14 - Hediondez (*)
CELSO LUIZ LIMONGI - Desembargador |
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Simples demais seria se o endurecimento da lei penal tivesse força para dissuadir alguém de praticar um crime
Muito se discute sobre a revogação da Lei de Crimes Hediondos, editada, em 1990, por Fernando Collor, em razão de seqüestro de dois importantes empresários, um em São Paulo, outro no Rio de Janeiro. Dois anos depois, em decorrência de movimento popular encabeçado por Glória Peres, após a morte de sua filha Daniela Peres, atriz da Rede Globo, o homicídio qualificado também recebeu a classificação de crime hediondo. O projeto de lei sobre tortura dormia no Congresso Nacional havia anos e só despertou porque a TV Globo exibiu terríveis cenas da Favela Naval, em Diadema, quando policiais militares foram surpreendidos na prática de violência contra civis. O legislador penal legisla, pois, sem cientificidade, mas ao sabor dos acontecimentos. É o Direito Penal simbólico, demagógico, mágico, pelo qual o Estado passa para a sociedade a sensação de que tomou todas as providências para pôr fim a atos criminosos, como se fosse possível que, ao simples estalar de dedos, voltasse a reinar a paz social. É erro científico supor que o Direito Penal sirva para erradicar o crime: não atua ele nas causas da criminalidade. Simples demais seria se o endurecimento da lei penal tivesse força para dissuadir alguém de praticar um crime. Antes disso, caberia ao Estado mitigar a fricção social, impedir privilégios de classe e a concentração de riqueza em mãos de poucos, a impunidade dos criminosos de colarinho-branco, a fome e a miséria, o desemprego e a falta de assistência à saúde. E, suma ironia: o Direito Penal, que é a intervenção máxima na esfera de direitos de uma pessoa, é aplicado justamente aos segmentos da sociedade que receberam do Estado a intervenção mínima, do ponto de vista social, cultural e econômico! Exige-se mais de quem recebeu menos... Os crimes contra a administração pública de regra estabelecem pena mínima de dois anos de reclusão. Infere-se disso que o legislador é condescendente com esse tipo de crime, pois ele próprio poderia ser réu de delito ligado à corrupção. A revista Veja publicou, em 18/9, matéria relativa a suposto pagamento pelo PT a deputados do PTB da importância total de R$ 10 milhões, em troca de apoio nas eleições. Ora, a corrupção em nível elevado mina a democracia. A vontade popular fica viciada. São eleitos muitos candidatos que entretêm vínculos com o crime organizado. E um prefeito ou um governador que deixe de construir hospitais comete ato atentatório aos direitos humanos, porque vidas são perdidas por falta de atendimento médico. A comunidade internacional está cada vez mais consciente da gravidade da corrupção, até porque os governos vêm observando que esta é causa da fuga de investimentos estrangeiros, do empobrecimento e da perda da confiança das comunidades nas autoridades públicas. A corrupção se apresenta multifacetada, de várias formas, e destrói os esforços para a constituição ou para o maior desenvolvimento das instituições democráticas. Como esse fenômeno já não mais está confinado às fronteiras nacionais, a tolerância em relação a ele diminuiu drasticamente (cf. Damásio E. de Jesus, in "Rev. do Curso de Direito da FIG", nº. 6, pág. 247). Corrupção existe em países avançados, mas em níveis toleráveis. Reduzir a esses níveis, no Brasil, é possível: além da privação da liberdade de ir-e-vir, a perda do cargo ou função pública, a proibição, por 20 anos, de concorrer a cargos públicos por concurso ou por eleição, o rigor na apuração dos valores desviados e a certeza de que o Estado vai perseguir os bens adquiridos com dinheiro desviado também contribuem para dissuadir alguém de praticar atos de corrupção. Saliente-se: a macrocriminalidade; o crime organizado depende essencialmente da corrupção de autoridades. Isso não é hediondo? Celso Luiz Limongi é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e presidente da Associação Paulista de Magistrados (Apamagis) (*) Artigo publicado no Jornal da Tarde, em 21.10.2004 |