19 - Estadualização dos crimes contra os Direitos Humanos
JORGE A. Q. DE CARVALHO SILVA – Juiz de Direito |
A recente reforma do Poder Judiciário introduziu, por emenda constitucional, mecanismo pelo qual o Procurador Geral da República pode solicitar ao Superior Tribunal de Justiça a transferência de poder da Justiça Estadual para a Federal, para o julgamento dos crimes graves contra os direitos humanos, a pretexto de que a segunda seria mais isenta para apreciar causas dessa natureza, dado o suposto comprometimento dos juízes estaduais com as autoridades locais. Essa alteração, é óbvio, desprestigia a Justiça e o Ministério Público estaduais, ao mesmo tempo em que credita à Federal e à Procuradoria da República maior confiança quanto à imparcialidade de suas decisões. Esquece-se, todavia, de que os últimos escândalos que tomaram conta do noticiário no País vieram da Justiça Federal e da Justiça do Trabalho — casos do juízes Nicolau dos Santos Neto e Rocha Mattos, ambos do Poder Judiciário da União. Ora, por que, então, creditar maior isenção à Justiça Federal? Essa modificação afronta o princípio do juiz natural, segundo o qual julgamento justo é o realizado pela autoridade previamente constituída para apreciar a causa (art. 5º, LIII, da Constituição da República), motivo pelo qual o Supremo Tribunal Federal deverá declarar sua inconstitucionalidade, visto que não pode ser objeto de deliberação pelo Congresso proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, IV, da Constituição). Sem contar que fere o princípio federativo de que os Estados tem autonomia política, no caso judiciária (Estado-juiz), para decidir sobre o destino de seus delinqüentes, ainda que os crimes sejam definidos por lei federal (art. 18, caput, da Constituição). Ora, a partir do momento em que o Superior Tribunal de Justiça puder transferir, para o foro federal, o julgamento de qualquer tipo de crime que considerar grave violação aos direitos humanos, é evidente que estará sendo desrespeitado o princípio vertical da repartição de poderes, pois só a Constituição Federal pode definir que tipo de crime será excepcionalmente apreciado pela Justiça da União (art. 109). Tal atitude nada mais é do que uma forma disfarçada de intervenção federal nos Estados, sem a participação do Supremo Tribunal Federal, foro próprio para esse tipo de discussão (arts. 34, VII, ‘b’, e 36, III, da Constituição). Deve, assim, ser reconhecida sua inconstitucionalidade, haja vista não poder ser objeto de deliberação emenda destinada a abolir (suprimir, cercear, restringir, enfraquecer) a forma federativa (art. 60, § 4º, I, da Constituição). Também é inócua porque, tratando-se de crime doloso contra a vida, cuja competência é do tribunal do júri (art. 5º, XXXVIII), o juiz — federal ou estadual — presidirá, de todo modo, um corpo de jurados, escolhido entre cidadãos residentes no local, para decidir sobre as questões de fato. A esse desequilíbrio na federação, talvez, uma saída se apresente: nos crimes graves contra os direitos humanos, envolvendo a autoridade federal, tenha o Procurador Geral de Justiça, chefe do Ministério Público local, poder para solicitar ao Superior Tribunal de Justiça a transferência da competência da Justiça Federal para a Justiça Estadual — mais isenta e imparcial para apreciar a causa, segundo a lógica da recente reforma constitucional. Não seria esse o caso do cozinheiro Antônio Gonçalves de Abreu, torturado e assassinado, em 2002, numa cela da Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro? Jorge Alberto Quadros de Carvalho Silva é juiz de Direito no Juizado Especial Cível do Fórum Regional de Pinheiros, em São Paulo/SP, e mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. |