88 - Lei 11.106/2005: novas modificações ao Código Penal brasileiro. Dispositivos revogados
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RENATO MARCÃO - Promotor de Justiça |
Sumário: 3. Dispositivos revogados; 3.1. Sobre os incisos VII e VIII do art. 107; 3.2. Sobre o art. 217; 3.3. Sobre o art. 219; 3.4. Sobre o art. 220; 3.5. Sobre os arts. 221 e 222; 3.6. Sobre o inciso III do caput do art. 226; 3.7. Sobre o § 3o do art. 231; 3.8. Sobre o art. 240; 4. Considerações finais.
3. Dispositivos revogados Além das modificações anteriormente apontadas e analisadas, e em razão do disposto em seu art. 5º, a Lei 11.106/2005 revogou os incisos VII e VIII do art. 107, os arts. 217, 219, 220, 221, 222, o inciso III do caput do art. 226, o § 3o do art. 231 e o art. 240, todos do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal. Passaremos, a seguir, à análise dos dispositivos revogados, seguindo a mesma ordem de disposição acima indicada.
3.1. Sobre os incisos VII e VIII do art. 107 O art. 107 do Código Penal estabelece de forma exemplificativa algumas causas de extinção da punibilidade, não sendo demais lembrar que punibilidade “é a possibilidade jurídica de o Estado impor a sanção”, conforme a objetiva lição de Damásio de Jesus.(1) Os incisos VII e VIII do art. 107 do Código Penal estabeleciam como causas de extinção da punibilidade o casamento da vítima com o agente e o casamento da vítima com terceiro, respectivamente. Conforme o texto revogado do inc. VII do art. 107 do Código Penal, a punibilidade seria extinta: “pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II, e III do Título VI da Parte Especial deste Código”. Nos termos do revogado inc. VIII do art. 107 do Código Penal, também seria extinta a punibilidade: “pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação pena no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebração”. As disposições acima transcritas abrangiam os crimes de estupro, atentado violento ao pudor; posse sexual mediante fraude, atentado ao pudor mediante fraude, sedução, corrupção de menores e rapto (arts. 213 a 221 do CP), sendo imprescindível observar as ressalvas legais que determinavam limitações ao alcance das regras. Impunha-se a extinção da punibilidade em razão da reparação pelo casamento. Entendia-se que o matrimônio limpava a honra da vítima manchada pelo crime, constituindo, em tese, razão suficiente para a terminação dos questionamentos judiciais acerca dos fatos. Segundo parece ser o entendimento do legislador, o novo tratamento penal apresentado com a Lei 11.106/2005 não permitia a continuidade dos dispositivos antigos. Agora, o casamento não mais constitui causa de extinção da punibilidade, e bem por isso algumas vezes a vítima poderá unir-se em matrimônio com o réu, livre e espontaneamente; formar família, e depois ver o cônjuge condenado pela prática da conduta precedente, ensejadora de procedimento na esfera criminal. Haverá discrepância de conseqüências, pois em se tratando de crimes de ação penal privada a vítima poderá optar pelo não ajuizamento da ação; pela renúncia ao direito de queixa; pelo perdão; e ainda após o ajuizamento da queixa-crime provocar a extinção da punibilidade pela perempção (art. 60 do CPP), caso seja seu desejo, por exemplo, após casar-se com o réu. De outro vértice, em se tratando de crime de ação penal pública tais institutos são inaplicáveis, e sem a possibilidade de extinção da punibilidade em razão do casamento poderá ocorrer a situação acima aventada, danosa à estabilidade da união familiar. O tempo dirá se a mudança foi acertada, entretanto, desde já é possível antever situações onde haverá sério problema sócio-familiar que poderia ser evitado com a permanência das regras extirpadas do art. 107 do Código Penal.
3.2. Sobre o art. 217 O polêmico crime de sedução estava previsto no art. 217 do Código Penal, e segundo a redação típica assim se aperfeiçoava o ilícito: “seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de catorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança”. Nos dias atuais o crime em questão era de difícil configuração em razão da necessária conjugação das elementares que o integravam. Era preciso que a vítima fosse virgem; menor de dezoito e maior de catorze (se for menor de catorze o crime cogitável será o de estupro); inexperiente e ingênua, ou que depositasse justificável confiança em seu sedutor. De longa data a melhor doutrina reclamava a revogação do tipo penal em comento. A jurisprudência também demonstrava a mesma tendência. Não era difícil perceber que a previsão legal não estava ajustada aos dias atuais. A perda da virgindade pela mulher, nas condições do art. 217, já não precisava da proteção penal. Há mais. Qualquer proteção que se pretendesse estabelecer sobre o objeto jurídico da tutela penal em questão (a integridade ou virgindade da menor) prescindia de tipificação conforme o art. 217, haja vista o teor das disposições contidas nos arts. 213 e 214, protetoras da liberdade sexual contra violência ou grave ameaça, e as regras dos arts. 215 e 216 que cuidam das hipóteses em que são empregados meios fraudulentos. Acrescente-se, por derradeiro, que o art. 218 se presta à proteção da moral sexual dos adolescentes de ambos os sexos, já que o tipo penal se refere a “... pessoa maior de catorze e menor de dezoito anos...”. Como se vê, não havia justificação lógica ou jurídica para a permanência do crime de sedução no ordenamento jurídico, e bem por isso a revogação do tipo penal é bem vinda. Em relação ao antigo crime de sedução ocorreu abolitio criminis, sendo aplicável a regra do art. 2º do Código Penal.
3.3. Sobre o art. 219 O art. 219 do Código Penal cuidava do crime de “rapto violento ou mediante fraude”. Conforme a narração típica, configurava referido crime: “Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso”. A pena era de reclusão, de dois a quatro anos. A nova lei aboliu a expressão “mulher honesta” do Código Penal e também cuidou de acrescentar, entre outras regras já analisadas, o inciso V ao §1º do art. 148, com a seguinte redação: “Se o crime é praticado com fins libidinosos”. O art. 148 tipifica o crime de seqüestro ou cárcere privado, contendo formas qualificadas no § 1º, sendo estas punidas com reclusão, de dois a cinco anos. Em razão do disposto no inc. V acrescentado ao § 1º do art. 148 deixou de ser necessária a previsão contida no art. 219 do Código Penal, visto que a conduta deste último artigo passou a ser tratada naqueles dispositivos (art. 148, § 1º, inc. V). A partir da Lei 11.106/2005, privar alguém (homem ou mulher) de sua liberdade, para fins libidinosos, constitui crime de seqüestro ou cárcere privado qualificado, e não rapto.
3.4. Sobre o art. 220 Com o nome de “rapto consensual” o art. 220 do Código Penal estabelecia pena de detenção, de um a três anos, se a raptada fosse maior de catorze e menor de vinte e um anos, e o rapto fosse praticado com seu consentimento” (coloquei o itálico). Em relação a tal ilícito ocorreu abolitio criminis (art. 2º do CP). Muito embora alguns possam sustentar que referida tipificação agora se encontra no inc. IV do §1º do art. 148, acrescido com a Lei 11.106/2005, tal conclusão não é acertada, pois nas hipóteses de seqüestro ou cárcere privado o consentimento válido da vítima impede a tipificação.
3.5. Sobre os arts. 221 e 222 O art. 221 do Código Penal trazia “causas de diminuição de pena” aplicáveis aos crimes dos arts. 219 e 220. O art. 222, também se referindo aos arts. 219 e 220; tratava do concurso de crimes envolvendo rapto. Em razão da revogação dos arts. 219 e 220, não havia qualquer razão justificadora para a permanência dos dois artigos subseqüentes no ordenamento jurídico. Todo o conteúdo do Capítulo III (Do rapto) do Título VI (Dos crimes contra os costumes), arts. 219, 220, 221 e 222; foi revogado expressamente.
3.6. Sobre o inciso III do caput do art. 226 Em sua antiga redação o artigo 226, III, do Código Penal, determinava o aumento de quarta parte da pena, em relação aos delitos a que está vinculado, se o agente era casado ao tempo do ilícito. A nova redação do art. 226 está nos seguintes termos: “A pena é aumentada: I – de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas; II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela”. Foi revogado o inciso III, conforme está expresso no art. 5º da “nova lei”. A regra mais benéfica alcança não só os fatos praticados após a vigência da nova lei, mas também aqueles consumados antes, e isso por força do disposto no parágrafo único do art. 2º do Código Penal, verbis: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.
3.7. Sobre o § 3o do art. 231 Referindo-se ao que antes era denominado crime de “tráfico de mulheres”, e que agora passou a ser “tráfico internacional de pessoas”, o § 3º do art. 231 do Código Penal tinha a seguinte redação: “Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa”. A revogação do § 3º do art. 231 do Código Penal, expressamente anotada no art. 5º da Lei 11.106/2005, deve-se à seguinte mudança: a pena de multa que antes era condicionada ao “fim de lucro” agora é obrigatoriamente cumulativa e está expressa nos §§ 1º e 2º do mesmo artigo. Haveria, pois, flagrante impertinência e descompasso em imaginar possível a permanência do § 3º no ordenamento. É revogação era mesmo de rigor, diante da modificação imposta.
3.8. Sobre o art. 240 O crime de adultério estava previsto no art. 240 do Código Penal, e tinha por objeto jurídico da tutela penal “a organização jurídica da família e do casamento”.(2) Mesmo reconhecendo a importância da proteção jurídica da família e do casamento, é de se concluir que hoje não mais se justifica a proteção penal outorgada pelo legislador de 1940. Não se trata de render homenagens ao adultério. O que é forçoso reconhecer é que o casamento e a família encontram outras formas de proteção no ordenamento jurídico, a exemplo do que ocorre no art. 1.566, inc. I, do Código Civil, que determina o dever de fidelidade recíproca entre os cônjuges. Conforme assevera Claus Roxin(3), o direito penal é de natureza subsidiária. “Ou seja: somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para a vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se”. O direito penal deve ser considerado a ultima ratio da política social, o que demonstra a natureza fragmentária ou subsidiária da tutela penal. Só deve interessar ao direito penal e, portanto, ingressar no âmbito de sua regulamentação, aquilo que não for pertinente a outros ramos do direito. As regras previstas na legislação civil são apropriadas e suficientes, e sendo assim, a revogação do tipo penal em que se encontra o crime de adultério é medida juridicamente saudável e condizente com a realidade jurídico-social em que vivemos.
4. Considerações finais Conforme visto, as modificações introduzidas no Código Penal foram significativas e tendentes à atualização do sistema penal repressivo no que pertine aos delitos alcançados. Embora sujeita a críticas pontuais, é força convir que, em sentido amplo a nova lei contém mais acertos do que erros, contrariando a sofrível realidade da produção legislativa no campo penal nos últimos tempos, o que se espera seja o primeiro passo na escolha de um novo caminho.
Bibliografia (1) Código Penal anotado, São Paulo, Saraiva, 8ª ed., p. 280. (2) DELMANTO, Celso, e outros. Código Penal comentado, 6ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2002, p. 505. (3) Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Vega, 1986. p. 28.
Renato Marcão Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo Mestre em Direito Penal, Político e Econômico Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal (graduação e pós) Sócio-fundador e Presidente da AREJ – Academia Rio-Pretense de Estudos Jurídicos e ex-coordenador do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP) Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP) Membro do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP) Membro do Instituto de Estudos de Direito Penal e Processual Penal (IEDPP) Autor dos livros: "Lei de Execução Penal Anotada" (Saraiva), "Tóxicos – Leis 6.368/1976 e 10.409/2002 Anotadas e Interpretadas" (Saraiva) e "Curso de Execução Penal" (Saraiva).
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