição de 1988”, 5.ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 222.

[2] “Os Fundamentos do Antitruste”, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 170.

[3] Eros Roberto Grau, ob. cit., p. 231.

[4] Ob. cit., p. 179.

[5] “Curso de Direito Constitucional Positivo”, 15.ed.., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 760.

[6] “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 7, São Paulo: Saraiva, 1990, p. 16.

[7] cf. Eros Roberto Grau, ob. cit., p. 233.

[8] “A economia e o controle do Estado”, parecer publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”, p. 50, em 04.06.1989, apud Eros Roberto Grau, “A Ordem Econômica na Constituição de 1988”, 5ª ed., São Paulo, Malheiros, 2000, p. 232.

[9] Ob. cit.,, p. 761.

[10] “Disciplina jurídica da concorrência – Abuso do poder econômico”, Resenha Tributária, 1984, p. 119/120 apud Celso Ribeiro Bastos, Ives Gandra Martins, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 7, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 25.

[11] Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 7, São Paulo, Saraiva: 1990, p. 25.

[12] Eros Roberto Grau, Ob. cit., p. 234/236.

[13] “A economia e o controle do Estado”, parecer publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”, p. 50, em 04.06.1989, apud Eros Roberto Grau, “A Ordem Econômica na Constituição de 1988”, 5ª ed., São Paulo, Malheiros, 2000, p. 236.

[14] Eros Roberto Grau, “Princípio da Livre Concorrência – Função Regulamentar e Função Normativa”, Revista Trimestral de Direito Público, 4/1993, São Paulo, Malheiros, p. 126.

[15] “Os Fundamentos do Antitruste”, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998, p. 170.

[16] Celso Ribeiro Bastos, “O Princípio da Livre Concorrência na Constituição Federal”, Revista dos Tribunais – Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, n.10, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995.

[17] Eros Roberto Grau, ob. cit., p. 238.

[18] Fábio Ulhoa Coelho, “Curso de Direito Comercial”, 3ª ed., vol. 1, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 205.

[19] Fábio Ulhoa Coelho, ob. cit., p. 206.

[20] Fábio Ulhoa Coelho, ob. cit., p. 206/207.

[21] “Os Fundamentos do Antitruste”, ob. cit., p. 134/135.

[22] “Os Fundamentos do Antitruste”, ob. cit., p. 170/171.


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