12 - O juiz do novo Código (*)

JOSÉ RENATO NALINI - Desembargador


 

Completa um ano de vigência o novo Código Civil, instituído pela Lei Federal 10.406, de 10 de janeiro de 2002. As críticas formuladas por alguns estudiosos não reduzem a magnitude da missão a que se entregaram luminares do direito privado pátrio e que resultou nessa "Constituição do homem comum", na linguagem do incansável mestre Miguel Reale. Tanto que as acenadas alterações, objeto de projetos de lei em curso, não incidem sobre seu cerne, mas serão modificações pontuais.

Preserva-se o núcleo fundamental da legislação civil codificada, cujos pilares são a socialidade, a eticidade e a plasticidade. Tais elementos, com algumas variações, têm sido bem explorados pelos primeiros comentadores e servirão a estas reflexões, cujo propósito é mais reduzido. Objetiva-se responder a uma única indagação: qual o perfil adequado ao juiz implementador do ordenamento renovado? Ou as novas diretrizes prestigiadas pelo legislador se afeiçoam aos atuais critérios de preparação de um julgador, desnecessária qualquer outra preocupação da comunidade jurídica?

Se o novo Código Civil, em lugar do individualismo inspirador da velha codificação de 1916, preferiu contemplar a realidade social, ele precisará de um intérprete atento a esse enfoque diferenciado. Se, em lugar de observância estrita de preceitos exclusivamente jurídicos, se deu prioridade a uma postura ética e se a rigidez formal foi substituída por cláusulas gerais, a missão do hermeneuta foi ampliada e se tornou mais complexa.

Fácil é constatar que a lei antiga continha respostas prontas e acabadas para os conflitos próprios a uma sociedade concebida para a estabilidade.

Agora, tem-se um conjunto de parâmetros genéricos, fruto de conceito mais moderno de comunidade. É truísmo afirmar-se que a vida social é complexa e instável e que a capacidade de previsão do legislador longe está de contemplar todas as possibilidades reais e situações concretas suscetíveis de regulação. O universo fenomênico é sempre mais surpreendente do que o mundo das leis.

Daí a adequação de normas flexíveis, indicadoras de trilhas a serem percorridas pelo aplicador da lei, mais satisfatórias do que a velha formulação de extremo positivismo e insensibilidade dogmática.

Perante um Código repleto de cláusulas gerais, abertas a diversas leituras, vinculadas à formação pessoal do intérprete, este precisará ser um profissional com peculiar formação e específico preparo. As cláusulas gerais são preenchíveis por elementos informativos extraídos da vivência e da cultura própria a uma determinada época. Adaptáveis a latitudes culturais diversas, permanecem no texto legal sem necessidade de contínuas modificações. Daí a imprescindível capacidade do hermeneuta de encarar a permeabilidade conceitual e de fazer incidir o mesmo texto a situações muito distintas.

Ora, a formação jurídica tradicional não prepara o profissional para esse exercício interpretativo. Continua-se a transmitir, em aulas prelecionais, o conteúdo imenso do cipoal legislativo, da considerada melhor doutrina e da jurisprudência dominante.

Os concursos públicos replicam a realidade do ensino jurídico. Dão prioridade à memorização de textos normativos, doutrinários e da aplicação do Direito pelos tribunais.

Acena-se com a necessidade de um profissional criativo, provido de capacidade crítica, sensível às angústias do semelhante, mas se recruta um julgador que não se deve afastar da dicção legal estritamente considerada.

O modelo de seleção por mérito, nos moldes atuais, serviu para a jurisdição baseada em códigos oniscientes e elaborados para hipóteses previsíveis. Aliás, dotou a nacionalidade de uma magistratura tecnicamente apta ao exercício da jurisdição. Parece, entretanto, estar a necessitar de reformulação.

A índole do vigente Código Civil é sugestiva do ideal de julgador que o século 21 está a reclamar.

O juiz deste século será um solucionador de conflitos, mais do que um aplicador de regras rígidas. Mais um pacificador do que um técnico em ciências jurídicas. Um conhecedor da alma e das angústias do ser humano, o que é qualitativamente melhor do que ser reconhecido um jusperito.

Já não basta conhecer Direito para ser um bom solucionador de conflitos. A interdisciplinaridade já provou que o conhecimento profundo de uma só especialidade é insuficiente para o enfrentamento dos desafios contemporâneos.

Além das adaptações no sistema de recrutamento, este profissional precisaria merecer preparação adequada - sempre prévia à aprovação em concurso -, a cargo de Escolas da Magistratura. E destinar-se a um processo de educação continuada, que não tem termo definitivo, enquanto permanecer a serviço da comunidade a cujo serviço está preordenado.

Esse o projeto ambicioso que dará concreção, em plenitude, a todos os efeitos pretendidos pela nova Lei Civil. Dos quais não são os menos importantes a edificação de uma sociedade justa, fraterna e solidária, consoante promessa do constituinte de 1988.

(*) Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 13.01.2004



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