7 - Nova lei do imposto sobre herança e doação
EUCLIDES DE OLIVEIRA - Juiz aposentado |
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Os impostos sobre e doação sofreram substanciais modificações no Estado de São Paulo com o advento da Lei Estadual nº 10.705/2000, em vigor desde 1o de janeiro de 2001. De um lado, mais ampla base de incidência, para abranger tributação de bens imóveis e móveis, de outro, abrandamento no rigor fiscal pela concessão de isenções e o estabelecimento de alíquotas progressivas. Como é sabido, o sistema tributário nacional estabelece competência dos Estados e do Distrito Federal para instituição de impostos sobre "transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos". A previsão está na Constituição Federal de 1988, artigo 155, inciso I, com a redação da Emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993. Trata-se, no primeiro caso, do antigo "selo de herança", depois "imposto de herança e legados", que servia à União e mais tarde viu-se transferido à competência dos Estados, com restrição aos quinhões de bens imóveis transmitidos por morte aos sucessores. A incidência do imposto, segundo a norma constitucional vigente, é para todos os bens ou direitos, abrangendo bens móveis e imóveis que sejam transmitidos em razão da morte do titular ou por doação (transmissão não onerosa). Legislação anterior restringia-se aos bens imóveis Não obstante, até o final do ano de 2000 vigorava no Estado de São Paulo a Lei nº 9.591, de 30 de dezembro de 1966, com as alterações da Lei nº 3.199, de 23 de dezembro de 1981, regulando o imposto apenas sobre a transmissão de bens imóveis, na esteira do que dispunham a Emenda nº 18, de 1965 e a Constituição de 1967. Significa dizer que se eximiam do pagamento do tributo grandes fortunas constituídas por outras espécies de bens tais como veículos, alimárias, depósitos bancários, cotas societárias, ações, títulos de crédito etc. Ora, cediço é que a riqueza mobiliária própria do mundo capitalista muitas vezes sobrepuja o vulto do valor das terras e edificações. Não se compreende porque demorou tanto o Estado de São Paulo a acordar da inércia legislativa que lhe causava considerável perda financeira com relação ao tributo que poderia incidir sobre tais bens. Nova lei barca a transmissão de bens móveis e imóveis. A mudança adveio com a citada Lei Estadual paulista nº 10.705, de 28 de dezembro de 2000, em vigor desde 1o de janeiro do corrente ano, com expressa revogação da legislação anterior e adoção de mais ampla base de incidência do chamado ITCMD - Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação. Sua regulamentação consta do Decreto Estadual nº 45,837, de 4 de junho de 2001. Agora, e com aplicação restrita às sucessões e contratos novos (a partir da vigência da Lei), a incidência do imposto se dá sobre a transmissão de qualquer bem ou direito havido: a) por sucessão legítima ou testamentária, inclusive a sucessão provisória; b) por doação. Note-se que a transmissão hereditária da propriedade ou domínio útil de bem imóvel ou direito a ele relativo gera imposto em favor do Estado onde situado o bem. Já o bem móvel, o título e o direito em geral, inclusive os que se acharem em outro Estado, ficam sujeitos ao recolhimento de imposto no Estado onde se processar o inventário ou arrolamento ou onde tiver domicílio o doador. Por herança entende-se a parte dos bens do falecido que é transmitida aos sucessores legítimos ou testamentários, tanto nos casos de morte como de ausência (sucessão provisória). Não se considera o total dos bens (monte mor), se houver cônjuge ou companheiro sobrevivente com direito a meação. Pois a meação, que decorre do regime de bens no casamento ou da união estável, distingue-se da transmissão por via hereditária e por isso não se sujeita à incidência do imposto em tela. Isenção para pequenos valores e progressividade do imposto Em contrapeso ao aumento da carga tributária pela extensão de sua base de incidência aos bens móveis, a nova lei paulista trouxe um alívio consistente na isenção do imposto para pequenos valores e redução para valores intermediários, instituindo uma espécie de tributação progressiva. No imposto causa mortis a isenção ocorre: a) na transmissão de herança de valor até 7.500 UFESPs (Unidade Fiscal do Estado de São Paulo, cujo valor atual é de R$ 9,83 — o que significa isenção para herança de até R$ 73.725,00); b) na extinção do usufruto pelo nu-proprietário que o instituiu; c) na transmissão por morte de quantia devida pelo empregador ao empregado, por Instituto de Seguro Social e Previdência, verbas de natureza alimentar decorrentes de decisão judicial, FGTS e PIS-PASEP. Isenta-se o imposto sobre doação na transmissão: a) de valor até 2.500 UFESPs (R$ 24.575,00); b) de imóvel para construção de moradia vinculada a programa de habitação popular; c) de imóvel doado por particular ao Poder Público. Na legislação anterior não havia qualquer isenção e a alíquota era única, de 4% sobre os bens imóveis transmitidos por herança ou doação. A atual lei estabelece alíquotas diferenciadas para os valores excedentes aos limites de isenção, atendendo-se a critério de progressividade no cálculo do imposto: I- 2,5% até o montante de 12.000 UFESPs; II- 4% sobre o montante superior a esse limite. Como exemplo, considere-se uma herança no valor de R$ 150.000,00, correspondente a 15.259,40 UFESPs (aí se compreendendo somente a parte transmissível aos herdeiros, excluída a meação, como já anotado): a) até 7.500 UFESPs - isenção; b) sobre o valor excedente a 7.500 UFESPs até 12.000 UFESPs - 4.500 UFESPs, alíquota de 2,5% = 112,5 UFESPs; c) sobre o valor excedente a 12.000 UFESPs até 15.259,40 UFESPs - 3.259,40 UFESPs, alíquota de 4% = 130,376 UFESPs; d) total do imposto a recolher (b+c) = 242,876 UFESPs, ou R$ 2.387,46. Os mesmos cálculos servem ao imposto sobre doação, observada a mudança do limite de isenção, que é de 2.500 UFESPs (R$ 24.575,00). Doação, cessão de direitos e renúncia à herança A doação de bens imóveis ou móveis, típico ato inter vivos, pode ocorrer também no âmbito do processo de inventário, por meio da cessão gratuita de direitos hereditários ou de meação, fazendo incidir o correspondente imposto de transmissão. O mesmo se diga da chamada "partilha diferenciada", em que determinado herdeiro é beneficiado com cota superior à que lhe seria devida por herança, sem reposição pecuniária aos demais herdeiros. Diversamente, ocorrendo cessão de bem imóvel ou de direito a ele relativo, a título oneroso, ou havendo reposição na partilha diferenciada, assim como na hipótese de permuta de bens, o imposto será outro (o ITBI), de competência do Município (CF/88, art. 156), com regulamentação local (em São Paulo, vige a Lei nº 11.154, de 30.12.91, alterada pela Lei nº 13.107, de 29.12.00, com previsão da alíquota genérica de 2% sobre o valor do imóvel). Não incide o imposto causa mortis em caso de renúncia pura e simples de herança ou legado, que se formaliza por escritura pública ou termo nos autos (CC, art. 1.581). Por ser de cunho abdicativo, a renúncia não gera transmissão do bem ao herdeiro renunciante, razão de escapar ao correspondente tributo. Mas o imposto naturalmente incidirá na transmissão operada em favor do herdeiro que se habilitar em lugar do renunciante. A situação difere da chamada renúncia imprópria, translativa, feita em favor de terceira pessoa, que na verdade significa uma cessão de direitos, fazendo incidir não só o imposto causa mortis pela transmissão da herança ao renunciante-cedente, como também o imposto inter vivos, pela transmissão da herança ao beneficiário indicado. Responsabilidade pelo recolhimento São contribuintes do ITCMD os beneficiários da transmissão dos bens, ou seja, o herdeiro, o legatário, o donatário ou o cessionário. Mas a lei estabelece que, nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, subsiste responsabilidade solidária de outras pessoas nos atos em que intervierem ou pelas omissões em que forem responsáveis, enumerando como tais: o tabelião, o escrivão e demais serventuários do ofício em razão dos atos tributáveis praticados por eles ou perante eles; as pessoas jurídicas envolvidas na prática do ato de transmissão; o doador ou o cedente de bem ou direito, qualquer pessoa física ou jurídica que detiver o bem transmitido ou estiver na sua posse; os pais, pelos tributos devidos por filhos menores; o inventariante, pelos tributos devidos pelo espólio etc. Base de cálculo, prazo e penalidades A base de cálculo do ITCMD é o valor venal do bem ou direito transmitido, expresso e atualizado em UFESPs. Considera-se valor venal o valor de mercado na data da abertura da sucessão ou da doação. Nos processos de Inventário, a apuração do valor se faz por avaliação judicial, mas esta pode ser dispensada se o valor declarado pelo inventariante for aceito pelos demais interessados e pela Fazenda Estadual, que intervém nos autos por meio do seu Procurador. Em se cuidando de bem imóvel, o valor de base de cálculo não pode ser inferior ao que constar do lançamento fiscal (IPTU, se for imóvel urbano, ou ITR, se rural). Comporta ressalva o inventário simplificado, que se processa por Arrolamento (CPC, art. 1.031 e seguintes). Nesta forma de procedimento não se avaliam os bens para efeitos fiscais. Prevalece a declaração do inventariante, sem intervenção da Fazenda, que é apenas cientificada, podendo, se discordar do valor, instaurar procedimento próprio de arbitramento da base de cálculo, para fins de lançamento e notificação do contribuinte na esfera administrativa (CPC, art. 1.034, e artigo 11 da Lei paulista nº 10.705/00). A nova lei regula os prazos de recolhimento do imposto e as penalidades para recolhimento tardio. Na transmissão causa mortis, o imposto será pago até 30 dias após a decisão homologatória do cálculo ou do despacho que determinar seu pagamento. Na doação, o imposto será recolhido antes da celebração do ato ou contrato correspondente. Não sendo pago no prazo, o débito do imposto fica sujeito a acréscimo dos juros de mora e multa. Os juros se contam por mês ou fração, com base na taxa SELIC (Sistema Especial de Liquidação e de Custódia), observado o mínimo de 1% ao mês. No caso de inventário e arrolamento, a multa decorre do atraso no seu ajuizamento: 10% se o processo não for requerido em 60 dias da data da abertura da sucessão (morte do autor da herança), ou 20% se o atraso exceder a 180 dias. Também se prevê a possibilidade de parcelamento do imposto causa mortis em até 12 prestações mensais, a critério da Procuradoria Fiscal, se não houver no monte importância suficiente em dinheiro ou título para o pagamento imediato. Há que se levar em conta, porém, a restrição processual da homologação da partilha ou da expedição do correspondente formal enquanto não comprovada a integral quitação do débito perante o Fisco (CPC, arts. 1.026 e 1.031, § 2o). Constitucionalidade do imposto progressivo Questionável a constitucionalidade do critério adotado para cálculo do imposto, em face da progressividade das alíquotas. A Constituição Federal prevê a possibilidade de instituição desse regime progressivo apenas para o imposto de renda (art. 153, § 2o, inc. I) e para o imposto predial e territorial urbano (IPTU - art. 156, § 1o, I e II, com redação trazida pela Emenda Constitucional nº 29, de 19.9.2000; e art. 182, § 4o, II), embora sem vedação expressa com relação aos demais tributos. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal julgou inadmissível a incidência progressiva do imposto sobre transmissão de bens imóveis (ITBI), prevista em anterior legislação do Município de São Paulo, ao argumento de que feria princípio isonômico. Confira-se a ementa do julgamento: "Capacidade contributiva - Imposto de Transmissão inter vivos. A variação do preço do negócio jurídico atende ao instituto da capacidade contributiva. Adoção de alíquotas diversas representa duplicidade contrária ao texto constitucional. Precedente: RE nº 234.105-3, SP, rel. min. CARLOS VELOSO, Pleno, j. em 8.4.99" (RE nº 247.309-0-SP, da 2ª Turma do STF, rel. min. MARCO AURÉLIO, j. em 17.8.99, v.u., publicado no DJU de 29.10.99, pág. 25; RJ-IOB, vol. 1/14250). Não obstante a relevância do precedente jurisprudencial relativo a outro imposto, faz-se necessário exame mais aprofundado de sua aplicação ao novo imposto estadual sobre herança e doação, levando-se em conta a forma como foi instituído, em graduação de valores que visa beneficiar os contribuintes de menor potencial econômico. Com efeito, a isenção e as alíquotas diferenciadas da nova lei do ITCMD vêm a benefício do contribuinte, relativamente às heranças e doações de menor valor, em vista da redução da antiga alíquota única de 4%. Agora, quem recebe menos pode gozar de isenção ou de pagamento reduzido. Demais disso, não se vislumbra violação ao princípio da igualdade, pois a diferença dos cálculos é de aplicação geral, atende aos interesses de todos, na medida em que somente incide a alíquota máxima para os valores excedentes aos limites da escala inferior. Ou seja, todos os contribuintes se beneficiam igualmente dos favores fiscais incidentes na tabela progressiva. Ainda com maior peso, tenha-se em mente o princípio republicano da "capacidade contributiva", expresso no artigo 145, § 1o, da Constituição Federal: "Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte". Em comento a esse dispositivo fundante de nosso sistema tributário, anota o prof. ROQUE ANTONIO CARRAZZA que em geral todos os impostos devem ser progressivos, porque "é graças à progressividade que eles conseguem atender ao princípio da capacidade contributiva" ("Curso de Direito Constitucional Tributário", 7ª ed., Malheiros, SP, 1995, págs. 60 e 61). É questão de alta controvérsia, sem dúvida, a ensejar maiores debates, tendo por rumo não apenas a mera disposição literal dos textos jurídicos mas os princípios maiores que servem ao alcance da real igualdade no tratamento fiscal a pessoas de diversa nivelação econômica. Conclusões A nova legislação paulista, que vem a lume com visível demora em face das modificações constitucionais relativas ao imposto em pauta (quando outros Estados da Federação de há muito se adaptaram ao vigente sistema), haverá de alcançar o propósito de maior justiça fiscal, seja pela isenção total ou parcial do tributo às pequenas heranças, ou pela extensão da cobrança do imposto à transmissão de bens móveis, alcançando situações de fortuna que antes não eram tributadas. Com relação aos bens móveis, no entanto, permanece um vão de escape para certos bens que pertençam ao autor da herança mas não titulados em seu nome. Eventualmente não serão declarados no inventário, tais os adornos da residência, ações e títulos ao portador e mesmo contas conjuntas que possibilitem ao co-titular o levantamento independente da formalização judicial da transmissão causa mortis. O mesmo se diga de doações de bens sem formalização escrita, quando superiores ao piso legal tributável. É bom estar alerta, no entanto, para os graves efeitos dessa prática sonegatória. O recebimento de bens por vias transversas pode ensejar outros meios legais de apuração da responsabilidade fiscal e penal do adquirente (cruzamento de dados com a Receita Federal, quebra de sigilo bancário etc.), pelo injustificado acréscimo ao seu patrimônio e rendimentos. Põe-se em xeque a constitucionalidade do critério progressivo adotado na nova lei do ITCMD, ante a falta de previsão específica na Carta de 88. Mas vale considerar, em argumentação contrária, que a isenção e a alíquota reduzida se aplicam a todos os contribuintes, ante o cálculo da alíquota maior apenas para o excedente dos limites anteriores; e que o tratamento aparentemente desigual atende ao princípio da graduação da imposição tributária conforme a capacidade econômica expressa pelo valor dos bens auferidos, de modo a enquadrar-se como efetivo instrumento de realização da justiça social. |