77 - Da inconstitucionalidade do salário mínimo como indexador de pensões, inclusive as decorrentes de indenização por ato ilícito

 
MARCO ANTONIO GOMES DA SILVA - Advogado
 

Sua Majestade me manda advertir a Vossa Mercê que as Leis costumam ser feitas com muito vagar e sossego, nunca devem ser executadas com ace­leração, e que nos casos crimes sempre ameaçam mais do que na realidade mandam, devendo os Ministros executores delas modificá-las em tudo o que lhes for possível, porque o Legislador é mais empenhado na conservação dos vassalos do que nos castigos da justiça; e não quer que os minis­tros procurem achar nas Leis mais rigor do que elas impõem.[1]

 

 

 

 

Já vai longe o tempo em que se consolidou a Súmula nº 490, do Supremo Tribunal Federal, a qual enuncia:

 

A pensão correspondente à indenização oriunda de responsabilidade civil deve ser calculada com base no salário mínimo vigente ao tempo da sentença e ajustar-se-á às variações ulteriores.

 

O dispositivo em foco balizou-se nos precedentes daquela Corte Suprema nos Recursos Extraordinários de números 42789 (embargos infringentes), DJ de 3/5/1967; 55284, DJ de 8/6/1967; 57505, DJ de 30/8/1967; 64558, DJ de 7/6/1968; 64812, DJ de 11/10/1968.

           

Referido comando sumular é interpretado, ainda hoje, por remansosa jurisprudência, como autorizador da burla à parte final do comando constitucional gravado no art. 7º, inciso IV, da Carta de 1988, cujo teor é o seguinte:

 

... salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.

 

Nele, primeiro define-se salário mínimo, o que é imprescindível; em seguida, fixa-lhe uma proteção, uma redoma, uma garantia - “reajustes[2] periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo” - e, afinal, estipula-se uma proibição inerente a que seja, ou sirva, de instrumento de vinculação para qualquer fim.

 

A defesa do ponto de vista hoje prevalente argumenta que, na espécie, o salário mínimo é o próprio valor da indenização na forma de renda mensal de caráter alimentar, servindo, portanto, como pagamento da aludida verba, quando então não há de se cogitar proibição constitucional. A nosso ver o raciocínio não possui suporte jurídico, pois tenta, por meio de um “biombo dialético[3]” sobrepor-se à vedação normativa expressa[4]. O fato de cuidar-se de verba alimentar não lhe atribui caráter excepcional, pois o salário ou remuneração percebido por qualquer trabalhador, urbano ou rural, também possui mencionada natureza jurídica, e nem por isso a esse é garantida a indexação de rendimentos ao salário mínimo e suas variações posteriores. Ao revés, dito obreiro somente é protegido de perceber, à guisa de contraprestação de serviços, valor inferior àquele. De igual modo, o fato de traduzir-se em indenização, não desnatura a real natureza dessas prestações periódicas, senão de benefício pensional, pois, é cediço em direito, que ao intérprete, seja ele quem for, não é dado diferençar onde a lei não o faz. 

Nessa linha de raciocínio, é paradigmática a ementa do RE nº 242.740, relatado pelo Ministro Moreira Alves, DJ de 18/5/2001:

 

Pensão especial cujo valor é estabelecido em número de salários mínimos. Vedação contida na parte final do artigo 7º, IV, da Carta Magna, a qual tem aplicação imediata. - Esta Primeira Turma, ao julgar o RE 140.499, que versava caso análogo ao presente, assim decidiu: "Pensões especiais vinculadas a salário mínimo. Aplicação imediata a elas da vedação da parte final do inciso IV do artigo 7º da Constituição de 1988. - Já se firmou a jurisprudência desta Corte no sentido de que os dispositivos constitucionais têm vigência imediata, alcançando os efeitos futuros de fatos passados (retroatividade mínima). Salvo disposição expressa em contrário - e a Constituição pode fazê-lo -, eles não alcançam os fatos consumados no passado nem as prestações anteriormente vencidas e não pagas (retroatividades máxima e média). Recurso extraordinário conhecido e provido". Dessa orientação divergiu o acórdão recorrido. A vedação constante da parte final do artigo 7º, IV, da Constituição, que diz respeito à vinculação do salário mínimo para qualquer fim, visa precipuamente a que ele não seja usado como fator de indexação, para que, com essa utilização, não se crie empecilho ao aumento dele em face da cadeia de aumentos que daí decorrerão se admitida essa vinculação. E é o que ocorre no caso, em que a pensão especial, anteriormente à promulgação da atual Constituição, foi instituída no valor unitário mensal sempre correspondente a seis vezes o salário mínimo, o que implica dizer que o salário mínimo foi utilizado para o aumento automático da pensão em causa sempre que houvesse majoração de seu valor. Isso nada tem que ver com a finalidade do salário mínimo como piso salarial a que qualquer um tem direito e que deve corresponder às necessidades básicas a que alude a Constituição, pois, em casos como o presente, não se está estendendo à pensão a norma constitucional (art. 7º, IV) que diz respeito ao piso salarial - ou seja, que nenhum trabalhador pode perceber menos que o salário mínimo -, o que ocorreria - e aí seria válido o argumento de que a pensão tem por finalidade atender às mesmas garantias que a Constituição concede ao trabalhador - se a pensão em causa fosse estabelecida no valor de um salário mínimo. E não é demais atentar para a circunstância de que, mesmo com relação a salário, a vedação de sua vinculação ao salário mínimo se aplica se, porventura, se estabelecer que o salário de certo trabalhador será o de "valor correspondente a algumas vezes o salário mínimo", pois aqui não se está concedendo a ele a garantia constitucional do artigo 7º, IV, mas, sim, se está utilizando o salário mínimo como indexador para aumento automático de salário de valor acima dele. Recurso extraordinário conhecido e provido. (grifo nosso).

 

 

Aliás, em matéria previdenciária, dúvida não existe quanto à negativa de se ter o salário mínimo como indexador dos benefícios percebidos. Eis o excerto do Voto do Ministro Jorge Scartezzini, do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial - REsp nº 462.979, DJ de 17/3/2003:

 

De fato, esta Corte Superior tem entendimento pacificado no sentido de que a Súmula 260/TFR, aplicada aos benefícios concedidos antes da promulgação da Constituição de 1988 e em vigor até o sétimo mês subseqüente à promulgação da Lei Maior, não vincula o reajuste do benefício à variação do salário mínimo.

 

A fórmula adotando a incorporação de índices de reajustes em função do número de salários mínimos, estabelecida pelo artigo 58 do ADCT, foi tão-somente aplicada aos benefícios em manutenção em outubro de 1988, e limitada ao período de abril/89 a dez/91.

 

A partir desta última data, o modo de cálculo dos reajustes previdenciários, consoante os critérios da Lei 8.213/91, art. 41, II – Planos de Benefícios da Previdência Social -  não acolhe o princípio da vinculação ao número de salários-mínimos e fixa o INPC e sucedâneos legais como índices revisores dos benefícios.

 

No mesmo sentido, os Acórdãos proferidos nos recursos especiais de números 600.175, DJ de 2/8/2004; 552.711, DJ de 19/12/2003; 462.630, DJ de 31/3/2003, entre outros.

 

Exceção à referida regra, cuja regulamentação foi feita na Lei nº 7.986, de 28 de dezembro de 1989, está no caput do art. 54 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, o qual enuncia que:

 

Art. 54. Os seringueiros recrutados nos termos do Decreto-Lei nº 5.813, de 14 de setembro de 1943, e amparados pelo Decreto-Lei nº 9.882, de 16 de setembro de 1946, receberão, quando carentes, pensão mensal vitalícia no valor de dois salários mínimos.

 

Nesse diapasão, é consabido que não há inconstitucionalidades no texto exordial da Constituição[5] visto os respectivos comandos foram emanados do Poder Constituinte originário. Dele, por inaugural, originário, são adequadas todos as normas. Por decorrência, o juízo de inconstitucionalidade só poderá ser aplicado, e atingir, às respectivas emendas constitucionais.

 

Ora, a questão central cinge-se a delimitar o papel a ser desempenhado por um instituto e outro: salário mínimo e indexadores da economia. Mais diretamente, é não gerar o verdadeiro quid pro quod que se alastra na jurisprudência do país. Salário mínimo, pedindo vênia pelo eco repetitivo dos vocábulos, é minimum minimorum para a contraprestação pelo trabalho, em geral não especializado. Tem sua definição e função gravados na Lei Maior, é direito de natureza social. Já os números índices definidores da inflação são empregados pela economia no desiderato de fornecer paradigma à desvalorização do poder de compra da moeda num dado período, destinando-se, ademais, a corrigir, por meio de um fator, que afinal reflete uma média ponderada, a depreciação de certa unidade monetária. Esses constituem-se um minus, não um plus.

 

Assim, no âmbito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios – TJDFT, v.g. Acórdãos – 1ª Turma – de números 227097, DJ de 13/10/2005, e 232194, DJ de 13/12/2005, em se cuidando do seguro obrigatório visando a cobertura de danos causados por veículos automotores, o DPVAT, já assentou que:

 

...não há incompatibilidade entre a norma especial da lei 6.194/74 e a legislação que veda o uso do salário mínimo como fator de correção monetária, haja vista que este é utilizado apenas como base de cálculo do ressarcimento e não como indexador.

 

Cabe aduzir, nesse ponto, que assiste razão ao decisum, pois para tomá-lo como indexador deveria haver pagamentos sucessivos, e mesmo diferidos ao longo do tempo ao mesmo beneficiário, aí sim demonstrando tratar-se o uso como se número índice da economia fosse. Ao que se extrai, referida paga, na forma dos ditames fixados pela lei, opera-se em uma, e somente uma, oportunidade. Daí não se extrair seja aplicado como instrumento de correção de quantum monetário.

 

Com razão, também, o Supremo Tribunal Federal ao apreciar o Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº 389.989/RR, relatado pelo Ministro Pertence, DJ de 5/11/2004, em que se ementou:

 

Vinculação ao salário mínimo: a vedação do art. 7º, IV, da Constituição, restringe-se à hipótese em que se pretenda fazer das elevações futuras do salário mínimo índice de atualização da indenização fixada; não, qual se deu no acórdão recorrido, se o múltiplo do salário mínimo é utilizado apenas para expressar o valor inicial da condenação, a ser atualizado, se for o caso, conforme os índices oficiais da correção monetária.

 

 

Tecidas as considerações precedentes, conflita com a Constituição a olhos vistos o uso do salário-mínimo como índice de correção monetária, mesmo que disfarçado, inclusive em pensionamentos decorrentes de ato ilícito, posto que o comando constitucional proíbe vinculação à aludida verba para qualquer fim, ou seja, finalidades tendentes a que esse funcione como índice monetário. 

 

Haja vista o asseverado, entendemos, na hipótese, ser possível adotar exegese compatível à Constituição. A técnica consistiria em dividir os diferentes, tratando-os de modo diverso. Dessarte, o pagamento da parcela igual ou inferior ao salário mínimo, tendo esse por base de cálculo não afronta ao sentido da norma do art. 7º, inciso IV, da Lex Legum, pois entendimento diverso levaria ao desprezo do conceito de quantia mínima para sobrevivência cum dignitate, e ao irrazoável desprezo do salário mínimo como garantia de sede constitucional Em resumo, situações em que o quantum devido a título de alimentos é menor ou igual ao mínimo, a correlação entre esse e o valor pago decorre da definição da sua própria finalidade garantista, qual seja a “satisfação das necessidades vitais básicas (...) com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. De tal patamar não pode, com efeito, distanciar-se, sob pena de evidente aviltamento.

 

Quanto ao valor que sobeje ao minimum, esse estaria sujeito à correção monetária ordinariamente aplicável no sistema financeiro nacional. Como sugestão, poder-se-ia aplicar o Índice Nacional de Preços ao Consumidor - INPC, calculado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, o qual é o parâmetro eleito pela Lei nº 10.887, de 29 de junho de 2004, em se tratando do cálculo do benefício a ser pago, sob o título de pensões ou proventos, no sistema público de previdência, a teor das diretrizes fixadas pela Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003.

 

Nesse sentido, para um valor fixado originalmente em dois salários mínimos, por exemplo, aplica-se a correção integral do salário mínimo a apenas um dos valores, fato que se trata de verba alimentar e protegida no conceito de salário mínimo; no entanto, sobre o outro incidirá número índice que reflita a variação inflacionária correntemente aceito na economia, aliás criado para esse fim.

 

Digno de nota que a recentíssima Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005, que revoga dispositivos relativos à execução fundada em título judicial, ao tempo em que estabelece a chamada fase de cumprimento das sentenças no processo de conhecimento, substituindo o avoengo processo de execução, em seu inserto art. 475-Q, § 4º, reza, em se tratando de indenização por ato ilícito que incluir prestação de alimentos, que esses poderão ser fixados tomando por base o salário-mínimo. Ora, de fato, conforme já se declinou neste opúsculo, nada obsta, em verdade, que se fixe inicialmente a prestação de alimentos valendo-se daquele parâmetro. O que se caracteriza como desconforme à Constituição, como salientado alhures, seria vincular-se a prestação periódica ao citado referencial e sua correção, periodicamente, como se índice de correção monetária fosse. Donde se infere, que o comando aludido, se assim aplicado a casos concretos, padece, a nosso sentir, da eiva de inconstitucionalidade material.

 

Em conclusão, na esteira do exposto, é juridicamente incompatível ao Texto Maior qualquer utilização do salário mínimo com o fito de atualizar seu valor a partir de tal paradigma quando se exceda ao respectivo valor unitário, este traduzido como garantia constitucional. Excetua-se à hipótese, por expressa opção do constituinte original, tão-somente o art. 54 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

 

 

MARCO ANTONIO GOMES DA SILVA é advogado pela OAB/DF, atuando em Porto Velho/RO. Bacharel em direito pela AEUDF, atual UniDF. Analista de controle externo do Tribunal de Contas da União desde 1995, por aprovação em concurso público.

 

Bibliografia:

 

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2005.

CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1986.

CALAMANDREI, Piero. Eles os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

LLOYD, Dennis. A idéia de lei. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2005.

ROSENN, Keith S.. O Jeito na cultura jurídica brasileira. Rio de Janeiro: RENOVAR, 1997.

SANTOS, Gustavo Ferreira. O Princípio da Proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

 



[1] Carta Régia de 20 de janeiro de 1745, expedida por Dom João V ao Corregedor do Crime da Corte apud ROSENN, Keith S., in O Jeito na cultura jurídica brasileira, RENOVAR, Rio de Janeiro, 1997.

 

[2] A nosso ver, o conceito de reajuste diferencia-se do de revisão. Nesse sentido, no reajuste atribui-se no mínimo a correção por índice inflacionário tecnicamente hábil para tal finalidade, e.g. INPC, do IBGE. Assim, a condição de preservar o poder aquisitivo é mero pleonasmo visando enfatizar tal característica. Entrementes. na revisão não há  parâmetro mínimo, nem por isso deve-se conceder índice aberrante pela insignificância. O limite, isto é, o piso mínimo, na hipótese, fia-se na razoabilidade da atuação do concedente via negociação coletiva.

 

[3] Expressão cunhada por Piero Calamandrei in Eles os juízes, vistos por um advogado, p. 191, ao abordar o tema “Do sentimento e da lógica nas sentenças”, em que “muitas vezes os motivos declarados são bem diferentes dos verdadeiros”. Adiante, salientou que “com muita freqüência a fundamentação oficial nada mais é que um biombo dialético para ocultar os móbeis verdadeiros, de caráter sentimental ou político”.

 

 

[4] Em matéria de interpretação constitucional, uma vedação não é mero conselho. Apóia, a nosso entender, referido ponto de vista o Princípio da Máxima Efetividade, que, segundo Gustavo Santos Ferreira in O Princípio da Proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Lumen Juris, 2004,  onde tal assertiva “resume o dever do intérprete/aplicador de, dentre os diversos possíveis sentidos da norma a ser interpretada, optar pelo sentido que lhe empreste maior eficácia ou efetividade...”.

 

[5] Posição defendida por expoentes do constitucionalismo moderno a exemplo de José Joaquim Gomes Canotilho in Direito Constitucional, Livraria ALMEDINA, 1986, que, referindo-se a SIEYÉS,  obtempera que o poder constituinte seria “... um poder inicial, autônomo e onipotente. É inicial porque não existe, antes dele, nem de fato nem de direito, qualquer outro poder. É nele que se situa, por excelência, a vontade do soberano (instância jurídico­-política dotada de autoridade suprema). É um poder autônomo: a ele e só a ele compete decidir se, como e quando, deve dar-se uma constituição à Nação. É um poder onipotente, incondicionado: o poder constituinte não está subordinado a qualquer regra de forma ou de fundo”.

 


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