36 - Competência da Justiça do Trabalho nas ações de relações de trabalho (art. 114 da CF, com a redação dada pela EC 45/2004)
CLAUDIO LIMA BUENO DE CAMARGO – Juiz de Direito |
Com o advento da Emenda Constitucional n. 45, de 8.12.2004, ao dar, no quanto aqui interessa, nova redação ao art. 114 da Const. Federal, balizada doutrina passou a sustentar o aumento significativo da competência da Justiça do Trabalho, como se colhe, por exemplo, do magistério de Fernando Antonio Zorzenon da Silva:
Até a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, o art. 114 da Constituição Federal dispunha que à Justiça do Trabalho competia julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores – relação de emprego – e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, ou seja, restringia-se basicamente às relações de emprego: relações de trabalho só mediante lei específica, como ocorria com os dissídios resultantes de pequena empreitada, em que o empreiteiro fosse operário ou artífice (inciso III, alínea a, do art. 652 da CLT). Esta competência foi substancialmente ampliada pela Emenda Constitucional nº 45, que a direcionou a toda e qualquer relação de trabalho. A ampliação da competência, como seria de se esperar, vem suscitando dúvidas quanto ao alcance da expressão “relação de trabalho”. Particularmente não vislumbro maiores dificuldades para visualizar a amplitude da competência – relação de trabalho – outorgada aos tribunais trabalhistas. A matéria já foi por demais debatida pela doutrina, que assentou entendimento no sentido de que a relação jurídica de trabalho caracteriza-se no momento em que alguém passa a prestar serviços em proveito de outrem. Como ensina Mozart Victor Russomano, in Curso de Direito do Trabalho, 7ª. ed., pág. 60, “A relação de trabalho é o gênero, do qual a relação de emprego é espécie. Por outras palavras: a relação de emprego, sempre, é relação de trabalho; mas, nem toda relação de trabalho é relação de emprego, como ocorre, v. gr., com os trabalhadores autônomos (profissionais liberais, empreitadas, locações de serviços, etc.).” A característica principal da segunda é a subordinação do contratado às ordens legítimas do contratante, que não se apresenta com a mesma intensidade, ou mesmo inexiste, no primeiro. No mesmo sentido se manifesta Maurício Godinho Delgado, in Introdução ao Direito do Trabalho, 2ª. ed., pág. 230 e 231, para quem a relação de trabalho tem caráter genérico, referindo-se “a todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em trabalho humano. Refere-se, pois, a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente admissível. A expressão relação de trabalho englobaria, desse modo, a relação de emprego, a relação de trabalho autônomo, a relação de trabalho temporário, a relação de trabalho eventual, de trabalho avulso e outras modalidades de pactuação de prestação de trabalho (como no trabalho de estágio, etc.). Traduz, portanto, o gênero a que se acomodam todas as formas de pactuação de prestação de trabalho existentes no mundo jurídico atual.” .... O trabalho desenvolvido pelo médico ao seu paciente, do advogado ao seu cliente, do engenheiro ao dono da obra, mesmo quando eventual – uma simples consulta, por exemplo –, configura uma relação jurídica de trabalho e, assim, os dissídios que dele decorram devem ser submetidos à Justiça do Trabalho. Pode até tratar-se, como normalmente ocorre, de uma relação absolutamente eventual (uma simples consulta, por exemplo), normalmente desenvolvida sem qualquer subordinação do contratado à pessoa do contratante, mas isso não afasta a certeza de estarmos diante de uma autêntica relação de trabalho.[1]
Contudo, nada obstante o respeito que merecem os doutos argumentos acima transcritos, entendo que o alcance do dispositivo não tem tamanha extensão.
O Min. Nelson Jobin quando da liminar concedida em recente ação direta de inconstitucionalidade observou que: A ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO BRASIL (.....) Sustenta que (....) 1. CÂMARA DOS DEPUTADOS (.....) a Câmara dos Deputados, na PEC nº 96/92, ao apreciar o art. 115, “aprovou em dois turnos, uma redação que ganhou um inciso I” (....) Teve tal dispositivo a seguinte redação: “Art. 115. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.” 2. SENADO FEDERAL. A PEC, no Senado Federal, tomou número 29/200. (....) O SF aprovou tal inciso com acréscimo. O novo texto ficou assim redigido: “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, EXCETO OS SERVIDORES OCUPANTES DE CARGOS CRIADOS POR LEI, DE PROVIMENTO EFETIVO OU EM COMISSÃO, INCLUÍDAS AS AUTARQUIAS E FUNDAÇÕES PÚBLICAS DOS REFERIDOS ENTES DA FEDERAÇÃO”. (.....) (....) na redação final do texto para promulgação, .... a parte final acima destacada foi suprimida. Por isso, remanesceu, na promulgação, a redação oriunda da CÂMARA DOS DEPUTADOS, sem o acréscimo. No texto que voltou à CÂMARA DE DEPUTADOS (PEC. 358/2005), o SF fez constar a redação por ele aprovada, com o referido acréscimo (....) (....) a redação da EC nº 45/2004, nesse inciso, trouxe dificuldades de interpretação ante a indefinição do que seja “relação de trabalho”. Alega que há divergência de entendimento entre os juízes trabalhistas e os federais, “... ausente a precisão ou certeza, sobre a quem coube a competência para processar as ações decorrentes das relações de trabalho que envolvam a União, quando versem sobre servidores ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações públicas.” (....) Em face da alegada violação ao processo legislativo constitucional, requer liminar para sustar os efeitos do inciso I do art. 114 da CF, na redação da EC nº 45/2004, com eficácia “ex tunc”, ou que se proceda a essa sustação, com interpretação conforme. (....) 3. DECISÃO. A CF, em sua redação dispunha: “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.” O SUPREMO, quando dessa redação, declarou a inconstitucionalidade de dispositivo da L. 8.112/90, pois entendeu que a expressão “relação de trabalho” não autorizava a inclusão, na competência da Justiça trabalhista, dos litígios relativos aos servidores públicos. Para estes, o regime é o “estatutário e não o contratual trabalhista” (CELSO DE MELLO, ADI 492). Naquela ADI, disse mais CARLOS VELLOSO (Relator): “............................. Não com referência aos servidores de vínculo estatutário regular ou administrativo especial, porque o art. 114, ora comentado, apenas diz respeito aos dissídios pertinentes a trabalhadores, isto é, ao pessoal regido pela Consolidação das Leis do Trabalho, hipótese que, certamente, não é a presente. ..............................” O SF, quando apôs o acréscimo referido acima e não objeto de inclusão no texto promulgado, meramente explicitou, na linha do decidido na ADI 492, o que já se continha na expressão “relação de trabalho”, constante da parte inicial do texto promulgado. A REQUERENTE, porque o texto promulgado não contém o acréscimo do SF, sustenta a inconstitucionalidade formal. Entendo não ser o caso. A não inclusão do enunciado acrescido pelo SF em nada altera a proposição jurídica contida na regra. (....) Sem entrar na questão da duplicidade de entendimentos levantada, insisto no fato de que o acréscimo não implica alteração de sentido da regra. A este respeito o SUPREMO tem precedente. Destaco do voto por mim proferido no julgamento da ADC 4, da qual fui relator: “O retorno do projeto emendado à Casa iniciadora não decorre do fato de ter sido simplesmente emendado. Só retornará se, e somente se, a emenda tenha produzido modificação de sentido na proposição jurídica. Ou seja, se a emenda produzir proposição jurídica diversa da proposição emendada. Tal ocorrerá quando a modificação produzir alterações em qualquer dos âmbitos de aplicação do texto emendado: material, pessoal, temporal ou espacial. Não basta a simples modificação do enunciado pela qual se expressa a proposição jurídica. O comando jurídico — a proposição — tem que ter sofrido alteração. (...)” Não há que se entender que justiça trabalhista, a partir do texto promulgado, possa analisar questões relativas aos servidores públicos. Essas demandas vinculadas a questões funcionais a eles pertinentes, regidos que são pela Lei 8.112/90 e pelo direito administrativo, são diversas dos contratos de trabalho regidos pela CLT. Leio GILMAR MENDES: “Oportunidade para interpretação conforme à Constituição ... sempre que determinada disposição legal oferece diferentes possibilidades de interpretação, sendo algumas delas incompatíveis com a própria Constituição. ... Um importante argumento que confere validade à interpretação conforme à Constituição é o princípio da unidade da ordem jurídica ...” (Jurisdição Constitucional, São Paulo, Saraiva, 1998, págs. 222/223). É o caso. A alegação é fortemente plausível. Há risco. Poderá, como afirma a inicial, estabelecerem-se conflitos entre a Justiça Federal e a Justiça Trabalhista, quanto à competência desta ou daquela. Em face dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e ausência de prejuízo, concedo a liminar, com efeito “ex tunc”. Dou interpretação conforme ao inciso I do art. 114 da CF, na redação da EC nº 45/2004. Suspendo, ad referendum, toda e qualquer interpretação dada ao inciso I do art. 114 da CF, na redação dada pela EC 45/2004, que inclua, na competência da Justiça do Trabalho, a “... apreciação ... de causas que ... sejam instauradas entre o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo”.[2]
Nota-se, portanto, que o conceito de relação de trabalho não inova a ordem jurídica e, inclusive, já foi objeto de exame pela Alta Corte, a qual fixou diretriz orientando que:
(....) Trabalhador é, de regra, o que mantém relação de emprego, é o empregado, o que tem empregador, e empregador é, em principio, o ente privado. Porque poderá haver, no serviço público, trabalhadores regidos pela CLT, o poder público, nestes casos, assumirá a condição de empregador. Vale a pena trazer ao debate, no ponto, o registro de Paulo Emilio Ribeiro de Vilhena: “Sob um aspecto muito particular, muito embora aparentemente formal ou terminológico, a Lei 7.839/89, exibe um sintoma, que se redimensionou e se alargou no Direito do Trabalho Brasileiro: a palavra “trabalhado”. Nesta lei substitui-se a palavra “empregado”, corrente e inarredada na Lei 5.107/66, pela “trabalhador”, como se lê em diversos de seus dispositivos, com um cochilo regressivo no art. 14, ao mencionar “diretores não empregados”. E acrescenta o eminente mestre mineiro: “A mudança terminológica, que se consumou relativamente a um dos pólos da relação de emprego, enfaticamente ratificada pela última e vigorante lei do FGTS, a Lei 8.036/90, vem a ganhar até nova conceituação do prestador de serviços tutelado pela legislação do trabalho em seu art. 15, § 22, com força modificadora do art. 39, da CLT e que dispõe: “Considera-se trabalhador toda pessoa física que prestar serviços a empregador, a locador ou tomador de mão-de-obra, excluídos os eventuais, os autônomos e os servidores públicos civis e militares sujeitos a regime jurídico próprio”. (Paulo Emilio Ribeiro de Vilhena, “O Novo FGTS – Percussões Constitucionais”, Rev. de Direito do Trabalho, 77/65, 67). Sob o ponto de vista legal, portanto, trabalhador é o “prestador de serviços tutelado”, de cujo conceito excluem-se os servidores públicos civis e militares sujeitos a regime jurídico próprio. (....) À Justiça do Trabalho compete, pois, conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, incluídos entre estes os entes de direito público externo e interno. Quer dizer, conciliará e julgará os dissídios entre trabalhadores e empregadores.[3] Destarte, a competência da Justiça do Trabalho é informada pela relação de trabalho, entendida esta, por sua vez, como a do prestador de serviços tutelado e, diante dessa qualidade, regida pela CLT.
De outro turno, a Emenda Constitucional n. 45, de 8.12.2004, no tocante ao art. 114 da Const. Federal, só teve o condão de ampliar a competência da Justiça do Trabalho para abarcar as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho (inc. VI), matéria antes afeta à jurisdição da Justiça Estadual.[4]
Neste contexto, a Emenda, mantendo íntegro o conceito de relação de trabalho, apenas confiou à competência trabalhista, com o inciso em comento, matéria que o próprio legislador ordinário poderia assim dispor, pois, como consignado pelo Min. Carlos Velloso no acima transcrito julgamento da ADI 492:
(....) Acrescenta o art. 114 que a competência da Justiça do Trabalho abrangerá, também, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho. (....) A lei poderia, portanto, tendo em vista a cláusula constitucional mencionada, conferir competência à Justiça do Trabalho para julgar, por exemplo, ação acidentária decorrente da relação de trabalho (trabalhador e empregador).
Mas convém ressaltar que, de qualquer sorte, referidas ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho, agora confiadas à competência da Justiça Obreira, são aquelas restritas aos casos de lesão experimentada por prestador de serviços tutelado (empregado), na execução ou em razão destes, e cujo ressarcimento compete ao empregador.
Arujá, 27 de fevereiro de 2005
Claudio Lima Bueno de Camargo é juiz da 1ª Vara Cível de Mogi das Cruzes/SP, mestre em Direito pela PUC/SP e professor de Direito Processual Civil na PUC/SP. [1] in Jus Navigandi – Doutrina – Justiça do Trabalho. Ampliação da Competência. Alcance, www.jus.com.br. [2] ADI 3395, decisão de 27.1.2005, in www.ajufe.org.br. [3] ADI 492, Sessão Plenária, rel. Min. Carlos Velloso, m.v., j. 12.11.1992, in www.stj.gov.br. [4] Neste sentido, inclusive com revisão da posição do Relator: STF, RExt 349.160, 1ª Turma, rel. Min. Sepúvelda Pertence, v.u., j. 11.2.2003, in www.stf.gov.br. |