92 - Princípios orientadores do novo Código Civil
EMERSON IKE COAN - Assistente Jurídico do TJSP |
O novo texto teve longa tramitação (25 anos), com estudo cuidadoso, para que se consolidasse o mais moderno possível, não buscando (dentro dos quadros da própria limitação humana) ser perfeito. Se temas da atualidade não foram consignados, como a fertilização assistida, os contratos eletrônicos etc., é porque são matérias que merecem regulamentação específica, embora se possa fazer uma leitura da Lei Civil a partir de seus princípios orientadores. Em face disso, possui elasticidade suficiente para que seus dispositivos sejam adaptados às situações concretas e o mais importante é que não pretende ser um Código datado (como o anterior). Pelo contrário, procura ter vida longa no processo histórico-cultural de nossa sociedade.
Socialidade, eticidade e operabilidade são seus princípios norteadores.
A socialidade (ou sentido social) é uma das características mais marcantes do novo Código. Como se exprime Miguel Reale, ao comentar o Projeto que coordenou, “fazendo prevalecer valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana (...), com a necessária revisão dos direitos e deveres dos cinco principais personagens do Direito Privado tradicional: o proprietário, o contratante, o empresário, o pai de família e o testador (...) É, por isso, por exemplo, que acabei propondo que o ‘pátrio poder’ passasse a denominar-se ‘poder familiar’, exercido em conjunto por ambos os cônjuges em razão do casal e da prole” (“O Projeto do novo Código Civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal”. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 7 - destaques no original).
Consolida-se a abertura do Ordenamento Jurídico, vendo-o em perfeita composição entre o direito posto e a dinamicidade da vida. Sobre isso: “devido às imensas alterações operadas no decurso do século passado, tanto no plano científico e tecnológico como no campo social, era impossível manter disposições legais tornadas incompatíveis com os interesses e necessidades do mundo atual. Bastará dizer que Clóvis Beviláqua redigiu seu ante-projeto de Código Civil em fins do século 19, quando ainda prevaleciam princípios de marcante individualismo. No caso do Brasil, acrescia o fato de nossa civilização ainda corresponder a uma sociedade rural e agrária, com a maior parte da população vivendo no campo, ao passo que, hoje em dia, predomina o sentido inverso, da vida urbana aberta aos imperativos da socialização do progresso” (Miguel Reale. “Espírito da nova Lei Civil” In: “Estudos Preliminares do Código Civil”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 36; tb In: “História do novo Código Civil”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pp. 206-207).
Exemplo claro desse fenômeno é observado na complementaridade entre Direito Público e Direito Privado, para a qual se vêem expressões como “privatização do público”, pelo ingresso de direitos de âmbito privado no Direito Público, v.g., os direitos da personalidade na esfera Constitucional, ou “publicização do privado”, sendo que neste último aspecto a tônica dominante tem sido a noção de função social da propriedade e do contrato, sustentando o novo Código Civil.
A situação vigente é a de que “não foi mais considerada sem limites a fruição do próprio direito, reconhecendo-se que este deve ser exercido em benefício da pessoa, mas sempre respeitados os fins ético-sociais da comunidade a que seu titular pertence. Não há, em suma, direitos individuais absolutos, uma vez que o direito de um acaba onde o de outrem começa. (...) Nessa ordem de idéia passou a ser disciplinado de nova forma o direito de propriedade, mesmo porque esta, de conformidade com o inc. XXII do art. 5º da Constituição de 1988, ‘atenderá a sua função social’. Decorrência lógica desse entendimento é a compreensão da ‘função social do contrato’, o qual representa uma justa composição de interesses individuais e coletivos, de tal forma que, se ele se rescinde devido ao inadimplemento de uma das partes, também pode ser resolvido se acontecimentos imprevisíveis tornarem por demais onerosa a prestação de um dos contratantes. Na mesma linha de pensamento, o novo Código Civil prevê vários casos em que é facultado ao juiz atuar como árbitro, fixando, por exemplo, o valor de uma indenização segundo critérios de eqüidade, não acolhendo pretensões abusivas” (Miguel Reale. “Espírito da nova Lei Civil” In: “Estudos Preliminares do Código Civil”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 36-37; tb In: “História do novo Código Civil”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 207).
Isso tudo como Direito próprio do ‘homem situado’ no espaço e no tempo sociais (diga-se com mais propriedade aos operadores do Direito, e, ‘a fortiori’, com relação aos Magistrados, levando-se em conta sempre, em relação a estes últimos, o ‘arbitrium boni viri’) para que, num mundo de mudanças, esta consciência hermenêutica seja capaz de fazer com que a eficácia das regras jurídicas se converta em realidade, mas que não deve ensejar uma temerária criação judicial ‘contra legem’, pois “quer se considere a experiência jurídica, estaticamente, na sua estrutura, quer em sua funcionalidade, ou projeção histórica, verifica-se que ela só pode ser compreendida em termos de normativismo concreto, consubstanciando-se nas regras de direito toda a gama de valores, interesses e motivos de que se compõe a vida humana, e que o intérprete deve procurar captar, não apenas segundo as significações particulares emergentes da ‘práxis social’, mas também na unidade sistemática e objetiva do ordenamento vigente” (Miguel Reale. “Teoria Tridimensional do Direito”. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 77).
Festeja-se a vigência de um novo texto, não mais com aquela feição de Código que inspirou o de 1916 (fechado, querendo cobrir retrospectivamente todas as situações jurídicas da vida), mas contemporâneo.
Caberá, como já dito, ao julgador fazer uso de seu “prudente arbítrio ou critério” (que no dizer de Eduardo J. Couture, significa a “Facultad circunstancialmente atribuída a los jueces para decidir sobre los hechos de la causa o apreciar las pruebas de los mismos, sin estar sujetos a previa determinación legal, con arreglo a su leal saber y entender” - “Vocabulario Jurídico: con especial referencia al derecho procesal positivo vigente uruguayo”. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1976, verbete ‘Arbitrio Judicial’), com sensibilidade (de sentir, de sentimento, enfim, de `sentença´ - “Etimología. Del latín ‘sententia, -ae’, voz formada del verbo ‘sentio, -ire’ con la acepción específica de ‘expressar un sentimiento, juzgar, decidir, votar” - Couture, cit., verbete “sentencia” - destaques no original) no conhecimento, na avaliação e na solução dos casos concretos em suas especificidades, ao declarar o que é “de direito” (“‘Juris dicere’ não significa dizer o direito, porquanto quem diz o direito não é o juiz, são os doutrinadores, de um lado, e os legisladores, do outro. O juiz declara o que é ‘de direito’. É por isso que a palavra está no genitivo ‘iuris’, que quer dizer ‘de direito’” - Miguel Reale. “A ética do juiz na cultura contemporânea” In: “Questões de Direito Público”. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 65 - destaques no original).
O correlato princípio da eticidade prende-se à idéia de que o que importa numa codificação é o seu espírito, i. e., de que é um conjunto de idéias fundamentais em torno das quais as normas se entrelaçam, se ordenam e se sistematizam; seu fulcro fundamental é o valor da pessoa como fonte de todos os valores e, por isso, é visto num aspecto mais aberto e compreensivo, sobretudo numa época em que o desenvolvimento técnico-científico e dos meios de informação vem ampliar os vínculos entre os indivíduos e a comunidade. Assim, “Não acreditamos na geral plenitude da norma jurídica positiva, sendo preferível, em certos casos, prever o recurso a critérios ético-jurídicos que permita chegar-se à ‘concreção jurídica’, conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa ou eqüitativa (...) O Código é um sistema, um conjunto harmônico de preceitos que exigem a todo instante recurso à analogia e a princípios gerais, devendo ser valoradas todas as conseqüências da cláusula ‘rebus sic stantibus’. Nesse sentido, é posto o princípio do equilíbrio econômico dos contratos como base ética de todo o Direito Obrigacional” (Miguel Reale. “O Projeto do novo Código Civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal”. São Paulo: Saraiva, 1999, pp. 8-9).
Isso tudo corresponde a uma visão interdisciplinar do Direito entendido como experiência, concreção ou vida humana objetivada e calcado nas diretrizes da cultura contemporânea, permite uma compreensão mais viva do homem situado em circunstâncias, conforme a chamada Ética da situação, e do mundo por ele constituído (ver a respeito, de Miguel Reale: “O Direito como Experiência: introdução à epistemologia jurídica”. São Paulo: Saraiva, 1992 e “Experiência e Cultura: para a fundação de uma teoria geral da experiência”. Campinas: Bookseller, 2000; ver tb. o nosso “Ensino jurídico, interdisciplinaridade e o espírito da nova Lei Civil” In: “Revista de Direito Privado” n° 14 - abril-junho de 2003, São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 07-37).
Como coloca o Desembargador José Renato Nalini: “É um código em que a ética deixa de ser retórica para se converter num ingrediente concreto de todas as relações. Substitui-se o rigor da lei pelo tempero da eqüidade, da boa-fé, da confiança, da solidariedade e de outros princípios éticos (...) Não é por acaso que o código tenha adotado inúmeras cláusulas gerais, de conteúdo flexível, de plasticidade que terá forma definitiva a partir da consciência judicial. O juiz é que vai preencher essas cláusulas abertas, necessariamente fluidas, com o recheio da concreção. A realidade da vida precisa preencher as fórmulas e o juiz cuidará de solucionar as demandas atento à realidade circundante, nunca mais como um espectador inerte e frio da letra da lei” (“Novo tempo, novo código”, Jornal da Tarde, 08/01/03, p. A2).
Daí a fixação de cláusulas gerais abertas, como, por exemplo, o da boa-fé objetiva. Cláusulas gerais abertas são aquelas em “cujo enunciado, ao invés de traçar punctualmente a hipótese e as suas conseqüências, é intencionalmente desenhado como uma vaga moldura, permitindo, pela abrangência de sua formulação, a incorporação de valores, princípios, diretrizes e máximas de conduta originalmente estrangeiros ao ‘corpus’ codificado, bem como a constante formulação de novas normas” (Judith Martins-Costa. “A boa-fé no Direito Privado”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 286), podendo ser reconhecidas, em seu embasamento na Teoria dos Modelos Jurídicos (legais, negociais, costumeiros e jurisprudenciais) de Reale (“Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico”. São Paulo: Saraiva, 1994).
No ensinamento de Judith Martins-Costa, a idéia de boa-fé objetiva, diversamente da que se vê na subjetiva, é “regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses do ‘alter’, visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado (...) Não é possível, efetivamente, tabular ou arrolar, ‘a priori’, o significado da valoração a ser procedida mediante a boa-fé objetiva, porque se trata de uma norma cujo conteúdo não pode ser rigidamente fixado, dependendo sempre das concretas circunstâncias do caso. Mas é, incontroversamente, regra de caráter marcadamente técnico-jurídico, porque enseja a solução dos casos particulares no quadro dos demais modelos jurídicos postos em cada ordenamento, à vista das suas particularidades circunstanciais. Solução jurídica, repito, e não de cunho moral, advindo a sua juridicidade do fato de remeter e submeter a solução do caso concreto à estrutura, às normas e aos modelos do sistema, considerado este de modo aberto” (“A boa-fé no Direito Privado”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, pp. 412-413 - destaques no original).
Em outra manifestação sobre o novo Código, Miguel Reale assim se pronuncia: “Em primeiro lugar, lembro o artigo 113: ‘Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração’. Eis aí duas condicionantes fundamentais - o direito só vale e deve ser aplicado em razão da boa-fé e dos usos e costumes do lugar em que a questão deva ser considerada. Nessa visão ética do direito há uma nova compreensão do que se chama o direito próprio, o individual. Para muitos o individual é absoluto, pois só encontra limite na lei. Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer a não ser em função de determinações legais. Pois bem, o código deixou de se contentar com essa limitação formal da lei e inova o conceito de ato ilícito. Não basta saber o que é lícito, é indispensável também saber o que é ilícito. O artigo 187 determina: ‘Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes’. Notem que é uma alteração de 180 graus. Ter um direito não significa poder fazer o que se quer, mas exercer o direito em função desses três valores que se integram numa unidade cogente: o fim econômico, o fim social, a boa-fé e os bons costumes. É, portanto, uma tomada de posição bem clara, que corresponde, aliás, à diretriz da Constituição de 1988, cujo artigo 1°, de caráter eminentemente preambular, estabelece entre os fundamentos do Estado democrático de direito à dignidade da pessoa humana. Ora, a dignidade da pessoa humana não é senão o embasamento da ética” (“Para novas estruturas, novos paradigmas” In: Cadernos de Problemas Brasileiros, encarte da revista Problemas Brasileiros n. 353, São Paulo: SESC/São Paulo, set./out. de 2002, pp. 2-3). Procurou-se com referido artigo 113 fixar que o titular do negócio jurídico “não é um ‘sujeito de direito abstrato’, mas uma pessoa situada no contexto da suas circunstâncias existenciais. (...) em um complexo de conjunturas e circunstâncias, tal como se dá na ‘Ética da situação’ (“Um artigo-chave do Código Civil” In: “Estudos Preliminares do Código Civil”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pp. 78-79 – destaques no original; tb In: “História do novo Código Civil”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 243). Daí, a confecção, como prolegômeno a toda à teoria dos contratos, do artigo 422: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”
Em decorrência de todo o exposto, o princípio da operabilidade liga-se ao conceito de que é da essência do Direito a sua “realizabilidade”; leva, também, a redigir certas normas jurídicas, que são normas abertas, e não normas cerradas, para que a atividade social mesma, na sua evolução, venha a alterar-lhe o conteúdo. Atende ao aspecto dinâmico da vida do Direito, que pode provocar nas normas mudanças de acepções, quer por um processo de erosão ou, ao contrário, de enriquecimento, em virtude da interferência de fatores diversos: a) do impacto de valorações novas, ou de mutações na hierarquia dos valores dominantes; b) da superveniência de fatos que venham modificar para mais ou para menos os dados da incidência normativa; c) da intercorrência de outras normas, que não revogam propriamente uma regra em vigor, mas interferem no seu campo ou linha de interpretação; d) da conjugação de dois ou até mesmo dos três fatores acima discriminados (Miguel Reale. “Filosofia do Direito”. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 567).
Diz Reale: “O Direito é feito para ser realizado; é para ser operado. Porque, no fundo, o que é que nós somos - nós advogados? Somos operadores do Direito: operamos o Código e as leis, para fazer uma petição inicial, e levamos o resultado de nossa operação ao juiz, que verifica a legitimidade, a certeza, a procedência ou não da nossa operação - o juiz também é um operador do Direito; e a sentença é uma renovação da operação do advogado, segundo critério de quem julga. Então, é indispensável que a norma tenha operabilidade, a fim de evitar uma série de equívocos e de dificuldades” (“O Projeto do novo Código Civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal”. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 10).
Portanto, a norma e a realidade normada não ficam presas às correntes da regra da subsunção, típica de uma estrutura formal-legalista, pela qual o fato, a que se dirige o texto de lei, ganha forma apenas porque é um dado anterior ao caso concreto, servindo-lhe de mero esquema. Ora, o fato não se reduz à norma, pois já é, por si só, dotado de uma carga valorativa. A norma deixa de ser um modelo esquemático ou tão-somente uma moldura para a realidade, passando a ser um modelo funcional, ou seja, com vistas a uma realizabilidade ou concretitude, pois em plena integração dialética com o fato, que, por conter instrinsecamente o componente valorativo, conferirá movimento ao sistema, uma vez que haverá mudança de momento situacional ou contextual.
E, para os mais incrédulos, talvez por um apego maior à forma do código anterior, ou, ainda, por divergência nas razões teóricas de fundo, nunca é demais lembrar, somados aos preceitos constitucionais, as disposições dos artigos 4° e 5°, da LICC, ao se referirem, respectivamente, ao uso da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do Direito e ao atendimento dos fins sociais a que se dirige a lei e às exigências do bem comum; e aquelas atinentes aos artigos 126, 131 e 335, do CPC, que dizem respeito, respectivamente, ao contido no artigo 4° citado, à livre apreciação das provas, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, devendo sempre indicar os motivos que lhe formaram o convencimento, bem como à aplicação da regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial. Sem contar outros critérios de poder geral de cautela, discricionaridade, prudência ou eqüidade não destoantes da ortodoxia jurídica vigente para interpretação e aplicação do Direito.
De qualquer modo, essa concepção predominantemente principiológica do novo Código Civil, de caráter complementar entre os três acima mencionados, tem, sobretudo, o objetivo de se superar aquela visão formalista típica do normativismo legalista, que concebia o Direito como um ordenamento ou sistema fechado, pleno e completo, sem indagar a que ele servia, quer axiológica, quer sociologicamente. |