54 - Reflexões sobre o artigo 194 do Estatuto da Criança e do Adolescente
JEFFERSON BARBIN TORELLI - Juiz de Direito |
E. C. A. Art. 194. O procedimento para imposição de penalidade administrativa por infração às normas de proteção à criança e ao adolescente terá início por representação do Ministério Público, ou do Conselho Tutelar, ou auto de infração elaborado por servidor efetivo ou voluntário credenciado, e assinado por duas testemunhas, se possível. § 1º - No procedimento iniciado com o auto de infração, poderão ser usadas fórmulas impressas, especificando-se a natureza e as circunstâncias da infração. § 2º - Sempre que possível, à verificação da infração seguir-se-á a lavratura do auto, certificando-se, em caso contrário, dos motivos do retardamento.
O juiz de infância e juventude exerce jurisdição de natureza especial, com características próprias, diferenciadas da jurisdição exercida pelos outros ramos da Justiça.
O princípio da proteção integral consagrado no Estatuto da Criança e do Adolescente, proclamado em seu artigo 1º, cobra do juízo menorista atuação sui generis e, dentre outras particularidades, desconsidera o princípio da inércia da jurisdição e obriga o magistrado, por regra, a atuar de ofício e só por exceção aguardar provocação.
Qualquer situação de ofensa a direitos da criança e do adolescente deve ser objeto de atuação do juízo menorista, independentemente da provocação de qualquer órgão externo ou interno ao Poder Judiciário.
Com vista a essas realidades o Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 191 estabelece que em casos de apuração de irregularidades em entidade governamental e não governamental o procedimento respectivo terá início por representação do Ministério Público ou do Conselho Tutelar ou mediante portaria da autoridade judiciária, ou seja, portaria do Juiz de Infância e Juventude.
Questão aparentemente tormentosa pode então surgir no espírito do operador do direito, a saber: e nos casos de apuração de infração administrativa às normas de proteção à criança e ao adolescente? Pode também o magistrado iniciar esses procedimentos de ofício?
Estamos convencidos de que sim. Pode e muitas vezes deve o Juiz da Infância e Juventude sim dar início a tais procedimentos ex ofício, mediante portaria judicial, tal como o faz quando apura irregularidades em entidade de atendimento.
Com efeito, o artigo 194, ao elencar as formas de início dos procedimentos para imposição de penalidade administrativa, menciona a representação do Ministério Público, representação do Conselho Tutelar e o auto de infração elaborado por servidor efetivo ou voluntário credenciado da justiça da infância e juventude.
Trata-se de rol meramente exemplificativo e não taxativo. Por não ser numerus clausus, comporta também o seu início pela portaria da autoridade judiciária.
É o que se extrai da melhor exegese da norma legal e o que se extrai, sobretudo, do sistema do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ao magistrado cabe realizar a interpretação na sua forma mais ampla e assim admitir tal possibilidade.
É também a vontade do legislador. Ao consagrar a possibilidade do servidor subordinado ao magistrado dar início ao procedimento de apuração de infração administrativa às normas de proteção à criança e ao adolescente, admitiu, ainda que tacitamente, a possibilidade do Juiz de Infância e Juventude também iniciar de ofício o referido procedimento. Afinal, não teria sentido nem lógica assegurar ao subordinado a possibilidade de início do procedimento, mas negar ao seu superior hierárquico o mesmo poder. Quem pode o mais, pode também o menos.
Se o magistrado, como assegura o artigo 191 do Estatuto da Criança e do Adolescente, pode iniciar por meio de portaria o procedimento para apuração de irregularidades em entidade de atendimento, cujo processo é sabidamente muito mais complexo e envolve matérias quase sempre muito mais graves, pode, por óbvio, também iniciar de ofício o procedimento mais simples, com matéria normalmente menos grave e de conseqüências menos gravosas, apuração de infração administrativa às normas de proteção à criança e ao adolescente.
Do ponto de vista processual, a peça elaborada pelo Juiz de Direito conterá quase sempre conteúdo mais elaborado que alguma peça elaborada por servidor efetivo ou voluntário credenciado, de modo que, também por isso, preferível que se reserve ao magistrado a faculdade de dar início ao procedimento tratado na lei. Terá essa peça, dentre outras qualidades, a de conter provavelmente melhor conteúdo técnico jurídico, a permitir a maior garantia constitucional da amplitude de defesa e do contraditório.
Sempre haverá críticos à atuação de ofício do Juiz de Direito. Ora a verberar que o magistrado poderá perder sua imparcialidade ao dar início ao procedimento, ora a verberar que a exclusividade da ação deve caber a órgão distinto, ora, finalmente, a argumentar que nesse particular deve vigorar o princípio da inércia da jurisdição.
Não vemos, data venia, nenhuma procedência nessas críticas.
A inércia da jurisdição, como já dito, no âmbito da Infância e Juventude, constitui exceção, sendo regra a possibilidade de atuação do magistrado por iniciativa sua.
Trata-se, ademais, de procedimento e não de processo. Destina-se à apuração de infração administrativa e não de infração de natureza penal ou civil. A complexidade do expediente é quase sempre mínima.
A atribuição de competência para o início do processo de apuração de infração administrativa às normas de proteção à criança e ao adolescente exclusivamente a outro órgão, por outro lado, constituir-se-ia em incongruência, já que, como ensina a experiência prática, a grande maioria dos procedimentos nessa área têm origem na atuação do Voluntariado de Infância e Juventude, antigo comissariado de menores, como tratado nos artigos 150 e 151 do Estatuto da Criança e do Adolescente, pessoas com atuação ligada ao Juízo de Infância e Juventude.
Finalmente, a mais severa crítica, referente à imparcialidade do magistrado, igualmente não merece guarida. Repetimos, a respeito do tema, o escólio magistral do grande professor Paulo Lúcio Nogueira, que, comentando o tema, bem pontuou:
“... na esfera menorista o juiz deve agir de ofício em várias situações, porquanto conta com comissários e funcionários a seu dispor que levam ao seu conhecimento fatos envolvendo menores. Deve, então, baixar portaria para apurá-los, com a fiscalização do Ministério Público, quando o próprio servidor já não lavra o auto de infração, e ainda há que se levar em conta que, diferentemente das outras esferas, na menorista deve sempre preponderar os interesses da criança e do adolescente, salvo nos casos de ato infracional, quando, então, somente o Ministério Público deve representar contra ele, por se tratar de iniciativa privativa.” (Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Paulo Lúcio Nogueira, Ed. Saraiva, 4ª Edição, 1998, p. 296).
Se o legislador houvesse enxergado a possibilidade, mesmo que remota, de qualquer perda de isenção do magistrado por iniciar procedimento de ofício, certamente não teria consagrado a possibilidade de início do processo de apuração de irregularidades em entidade de atendimento por portaria da autoridade judiciária, como o fez no artigo 191 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Por todos os argumentos se tem de concluir, de forma serena e segura, que o Juiz de Infância e Juventude pode iniciar procedimento para apuração de infração administrativa às normas de proteção à criança e ao adolescente de ofício, por meio de portaria, que baixará sempre que chegar a seu conhecimento quaisquer dessas infrações, porque o artigo 194 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao tratar da iniciativa para esse procedimento, elencou rol meramente exemplificativo e não taxativo, bem como porque a atuação de ofício do juiz, no âmbito da jurisdição de Infância e Juventude, é a regra e a inércia é a exceção.
Jefferson Barbin Torelli é juiz de Direito da Vara do Júri, Execuções Criminais e da Infância e da Juventude da Comarca de Jundiaí/SP.
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