79 - Lei 11.106/2005: novas modificações ao Código Penal brasileiro – do lenocínio e do tráfico de pessoas

 
RENATO MARCÃO - Promotor de Justiça
 

Sumário: 2.6. Capítulo V - Do lenocínio e do tráfico de pessoas; 2.7. Mediação para servir a lascívia de outrem; 2.8. Tráfico internacional de pessoas; 2.9. Tráfico interno de pessoas; 2.10. Irretroatividade da lei mais severa; 2.10.1. Reflexo sobre as novas figuras típicas; 2.10.2. Reflexo sobre a pena de multa cumulada.

 

         2.6. Capítulo V - Do lenocínio e do tráfico de pessoas

         Conforme o art. 3º da Lei 11.106/2005, o Capítulo V do Título VI (Dos crimes contra os costumes), da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passou a vigorar com o seguinte título: “Do lenocínio e do tráfico de pessoas”.

         O título passou de: “Do lenocínio e do tráfico de mulheres” para: “Do lenocínio e do tráfico de pessoas” (coloquei o itálico).

         A mudança foi necessária em razão das modificações introduzidas nos arts. 227 e 231 do Código Penal, conforme veremos abaixo.

 

         2.7. Mediação para servir a lascívia de outrem

         Sob o nomem criminis de “mediação para servir a lascívia de outrem” o art.227 do Código Penal tipifica a conduta de “induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem”, estabelecendo pena de reclusão, de um a três anos para a forma simples.

         As formas qualificadas estão elencadas nos §§ 1ºe 2º.

         Em conformidade com o disposto no § 3º, “se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa”.

         A nova lei deu maior abrangência ao § 1º do art. 227, que na redação antiga tinha o seguinte texto: “Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, marido, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda” (coloquei o itálico).

         A nova redação está nos seguintes termos: “Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda” (coloquei o itálico).

         Como se vê, a expressão “marido” foi substituída por “cônjuge ou companheiro”.      De melhor rigor técnico e  em sintonia com as regras que integram o sistema jurídico vigente, a mudança merece aplauso.

         Enquanto a previsão antiga se referia apenas ao marido, cônjuge do sexo masculino, portanto, agora fala em cônjuge ou companheiro. Leia-se: cônjuge do sexo masculino ou feminino; companheiro ou companheira.

         No que tange aos reflexos incidentes sobre os fatos praticados sob a égide do regramento antigo é preciso destacar que não houve qualquer abrandamento em relação ao “marido” que cometeu tal crime, visto que a forma qualificada quanto a este permaneceu intacta, somente com nova linguagem técnica, qual seja: cônjuge.

         Por outro vértice, se a conduta fora praticada antes da nova lei por cônjuge do sexo feminino; por companheiro ou companheira, não estará submetida ao novo tratamento penal. Quanto a estes, somente a partir da vigência da “nova lei” é que se submeterão a seus efeitos penais severos.

         Quanto ao mais, para evitar o enfaro da repetição remetemos o leitor ao que foi dito por ocasião das considerações ao art. 148 do Código Penal (2.1.1.1. Crime praticado contra companheiro), no que for pertinente.

 

            2.8. Tráfico internacional de pessoas

         Outra mudança trazida pela Lei 11.106/2005 está no art. 231 do Código Penal, antes denominado crime de “tráfico de mulheres”.

         Agora o nomem criminis passou a ser “tráfico internacional de pessoas”, e isso em razão da nova redação do art. 231 e também para destacar sua diferença com o novo tipo penal trazido com a “lei nova”, denominado “tráfico interno de pessoas”, expresso no art. 231-A, objeto de apreciação no tópico seguinte.

         A redação antiga do art. 231 tinha o seguinte teor: “Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro” (coloquei o itálico).

         Para a forma fundamental a pena era de reclusão, de três a oito anos.

         Com a nova redação o sistema repressivo passou a punir como crime de “tráfico internacional de pessoas” as seguintes condutas: “Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro” (coloquei o itálico para destacar as mudanças).

         Foi mantida a pena de reclusão no mesmo patamar, contudo, agora ela deverá ser aplicada cumulativamente com pena de multa. Antes da nova lei a imposição de pena de multa só se verificava se o crime fosse cometido com o fim de lucro, conforme a redação do § 3º que acabou revogado. Para o legislador, agora, tal crime sempre será praticado com o fim de lucro, conclusão que não é de todo desacertada.

         A mudança introduzida no caput atualizou o tipo penal com a realidade dos dias hodiernos.

         O verbo intermediar, incluído no caput, tem considerável alcance e por certo proporcionará o enquadramento de muitas condutas convergentes à prática do crime em questão, antes de difícil conformação e ajustamento às hipóteses típicas.

         Enquanto as condutas de promover ou facilitar têm alcance mais restrito, a intermediação completa o rol das condutas típicas que normalmente estão ligadas às infrações de tal natureza e permite não deixar a descoberto; fora da esfera de proteção penal, razoável número de comportamentos que se ajustam ao verbo.

         Enquanto qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime em questão, na antiga redação somente a mulher é que poderia ser sujeito passivo.

         A nova redação deu ao crime uma redefinição e também maior alcance, pois, com a retirada do monopólio do sexo feminino em relação ao pólo passivo, agora qualquer pessoa poderá nele figurar: homem ou mulher.

         A restrição foi derrubada.

         Sensível  à realidade dos dias atuais e conhecendo as práticas que envolvem a exploração sexual em sentido amplo, o legislador reconheceu a necessidade de ampliar, e por isso ampliou, a proteção penal também ao sexo masculino, pois já não é novidade a comercialização e exploração sexual do homem, o que era quase inimaginável no tempo em que se redigiu o Código Penal brasileiro.

         Foram mantidas as redações dos §§ 1º 2º e as penas reclusivas exatamente como antes. Acrescentou-se apenas a pena de multa, agora cumulativamente aplicada.

         A revogação do § 3º, expressamente anotada no art. 5º da Lei 11.106/2005, deve-se à seguinte mudança: a pena de multa que antes era condicionada ao “fim de lucro” agora é obrigatoriamente cumulativa e está expressa nos §§ precedentes.

         Haveria, pois, flagrante impertinência em imaginar possível a permanência do § 3º no ordenamento.

 

         2.9. Tráfico interno de pessoas

         Além da nova tipificação ampliada em relação ao art. 231 a Lei 11.106/2005 também criou novo tipo penal.

         Para o aperfeiçoamento do sistema punitivo, além de punir o tráfico internacional de pessoas agora com maior amplitude, o legislador cuidou de tipificar o crime de “tráfico interno de pessoas”, estabelecendo como crime previsto no art. 231-A do Código Penal as condutas de: “Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição”. A pena abstratamente prevista é de reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, exatamente como a pena prevista para o art. 231, caput, e por força do disposto em seu parágrafo único, ao crime de tráfico interno de pessoas também são aplicáveis as regras dos §§ 1º e 2º do art. 231.

         O objeto jurídico da tutela penal é a honra sexual; a lei também visa proteger os bons costumes.

         Qualquer pessoa poderá figurar como sujeito ativo, independentemente do sexo, ocorrendo o mesmo em relação ao sujeito passivo.

         O elemento subjetivo do tipo é o dolo. Basta o dolo genérico.

         A consumação ocorre com a prática efetiva de pelo menos uma das condutas descritas no tipo penal, sendo admissível a forma tentada (art. 14, II, co CP).

         A figura do art. 231-A é tipo alternativo, de conduta variada.

         Promover significa dar impulso, colocar em execução (de qualquer forma); intermediar quer dizer servir de intermediário ou mediador; facilitar, aqui, tem o sentido de desembaraçar, tornar mais simples, dar maior agilidade.

         Recrutamento é a reunião; agrupamento ou alistamento de pessoas. Não é preciso que o recrutamento envolva várias pessoas; basta uma para a configuração do ilícito.

   Transporte é o deslocamento de um lugar a outro. Enquanto o agente estiver promovendo o transporte o crime será de natureza permanente, assim considerado aquele cuja conduta delituosa se mantém no tempo e no espaço.

   Transferência significa mudança de um lugar a outro. Há uma sutil diferença entre esta conduta e a anterior (transporte). Enquanto transporte tem o sentido de levar alguém para local em que se pratica a prostituição (para os fins do tipo legal), a transferência pressupõe a mudança de um lugar onde se pratica a prostituição para outro de igual destinação.

         Alojamento é local específico destinado ao abrigo de pessoas.

         Acolhimento, para os termos do tipo penal, significa receber alguém em local não destinado ao alojamento. Acolher é dar amparo, guarida; dar refúgio, proteção ou conforto físico.

         É preciso que as práticas acima analisadas tenham por alvo “pessoa que venha a exercer a prostituição”. Exercer a prostituição é prostituir-se; dedicar-se ao comércio sexual; à satisfação voluntária da lascívia de outrem em troca de vantagem.

         Para a adequação típica é preciso, ainda, que tais condutas tenham ocorrido no território nacional, pois se uma das práticas tocar território estrangeiro a figura penal será a do art. 231 (observados os parâmetros da tipificação), e não a do art. 231-A.

         A pena abstratamente prevista afasta a possibilidade de suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), e eventual condenação até 4 (quatro) anos não impedirá a substituição da privativa de liberdade por restritiva de direito, desde que presentes os demais requisitos exigidos em lei. Se fixada a privativa de liberdade até o limite acima indicado, seu cumprimento poderá iniciar-se no regime aberto, observadas as disposições do art. 33 c.c. o art. 59, ambos do Código Penal.

        

         2.10. Irretroatividade da lei mais severa

         2.10.1. Reflexo sobre as novas figuras típicas

         As inovações acrescidas ao § 1º do art. 227 e ao caput do art. 231, e bem assim a nova figura penal do art. 231-A, obviamente não se aplicam aos casos consumados antes da vigência da Lei 11.106/2005.

         Princípios de contornos constitucionais como o da anterioridade da lei (princípio da legalidade ou reserva legal) e da irretroatividade da lei penal mais severa (art. 5º, incs. XXXIX e XL, da CF), também previstos no art. 1º do Código Penal, impedem a retroação do alcance do texto novo para atingir situações consumadas ao tempo em que a regulamentação normativa era outra, mais benéfica.

         De tal sorte, para os termos do novo art. 227 do Código Penal, somente os crimes praticados por cônjuge do sexo feminino; companheiro ou companheira, após a vigência da nova regulamentação penal é que se submeterão à forma qualificada do § 1º.

         Nessa mesma linha argumentativa, as inovações dos arts. 231 e 231-A só incidirão sobre fatos praticados sob a égide da nova ordem penal. Observe-se, contudo, que em relação à prática do verbo “transporte”, previsto no art. 231-A, onde a conduta é de natureza permanente, poderá ocorrer hipótese em que ele venha a perdurar vários dias. Sendo assim, se iniciado antes da vigência da lei nova, o transporte se estender para além do início da exigência do texto novo, poderá ocorrer prisão em flagrante, por exemplo, e regular processo com a nova definição típica.

 

         2.10.2. Reflexo sobre a pena de multa cumulada

         A experiência da vida contemporânea, pautada pela febre do enriquecimento, indica que muitas vezes a pena de multa poderá surtir efeitos econômicos e psicológicos no réu, bem mais severos que a ameaça ou imposição de pena privativa de liberdade.

         É forçoso reconhecer, entretanto, que para tal realidade seria necessário um sistema de execução mais eficaz do que o determinado com a redefinição da pena de multa como dívida de valor, nos termos da Lei 9.268/96.

         Pelas mesmas razões expostas no item anterior, a pena de multa agora cumulativamente imposta não obriga o aplicador da lei em relação aos fatos passados, consumados antes da vigência do texto novo.

         Para os casos consumados antes da Lei 11.106/2005, com ou sem investigação ou processo de conhecimento iniciado antes de 29 de março de 2005 (data em que a lei entrou em vigor), já não subsiste qualquer possibilidade de aplicação de pena de multa, ainda que o crime tenha sido cometido com o fim de lucro, e isso em razão da revogação expressa do §3º do art. 231 (cf. art. 5º da nova lei).

         Aqui é forçoso reconhecer que a pena de multa deixou de existir para os casos passados. Não há como se restabelecer a vigência do § 3º. A revogação expressa é causa intransponível e obstativa de tal possibilidade.

 

 

Renato Marcão

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo

Mestre em Direito Penal, Político e Econômico

Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal (Graduação e Pós)

Sócio-fundador e Presidente da AREJ – Academia

Rio-pretense de Estudos Jurídicos, e ex-coordenador

do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia

Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP)

Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim)

Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP)

Membro do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP)

Membro do Instituto de Estudos de Direito Penal e Processual Penal (IEDPP)

Autor dos livros: "Lei de Execução Penal Anotada";

"Tóxicos – Leis 6.368/1976 e 10.409/2002 Anotadas e Interpretadas"e

"Curso de Execução Penal" (Editora Saraiva)

 


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