A Lei 8.245/91 teve em mira disciplinar as relações locatícias tanto no campo do direito material, quanto no campo do direito processual, daí decorrendo o seu caráter manifestamente híbrido.
No que diz com o aspecto processual, sobre o qual a nossa atenção recairá, pretendeu a Lei 8.245/91, em princípio, tornar mais célere as ações envolvendo as relações locatícias, mitigando, assim, os prejuízos decorrentes da inadimplência do locatário. E, visando atingir a pretendida celeridade processual, previu o legislador, entre outros mecanismos, a possibilidade da ação de despejo ser cumulada com a ação de cobrança dos aluguéis e acessórios da locação (artigo 62, I)[1].
Antes mesmo da cumulação objetiva permitida pela Lei 8.245/91, o Código de Processo Civil de 1973, por intermédio do artigo 585, IV, já classificava o crédito decorrente de aluguéis como um título executivo extrajudicial, de modo a viabilizar a sua pronta execução[2].
Ocorre que, com o advento da Lei 8.245/91, cujo artigo 62, I, segundo dito, contemplou a referida cumulação objetiva, os créditos decorrentes das locações representadas por contrato escrito passaram a ser submetidos, em nítido retrocesso processual, ao complexo, moroso e desnecessário processo de conhecimento (= cobrança). Desta forma, o propósito do legislador acabou, por conta da equivocada aplicação dada pelos profissionais do direito ao citado artigo 62, I, carecendo de eficácia prática, de modo a não atingir a economia processual visada pela Lei 8.245/91.
Expliquemos, pois.
Com efeito, pela interpretação literal e isolada dos artigos 61, I da Lei 8.245/91 e 585, VI do Código de Processo Civil, poderíamos afirmar a conclusão segundo a qual a satisfação judicial do débito locatício seria atingida tanto pela ação de cobrança cumulada com ação de despejo, quanto pela ação de execução, dando, assim, a falsa idéia de concorrência. Ainda sob essa perspectiva literal, caberia ao locador optar por uma daquelas duas vias judiciais para a satisfação do seu crédito.
Ocorre que, com a devida vênia das opiniões em sentido contrário, a ação de cobrança e a ação de execução não se afiguram concorrentes, tampouco poderá o credor – locatário, de acordo com as suas conveniências, adotar a via processual que mais lhe aprouver.
De fato, sob os estritos domínios do processo civil, com os quais os profissionais do direito deverão operar, impõe-se diferençar o pedido condenatório, contemplado pelo citado artigo 62 da Lei 8.245/91, do pedido executivo, contemplado pelo citado artigo 585 do CPC. Enquanto o primeiro pedido, dito condenatório, guarda referência com àquelas situações jurídicas nas quais o credor não ostenta um título executivo extrajudicial ou judicial (assim entendido, aqueles documentos previstos no rol do art. 585 e 584, CPC); o segundo pedido, dito executivo, guarda referência com situações jurídicas nas quais o credor ostenta um título executivo judicial ou extrajudicial.
E, notem, precisamente deste diferencial, revelado, repise-se, pela ausência ou presença do título executivo, que decorrerá o critério de escolha entre a ação de execução e a ação de cobrança cumulada com a ação de despejo.
Querem essas breves considerações significar, em síntese, que estando a relação jurídica obrigacional aparelhada por um título executivo, eventual inadimplemento terá o seu cumprimento exigido imediatamente no processo de execução; agora, diferentemente, estando a relação jurídica obrigacional à revelia de título executivo, eventual inadimplemento terá o seu cumprimento exigido no processo condenatório, através do qual o credor obterá uma sentença condenatória civil em desfavor do devedor e, com o seu trânsito em julgado, instaurará o processo de execução.
Neste ritmo de idéias, ostentando o título executivo e, por conseguinte, direito à ação de execução, o credor, por certo, carecerá de interesse de agir para o ajuizamento da ação condenatória; contrariamente, se não detiver título executivo, deverá o credor, obrigatoriamente, ingressar com a ação condenatória para, somente ao depois, formado o título executivo, valer-se da via executiva.
A par disso, quer-nos parecer não-razoável e contrário às regras processuais que o locador, detendo contrato de locação escrito (= título executivo extrajudicial), percorra primeiro o processo condenatório para, com o seu esgotamento, iniciar o processo de execução. Isso porque, diante da existência do contrato de locação escrito, poderá o credor ingressar diretamente com a ação de execução, faltando-lhe, portanto, interesse no ajuizamento da ação condenatória.
Sobre o tema, discorrendo sob o título “INFUNGIBILIDADE DA AÇÃO DE EXECUÇÃO PELA AÇÃO DE COBRANÇA DE RITO ORDINÁRIO”, vale reproduzir a lição do Professor Sérgio Shimura:
“Sob o regime vigente, via de regra, não se permite a substituição da ação de execução pela ação de conhecimento, quando aquela for cabível.
Em primeiro lugar, não haveria interesse de agir na propositura da ação de conhecimento. Quem já é portador de título executivo não tem interesse na ação de conhecimento, seja pelo rito ordinário, seja pelo rito sumário. A finalidade da ação de cobrança é a formação de título executivo que torne o autor habilitado à execução; se ele já dispõe de título com força executiva, não tem interesse na obtenção de sentença condenatória.
Para propor ou contestar uma ação, é necessário ter interesse (art. 3º, CPC). Verifica-se a existência do interesse de agir pelo binômio necessidade + utilidade. Se a parte lesada tiver a necessidade de recorrer ao Poder Judiciário para obter a tutela jurisdicional e a medida postulada for útil – utilidade esta focalizada aos prisma de uma posição jurídica mais vantajosa na prática – à satisfação de seu direito, então há interesse.
Dentro da noção de utilidade, tem-se a idéia de adequação. Isto é, se a medida for adequada, o provimento será útil. Com a adequação, tem-se uma maximização (otimização) dos resultados da medida, eximindo a máquina judiciária de trabalhar inutilmente. O mecanismo judiciário não pode trabalhar à toa. É importante que o processo aponte para um resultado capaz de ser útil ao demandante, removendo o óbice posto ao exercício do seu suposto direito, e útil também segundo o critério imposto pelo Estado.
(...)
Assim, o credor, já detentor de título executivo, não logrará obter uma proposição jurídica mais privilegiada, no plano prático, se propuser uma ação de cognição, de natureza condenatória ou declaratória, apenas para se forrar de um grau maior de certeza, em vez de executar.”[3]
No nosso sentir, a necessidade do processo de cobrança só virá à baila para as locações realizadas mediante contrato verbal de locação, nas quais, à mingua de título executivo, será o credor obrigado a obter, pelo processo de conhecimento, uma sentença condenatória civil que lhe franqueie o processo de execução.
Nesse sentido, queremos acreditar que o legislador, ao prever a possibilidade da cumulação do pedido de rescisão com o de cobrança (art. 62, I da Lei 8.245/91), teve em mira, exclusivamente, as relações locatícias regidas por contrato verbal, nada tendo, embora uma interpretação literal possa assim induzir, com àquelas regidas por contrato escrito. Ora, optar pela via da cobrança ao invés da execução, quando se tem um contrato de locação sob a forma escrita (título executivo), seria percorrer a via judicial mais árdua e demorada para o recebimento do crédito locatício, em flagrante atrito com o princípio da economia processual. Seria algo tão desarrazoado com imaginar, a título de exemplo, um sujeito detendo condições para se aposentar pelo requisito do tempo de serviço, pretender fazê-lo pelo requisito da idade e, para tanto, ter que aguardar mais cinco anos.
Portanto, na medida em que a ação de execução e a ação condenatória afiguram-se incompatíveis entre si, não cabendo se cogitar, portanto, em concorrência, e, ainda, considerando-se que o contrato de locação escrito encerra verdadeiro título executivo, decorre, dessas premissas, que o artigo 62, I da Lei 8.245/91 só deverá ser aplicado às relações locatícias representadas por contrato verbal.
RICARDO AMIN ABRAHÃO NACLE é advogado em São Paulo; pós-graduado em Direito Processual Civil pela PUC/SP - COGEAE. Foi Presidente do Conselho de Apoio do Instituto de Aperfeiçoamento ao Direito do Estado – IADE. Co-autor do livro “Temas Controvertido de Processo Civil”, Editora Forense.
[1] “Art. 62. (...). I – o pedido de rescisão da locação poderá ser cumulado com o de cobrança de aluguéis e acessórios da locação, devendo ser apresentado, com a inicial, cálculo discriminado do valor do débito.”
[2] “Art. 585. São títulos executivos extrajudiciais: IV – o crédito decorrente de foro, laudêmio, aluguel ou renda de imóvel, bem como encargo de condomínio desde que comprovado por contrato escrito;”
[3] In Título Executivo, Saraiva : São Paulo, 1.997, pp. 165/66.
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