43 - Inexigibilidade de perícia para a caracterização de periculosidade – um salto para a atualidade

VITOR SALINO DE MOURA EÇA - Juiz de Direito
 

Introdução

 

Em boa hora, a primeira Turma do Tribunal Superior do Trabalho, pela pena do Eminente Ministro Lélio Bentes, em decisão deste mês de março de 2.005, nos autos do AIRR 3.229/2.002-911-11-00.3, entendeu que o laudo de caracterização de periculosidade é dispensável em face de outras provas.

        

S. Exa. não deixa de atribuir valor ao artigo 195/CLT,  mas ressalta que na hipótese julgada o conjunto probatório era capaz de evidenciar a existência de periculosidade, inclusive com expressa admissão do preposto.

        

A decisão representa um verdadeiro salto para a modernidade, atualizando antiga norma positivada pela CLT, em seu artigo 195, que exigia a realização de perícia, feita por engenheiro ou médico do trabalho, para que o trabalhador pudesse perceber o devido adicional de periculosidade.

        

Todos nós já ouvimos dizer que ter direito é ter provas, mas ninguém diz por qual meio esta prova deve ser produzida. Sequer o estágio evolutivo da sociedade brasileira recomenda que o legislador determine qual o meio de prova deve o julgador se valer para apreciar uma pretensão deduzida.

        

A CLT, quando veio à luz, num país de industrialização incipiente e ciência limitada não trouxe tal exigibilidade. O artigo 195, em sua redação original, limitava-se a preceituar que “as instalações elétricas (motores, transformadores, cabos, condutores, etc.), deverão ser isoladas e protegidas de modo a evitar qualquer acidente”.

        

Somente com o tempo e o domínio da técnica, é que a obrigatoriedade que hoje conhecemos passou a ser exigida para que o adicional em fomento pudesse ser pago.

 

A norma processual

 

Enquanto a CLT se sofisticou para exigir a prova produzida através de perícia, a ciência processual evoluiu bem mais. Simplificou a instrução probatória, passando a dispor que independem de prova os fatos notórios; os afirmados por uma das partes e confessados pela parte adversária; admitidos, no processo, como incontroversos e os que em cujo favor milita presunção legal de existência ou veracidade.

        

No processo do trabalho, que a simplificação procedimental é elevado à categoria de princípio informador, os requisitos probatórios, contraditoriamente, se alargaram como mostra o confronto da norma de original com a sua versão hoje experimentada.

        

Nem mesmo diante de uma confissão real estava o julgador autorizado a conceder o adicional vindicado, ante a inexistência de prova pericial hábil.

        

Nada mais retrógrado. Entretanto, o voto ora festejado supre exatamente essa lacuna.

        

A perícia é um mero meio de prova. A prova é o fato. E este pode passar a ser conhecido pelo julgador por qualquer outro meio probatório.

 

Justiça ágil

 

O que o jurisdicionado, efetivo tomador dos serviços judiciários quer, é que o processo seja julgado em tempo razoável, sobretudo em uma demanda na qual esteja vindicando crédito alimentar.

        

A recente reforma do judiciário pouco inovou para tornar o direito mais ágil e disponível, exceto, sob certa e discutível angulação, através da súmula vinculante. Todavia, teve a virtude de fazer inserir entre as garantias do cidadão, o inciso LXXVIII, no artigo 5º, da Constituição Federal, asseverando ser assegurado a todos a duração razoável do processo, com os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

        

A legislação infraconstitucional deverá indicar os parâmetros dessa ansiada rapidez, entretanto é absolutamente indispensável que seja também em linha com o Estado Democrático de Direito, que assegura a ampla liberdade probatória, através de todos os meios de prova não defesos em lei.

        

Não há qualquer vedação na lei processual, e sequer nas garantias do cidadão processado, no âmbito da aludida Constituição Federal, que repudie outros meios de prova para a caracterização da periculosidade.

        

O direito processual comum, bem menos compromissado com a celeridade, afirma que quando a lei preservar determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade, nos moldes do artigo 244/CPC.

        

O direito do trabalho que salvaguarda bem mais abrangente, e dispõe em seu artigo 8º/CLT, que a jurisprudência é fonte de direito, bem poderia ter se adiantado nessa matéria.

 

Temos precedentes, OJ, enunciados e uma infinidade de verbetes que consagram direitos, bem que poderíamos ter disciplinado também o regramento para a concessão do adicional de periculosidade.

        

Os agentes perigosos já estão plenamente individualizados. E em caso de novas situações, a perícia bem pode ser atiçada.

        

No caso dos autos que motivaram esta reflexão, a hipótese era de um trabalhador noturno que ficava encarregado de abastecer os veículos que carecessem de combustível durante a noite, período de descanso do frentista.

        

Ora quantos milhões, ou bilhões de perícias já foram feitas, pelo Brasil para a caracterização de periculosidade para os trabalhadores que fazem o abastecimento de veículos.

        

Não é novidade para mais ninguém. Certamente nem o mais intransigente dos empregadores resiste a isso. E se resistir, deve ser rigidamente apenado, como medida pedagógica.

        

Os tribunais podem colaborar, expedindo verbetes jurisprudenciais a fim de assegurar a rápida efetivação de direitos básicos, e situações jurídicas tantas vezes experimentadas.

        

Fica a sugestão objetiva tendente a cristalização jurisprudencial, por meio de um verbete que diga que a confissão, real ou ficta, afasta a necessidade de prova pericial para a caracterização de periculosidade.

 

 

O papel relevante do Poder Judiciário atual

 

A queixa de que o Judiciário é lento é recorrente em toda a sociedade, sendo apontadas diversas causas para justificar o fato.

        

Já é tempo de toda a sociedade cumprir o seu papel, ocupando o Poder Judiciário apenas com as questões verdadeiramente controvertidas.

        

A justiça não pode mais estar sendo movimentada para a aferição de incontáveis horas extras feitas e não quitadas, sem a menor razão de dúvida.

        

Verbas rescisórias que não foram adimplidas a tempo e modo jamais podem ser objetos de estrangulamento de um pauta, em um procedimento que prevê a obrigatoriedade de audiência para a conciliação.

        

Estas são, contudo, questões que somente a sociedade, destinatária dos serviços judiciários é que pode resolver. Entretanto, fatores de ordem econômica e social podem inviabilizar tal desiderato.

        

Paralelamente, os agentes políticos podem bem mais. O legislador, numa atualização de preceitos, bem pode atribuir ao julgador maior capacidade de avaliação, dando efetividade ao disposto no artigo 765/CLT.

        

Já vai longe o tempo da prova tarifada, onde o juiz ficava adstrito ao número de testemunhas e assim por diante.

        

No modelo de Estado idealizado para o Brasil, as provas estão postas à disposição das partes, nos moldes do inciso LV, do artigo 5º/CF, e é reservada ao juiz ampla liberdade em sua apreciação, conforme artigo 131/CPC.

        

O problema da prova pericial

 

Outra inovação legislativa trouxe ao judiciário trabalhista a maior dificuldade para viabilizar a prova pericial.

        

Refiro-me à redação atual do artigo 790-B/CLT, que passou a isentar de custas o beneficiário da gratuidade de justiça.

        

Nada mais justo, afinal o Estado deve mesmo assegurar a regular instrução probatória aos mais necessitados. Entretanto, isso é papel do estado e não do particular.

        

A Justiça do Trabalho brasileira não tem quadro próprio de peritos.

        

Deveria ter. Os peritos deveriam ser servidores públicos, concursados, e serem designados pelo juiz para aferição das condições de trabalho dos demandantes. Assim o acesso à justiça constitucionalmente assegurado poderia ser verdadeiramente efetivado. Todavia, não é o que ocorre.

        

As perícias são realizadas por particulares, que não tem o dever de adiantar despesas e força de trabalho, para, depois, não receber seus justos honorários.

        

A inversão do ônus probatório, reconhecida pelo direito processual atual, tem sido encarada com timidez pelos julgadores trabalhistas.

        

A doutrina abriu fértil campo para tanto. Também o direito positivo tratou expressamente da matéria, no inciso VIII, do artigo 6º/CDC. Por ele, a critério do juiz, quando for verossímil a alegação ou quando o demandante for hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência, está o julgador autorizado a inverter o ônus da prova.

        

Os juizados especiais fazem isso ordinariamente. Nem é mais surpreza para o demandado.

        

Tendo o empregador conhecimento prévio das condições de trabalho, bem pode se acautelar para impedir à exposição do trabalhador a risco. Tem a possibilidade de requerer a prévia inspeção por servidor do Ministério do Trabalho, enfim uma variada gama de opções para se precaver.

        

Por certo, a ele também interessa um meio ambiente seguro para a prestação de serviços às suas ordens.

        

Então, se quedando omisso em tantas circunstâncias, nada mais razoável que adiante os honorários periciais para o exame das condições reais de trabalho.

        

Desde o advento da atual redação do artigo 790-B/CLT, as perícias têm sido dificultadas no âmbito do processo do trabalho, pelo requerimento de honorários prévios, de dificílima possibilidade para os trabalhadores brasileiros, sobretudo para os desempregados, usuários habituais do judiciário trabalhista.

        

O problema foi minimizado pelo Colendo Tribunal Superior do Trabalho, com a edição da Instrução Normativa nº 27, de fevereiro de 2.005, entretanto, somente para as hipóteses advindas com a nova competência, atribuída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2.004, cujos casos concretos agora começam a chegar e provavelmente jamais serão maioria.

 

A providência normativa

 

A União começa a enfrentar a dificuldade, por meio do projeto de lei federal 2.877/04, pelo qual a mesma deverá pagar os honorários periciais nos processos trabalhistas, nas vezes em que a parte vencida seja beneficiária da justiça gratuita.

        

A Comissão de Trabalho já o aprovou e agora o projeto segue para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.

 

Conclusão

 

Enquanto não vier fonte normativa mais segura e eficaz, a balizar toda a problematização que envolve as perícias no âmbito do processo do trabalho, efusivos aplausos merecem os Eminentes Ministros da Primeira Turma do Colendo Tribunal Superior do Trabalho, sobretudo o seu relator o Ministro Lélio Bentes, que, com sensibilidade e cultura trataram de atualizar a jurisprudência de Casa, dotando-lhe de atualidade com o status do direito processual contemporâneo.

        

A Constituição Federal assegura ao julgador a mais ampla liberdade na apreciação das provas, exigindo-lhe, com acerto, que para isso fundamento suas decisões, conforme inciso IX, do artigo 93/CF.

        

A teoria do processo, através da mais moderna doutrina, assegura que a prova possível deve ser privilegiada no processo administrativo ou judicial. E considerando-se as dificuldades reais hoje experimentadas até que seja criado um corpo de peritos servidores públicos ou regulamentada a remuneração dos particulares de colaborarem com a justiça, o caminho mais razoável é a admissão de outros meios probatórios para a caracterização da existência de perigo nas situações de trabalho das partes demandantes.

        

Ao menos nos casos de confissão, a decisão precursora passa a indicar seguro caminho. Viva!

 

 

Vitor Salino de Moura Eça é juiz do trabalho em Minas Gerais; professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da PUC-Minas; doutorando em Direito Processual e mestre em Direito do Trabalho, pela PUC-Minas; especialista em Direito Empresarial, pela UGF/RJ.

 


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