84 - O STF, os crimes hediondos e a in(constitucionalidade) do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90 – tratamento jurídico igual para os desiguais?
SANDRO D'AMATO NOGUEIRA - Advogado |
Por seis votos a cinco, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 8.072/90 que proibia a progressão de regime de cumprimento de pena nos crimes hediondos. O assunto foi analisado no Habeas Corpus (HC) 82959 impetrado por Oséas de Campos, condenado a 12 anos e três meses de reclusão por molestar três crianças entre 6 e 8 anos de idade (atentado violento ao pudor).
Na prática, a decisão do Supremo, que deferiu o HC, se resume a afastar a proibição da progressão do regime de cumprimento da pena aos réus condenados pela prática de crimes hediondos. Caberá ao juiz da execução penal, segundo o Plenário, analisar os pedidos de progressão considerando o comportamento de cada apenado – o que caracteriza a individualização da pena.
Como a decisão se deu no controle difuso de constitucionalidade (análise dos efeitos da lei no caso concreto), a decisão do Supremo terá que ser comunicada ao Senado para que o parlamento providencie a suspensão da eficácia do dispositivo declarado inconstitucional. O Plenário ressaltou, ainda, que a declaração de inconstitucionalidade não gerará conseqüências jurídicas com relação a penas já extintas.
1. COMO FOI O JULGAMENTO. VOTO-VISTA: O julgamento do caso foi retomado hoje (23/2) com a leitura do voto-vista da ministra Ellen Gracie. Ela decidiu acompanhar a divergência levantada pelo ministro Carlos Velloso e indeferiu o habeas. Para Ellen Gracie, ao vedar a progressão de regime nos crimes hediondos, o legislador nada mais fez do que seguir a trilha do constituinte que discriminou determinados delitos, privando seus autores de alguns benefícios penais. “O instituto da individualização da pena não fica comprometido apenas porque o legislador não permitiu ao juiz uma dada opção”, ressaltou a ministra, e acrescentou que a escolha do juiz em matéria de pena está submetida ao princípio da legalidade.
Ellen Gracie concluiu que a restrição não apresenta afronta à norma constitucional que preconiza o princípio da individualização da pena representando apenas opção de política criminal. “É difícil admitir desse grande complexo de normas que constitui o arcabouço do instituto da individualização da pena e da sua execução, que a restrição na aplicação de uma única dessas normas, por opção de política criminal, possa afetar todo o instituto”, declarou.
2. VOTOS FAVORÁVEIS:
O ministro Eros Grau, que votou em seguida, acompanhou o voto do relator, ministro Marco Aurélio, deferindo o HC. Eros Grau ressaltou que a proibição da progressão de regime afronta o princípio da individualização da pena. Sustentou que o legislador não pode impor regra fixa que impeça o julgador de individualizar caso a caso a pena do condenado. “O cumprimento da pena em regime integral, por ser cruel e desumano importa violação a esses preceitos constitucionais”, disse. Por fim, Grau afirmou que a declaração de inconstitucionalidade da proibição da progressão de regime não configurará, de modo algum, a abertura de portas dos presídios já que a decisão final caberá ao juiz da execução penal.
O ministro Sepúlveda Pertence também votou pela inconstitucionalidade da norma. “De nada vale individualizar a pena no momento da aplicação, se a execução, em razão da natureza do crime, fará que penas idênticas, segundo os critérios da individualização, signifiquem coisas absolutamente diversas quanto a sua efetiva execução”.
De acordo com Pertence, “ninguém tem dúvidas de que a mesma pena de três anos de reclusão imposta a alguém que cometeu crime por peculato e ao “vapozeiro” (popular avião) do fornecedor de maconha na favela são coisas diferentes, se uma pode ser cumprida com os mais liberais substitutivos e a outra terá de ser cumprida pelo encarceramento em regime fechado durante toda a sua duração”. Ainda segundo Pertence, “esse movimento de exacerbação de penas como solução ou como arma bastante ao combate à criminalidade só tem servido a finalidades retóricas e simbólicas”. Também já haviam reconhecido a inconstitucionalidade da proibição da progressão de regime, votando com o relator, os ministros Carlos Ayres Britto, Cezar Peluso e Gilmar Mendes. 3. VOTO DO RELATOR: O ministro Marco Aurélio entendeu que a garantia de individualização da pena inserida no rol dos direitos assegurados pelo artigo 5º da Constituição Federal, inclui a fase de execução da pena aplicada e, por isso, não seria viável afastar a possibilidade de progressão do respectivo regime de cumprimento da pena.
Para o ministro-relator, a edição da lei de tortura (9.455/97), que permite a progressão, indica a necessidade de igual tratamento para os outros delitos rotulados hediondos e corresponde a uma derrogação implícita da norma do parágrafo 1º do artigo 2º do mencionado texto legal. O ministro ainda sustentou, em entrevista coletiva à imprensa, que a pena deve ser fixada considerando a figura do preso em si, do seu comportamento na própria prisão e que a progressão só será dada àqueles que a merecerem. Ressalvou que as penas dos crimes hediondos continuam as mesmas e que a decisão do Supremo não incentiva a prática de novos delitos uma vez que o reincidente deve ser punido com a regressão de regime.
4. CONTRA A PROGRESSÃO DE REGIME:
O ministro Celso de Mello acompanhou a divergência aberta por Carlos Velloso. Disse entender que o artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 8072/90 não mantém qualquer relação contrária do que prescreve a Constituição Federal. Celso de Mello sustentou que a fixação da pena e a estipulação dos limites, que oscilam entre o mínimo e o máximo, decorrem de uma opção legitimamente exercida pelo Congresso Nacional. “A norma legal em questão, no ponto em que foi impugnada, ajusta-se ao ordenamento constitucional”, afirmou.
O ministro Nelson Jobim acompanhou a divergência, por entender que o que instruiu a elaboração da Lei 8.072/90 foi a circunstância de que todos os apenados em crimes hediondos, com longa duração de pena que não têm nenhuma perspectiva de liberação, não têm nenhum constrangimento de praticar crimes de dentro do presídio. (www.stf.gov.br) 5. Deste modo, a posição no momento do Plenário do STF é: No entendimento da inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 8.072/90, os ministros:
· Marco Aurélio · Carlos Ayres Britto · Gilmar Mendes · Cézar Peluso · Eros Grau · Sepúlveda Pertence
No entendimento da constitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 8.072/90, os ministros: · Carlos Velloso · Joaquim Barbosa, · Ellen Gracie, · Celso de Mello · Nelson Jobim Lembrando que são considerados crimes hediondos os de homicídio qualificado; latrocínio (roubo seguido de morte); extorsão qualificada pela morte; extorsão mediante seqüestro; estupro; atentado violento ao pudor; epidemia com resultado de morte, falsificação, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais; e genocídio tentado ou consumado. 6. AS ÚLTIMAS DECISÕES DO STF ACERCA DA CONSTITUCIONALIDADE DO § 1º. DO ART. 2º DA LEI 8.072/90
HC 86647 / SP - SÃO PAULO - HABEAS CORPUS
CONSTITUCIONAL. PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME HEDIONDO. REGIME FECHADO. LEI 8.072/90, ART. 2º, § 1º. CONSTITUCIONALIDADE. 1. A inconstitucionalidade do art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90, foi repelida pelo Plenário desta Corte no julgamento do HC 69.657. 2. Enquanto não modificado esse entendimento, subsiste a constitucionalidade do referido dispositivo legal, devendo prevalecer a jurisprudência da Casa, no sentido de que a pena por crime previsto no art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90 deverá ser cumprida integralmente em regime fechado. 3. Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura (Súmula STF nº 698). 4. Ordem denegada.
Decisão: Por maioria, indeferiu-se a ordem, vencido o Senhor Ministro Gilmar Mendes. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Senhores Ministros Celso de Mello e Joaquim Barbosa. Presidiu, este julgamento, o Senhor Ministro Carlos Velloso. 2ª. Turma, 04.10.2005
HC 85142 / SP - SÃO PAULO - HABEAS CORPUS
Decisão: A Turma, por votação unânime, indeferiu o pedido de habeas corpus, nos
RE-AgR 405814 / MG - MINAS GERAIS - AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
EMENTA: - CONSTITUCIONAL. PENAL. PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. CRIME HEDIONDO. REGIME FECHADO. LEI 8.072/90, ART. 2º, § 1º. CONSTITUCIONALIDADE. I. - A pena por crime previsto no art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90 (crime hediondo) deverá ser cumprida em regime fechado. Inocorrência de inconstitucionalidade. C.F., art. 5º, XLIII. Precedentes do STF: HC 69.657/SP, Rezek, RTJ 147/598; HC 69.603/SP, Brossard, RTJ 146/611; HC 69.37
II. 7/MG, Velloso, "DJ" de 16.4.93; HC 76.991/MG, Velloso, "DJ" de 14.8.98; HC 81.421/SP, Néri, "DJ" de 15.3.02; HC 84.422/RS, Joaquim Barbosa, Relator para acórdão, julgado em 14.12.2004. II. - Agravo não provido.
7. O QUE PODE SER CONSIDERADO CRIMES HEDIONDOS E CRIMES PRATICADOS COM HEDIONDEZ ?
Afinal a rotulação dos crimes hediondos está correta? Qual a real definição de crime hediondo ou a definição de crime praticado com hediondez ?
Luiz Flávio Gomes - que sempre está nos passando lições preciosos, em uma de suas palestras sobre o tema comentou sobre o principio da proporcionalidade e da necessidade da adequação em cada caso concreto: ‘’Hoje se você der um beijo lascivo concupiscente literalmente em alguém - em uma praça pública, é considerado crime hediondo, entra no art. 214 do Código Penal - é atentado violento ao pudor, e a pena será de 6 anos, igual a um homicídio simples!” [1, 2]
Lembramos o real conceito dos princípios da ''necessidade da medida, da adequação, da razoabilidade e da proporcionalidade em sentido estrito'' abaixo transcrito (Humberto Ávila. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 89,94,108,116).
Necessidade – O exame da necessidade envolve a verificação da existência de meios que sejam alternativos àquele inicialmente escolhido pelo Poder Legislativo ou Poder Executivo, e que possam promover igualmente o fim sem restringir, na mesma intensidade, os direitos fundamentais afetados. Nesse sentido, o exame da necessidade envolve duas etapas de investigação: em primeiro lugar; o exame da igualdade de adequação dos meios, para verificar se os meios alternativos promovem igualmente o fim; em segundo lugar, o exame do meio menos restritivo, para examinar se os meios alternativos restringem em menor medida os direitos fundamentais colateralmente afetados.
Adequação – A adequação exige uma relação empírica entre o meio e o fim: o meio deve levar à realização do fim. Isso exige que o administrador utilize um meio cuja eficácia ( e não o meio, ele próprio) possa contribuir para a promoção gradula do fim.
Razoabilidade – A razoabilidade estrutura a aplicação de outras normas, princípios e regras, notadamente das regras. A razoablidade é usada com vários sentidos. Fala-se em razoabilidade de uma restrição, razoabilidade do fim legal, razoabilidade da função legislativa.
Proporcionalidade em sentido estrito – O exame da proporcionalidade em sentido estrito exige a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos fundamentais.
Podemos então aí verificar os princípios que podem ser utilizados na individualização da pena prevista na Constituição Federal e na aplicação da pena – conforme o art. 59 do Código Penal. Alexandre de Moraes, comenta sobre os crimes hediondos (Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, 2002, p. 319): “O legislador brasileiro optou pelo critério legal na definição dos crimes hediondos, prevendo-os, taxativamente, no art. 1° da Lei 8.072/90. Assim, crime hediondo, no Brasil, não é o que se mostra repugnante, asqueroso, sórdido, depravado, abjeto, horroroso, horrível, por sua gravidade objetiva, ou por seu modo ou meio de execuções, ou pela finalidade que presidiu ou iluminou a ação criminosa, ou pela adoção de qualquer critério válido, mas o crime que, por um verdadeiro processo de colagem, foi rotulado como tal pelo legislador ordinário, uma vez que não há em nível constitucional nenhuma linha mestra dessa figura criminosa”.
Diante desta colocação e do conceito e interpretação que a maioria de nós temos de “crimes hediondos”, pergunta-se: De fato alguns crimes etiquetados como hediondos, são em sua essência hediondos ?
Assertiva novamente do Prof. Luiz Flávio Gomes, que comenta: '' é justo que nos crimes hediondos, verdadeiramente hediondos, o condenado cumpra somente um sexto da pena e tenha direito à progressão de regime? Não seria o caso de se distinguir alguns crimes, exigir um pouco mais de cumprimento efetivo da pena, para só depois autorizar a progressão? Com a palavra o legislador que, se um dia se livrar de todas as CPIs, talvez encontre tempo para se dedicar a essa relevante questão. (Luiz Flávio Gomes – disponível in: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20050808130905128, pesquisa feita em 26.02.2006).
Alberto Silva Franco, em sua brilhante obra sobre o tema (Crimes Hediondos, pgs, 91 e sgts) comenta que o texto legal pecou, antes de mais nada, por sua indefinição a respeito da locução ''crime hediondo'', contida na regra constitucional. Em vez de fornecer uma noção, tanto quanto explícita, do que entendia ser hediondez do crime – o projeto de lei enviando ao Congresso Nacional sugeria uma definição a esse respeito - , o legislador preferiu adotar um sistema bem mais simples, ou seja, o de etiquetar, com a expressão ''hediondo'', tipos já descritos no Código Penal ou em leis penais especiais.(...) A insuficiência do critério é manifesta e dá azo a distorções sumamente injustas, a partir da seleção feita pelo legislador, das figuras criminosas ou da forma, extremamente abrangente, de sua aplicação pelo juiz. A predeterminação de tipos delitivos, sem fixação conceitual de hediondez, provoca um certo grau de rigidez na aplicação tipológica''. (grifei)
Quase todos os nosso países vizinhos já tiveram sua reforma do CPP, como a Argentina, Guatemala, Costa Rica, El Salvador, Chile, Bolívia e Paraguai, portanto a um contexto mundial que nos favorece, pois já estamos atrasados em relação a esses países, e nos parece que há quase uma unanimidade no mundo jurídico brasileiro para a aprovação da reforma e de mudanças em leis especiais.
8. CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS:
Claro que somos favoráveis a individualização da pena e acreditamos que a aplicação da progressão de regime da pena nos ''crimes hediondos'' possa trazer realmente um contributo a ressocialização do apenado, mas desde que primeiramente o legislador ordinário defina corretamente o que é um crime hediondo e o que é um crime praticado com hediondez ! Deste modo, o magistrado poderá aplicar em cada caso concreto os institutos da individualização e progressão da pena, com o apoio sempre dos princípios norteadores da necessidade da medida, da razoabilidade, da proporcionalidade e da adequação, caso contrário poderemos dar tratamento jurídico igual para situações desiguais !!!
Sandro D'Amato Nogueira é advogado; diretor geral e professor do Instituto Fernando Capez de Ensino Jurídico - Guarulhos-SP; especialista em Direito Ambiental - PUC/SP; conciliador do Juizado Especial Cível na Comarca Guarulhos 2000/2003; membro colaborador do IPAM - Instituto Paulista de Magistrados–SP; membro-honorário da Academia Brasileira de Direito Processual Civil; membro da WSV - World Society of Victimology-USA; Integrante da RNDH - Rede Nacional de Direitos Humanos - www.rndh.gov.br; membro da Comissão de Meio Ambiente da OAB/SP; membro da Associação Brasileiro dos Advogados Ambientalistas. NOTAS E BIBLIOGRAFIA: [1] GOMES, Luiz Flávio. Prisão e Liberdade Provisória. Medidas Cautelares impeditivas e Suspensivas da Custódia. A (In)Constitucionalidade da “Prisão Especial”. Rio de Janeiro. ID Vídeos, 2001. [2] Sobre o caso do beijo lascivo, leia mais in: Luiz Flávio Gomes. Direito Penal – Parte Geral – Introdução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 115.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003.
FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos, 4.ª ed., atual e ampl. São Paulo: Revista do Tribunais, 2000.
MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, São Paulo: Atlas, 2002.
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