3 - Sobre a participação popular
MARCOS DE LIMA PORTA - Juiz de Direito |
A Constituição Federal de 1988, batizada de Constituição Cidadã, indelevelmente, instaurou uma nova ordem jurídica no Brasil, em vigor até os nossos dias.
Esse "novo" sistema jurídico aderiu à idéia teórica que objetiva a conciliação dos direitos individuais, dos direitos sociais, dos direitos coletivos, dos direitos políticos e, sobretudo, dos direitos da cidadania.
Ao assim proceder, a satisfação dos interesses públicos primários da coletividade deixou de ser prerrogativa exclusiva do Estado; novos sujeitos -- que não o Estado --, passaram a ter também incumbências públicas, quer individualmente, quer em grupo, ao terem o direito de participarem com responsabilidade sobre os interesses gerais e fundamentais da sociedade. Nesse sentido, bem afirma o Prof. Paulo Neves de Carvalho:
"Ao aproximar-se a década de 90, aderi à nova idéia que, no plano teórico, buscava conciliar direitos individuais, sociais, coletivos, políticos e, sobretudo, os da cidadania; era tempo do Estado democrático de direito, forjado nas idéias generosas de participação, mais do que isto, de parceria, os indivíduos, eles próprios, e os grupos sociais repartindo a responsabilidade pela realização dos interesses gerais e fundamentais da sociedade; a realização dos interesses públicos deixando de ser prerrogativa ou privilégio do Estado"(Interesse Público, 25/2004, pág. 356).
Essa interferência popular atinge praticamente todas as relações intersubjetivas públicas. No plano da democracia direta, destacam-se as modalidades do referendo, do plebiscito e da iniciativa popular. No plano da Administração Pública, as hipóteses estão previstas, por exemplo, nos artigos 5º, XXXVIII e LXXIII, art. 29, XII e XIII, art. 37, par. 3º, art. 74, par. 2º, art. 187, art. 194, parágrafo único, VII, art. 204, II, art. 206, VI, e art. 224, todos da Constituição Federal.
Essas formas de participação popular, ao serem exercidas, valorizam a sociedade e fazem nascer a esperança de um mundo melhor. Como conscientizar as pessoas "a participar" constitui um grande problema. Termino este brevíssimo texto com as palavras do Prof. Paulo Neves de Carvalho, a respeito do tema:
"Caminho longo e áspero, acrescente-se, porque no plano da praticidade, muitos óbices se opõem ao processo de conscientizar.
Entre eles a falta de desenvolvimento econômico, sem o qual não se instala a promoção social; em decorrência, a profunda marginalização ou exclusão social, que aparta do processo de assimilação de valores toda uma legião de brasileiros, mais de 50 milhões, tomados pela ignorância, a doença, o desemprego e – constrange dizê-lo – a fome; a inquietante fragilidade do Estado – o "espantalho" de arrozal" de nosso tempo – que, a passos largos, vai perdendo a condição de fiador dos interesses fundamentais da sociedade, agora, mais do que nunca, refém dos poderes paralelos – o do crime organizado e o do mercado internacional; e a própria cultura, que afasta do homem a compreensão de que ele tem de ser agente ativo na construção de seus próprios caminhos.
Estes óbices se opõem à conscientização; por causa deles, a sociedade brasileira, desarmada, vive enorme dificuldade de descobrir seus próprios caminhos, forjar sua própria identidade e convicções, fixar e assimilar valores e desenvolver o genuíno tecido moral.
Por causa deles, o administrado não vive a idéia da cidadania e da participação, tão generosa em sua formação abstrata.
Por causa deles, não tem a sociedade brasileira – ou a maior parte de seus segmentos – vontade própria; a que expressa vem de segmentos da mídia, sem qualquer compromisso com alavancamento do espírito. Então se vê que a generosa opção da parceria com o Estado não se realiza; permanece no plano da opção teórica. A cultura dos direitos individuais continua prevalecendo; a função social da propriedade está longe da efetividade de que cogitam a doutrina e o direito positivo, os direitos de segunda geração, os sociais, e os difusos estão longe de firma-se, a despeito de dizer-se emergente a Nação.
Do mesmo modo, a lição da ética, a diretriz mais alta do comportamento humano – os famintos, os doentes, e os ignorantes – é óbvio que a ignoram --, permanece nas salas de aula ou nos discursos.
Daí, a inarredável conclusão que a lei, à margem do direito, não operacionaliza o generoso ideário dos arts. 1º e 3º da Constituição – o de uma sociedade livre, fraterna e justa, entre outras opções; nem faz que os valores entranhem no tecido humano, notadamente o da ética e o da moralidade" (Interesse Público 25/2004, págs. 357 e 258). Marcos de Lima Porta é juiz de Direito estadual, mestre em Direito e professor. Autor do livro "O Processo Administrativo e o Devido Processo Legal", ed. Quartier Latin, São Paulo. E-mail: marcosporta@uol.com.br |