298 - Direito autoral. Artes plásticas. Direito moral. Imprescritibilidade
LUIZ FERNANDO GAMA PELLEGRINI - Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
A Convenção de Berna por seu artigo 6bis estabelece que:
“1) Independentemente dos direitos patrimoniais do autor, e mesmo depois da cessão dos citados direitos, o autor conserva o direito de reivindicar a paternidade da obra e de se opor a toda deformação, mutilação ou outra modificação dessa obra, ou a qualquer dano à mesma obra, prejudiciais à sua ora ou à sua reputação.
2) Os direitos reconhecidos ao autor por força do parágrafo 1 antecedente mantêm-se, depois, de sua morte, pelo menos até a extinção dos direitos patrimoniais e são exercidos pelas pessoas físicas ou jurídicas a que a cada legislação reconhece qualidade para isso.”
Por sua vez, a Convenção Interamericana sobre os Direitos de Autor em obras literárias, científicas e artísticas, dispõe por seu artigo XI, verbis:
“XI - O autor de qualquer obra protegida, ao dispor do seu direito por venda, cessão ou de qualquer outro modo, conserva a faculdade de reclamar a paternidade da obra e a de opor-se a toda modificação ou utilização da mesma, prejudicial à sua reputação de autor, a não ser que por seu consentimento anterior, simultâneo ou posterior a tal modificação, haja cedido esta faculdade ou renunciado à mesma, de acordo com as disposições da lei do Estado em que se celebre o contrato.” ( grifei)
A lei autoral nº 9.610/98 apresenta capítulo específico para os direitos morais, independente de disposições esparsas, prevendo por seu artigo 24 as situações que ensejam a incidência desses direitos, quer para o autor/criador quer para os seus sucessores, estabelecendo ainda competir ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio público.
Diante dessas normas o que procuraremos é aferir se esses direitos são prescritíveis ou não, o que desde já nos adiantamos no sentido de que eles são imprescritíveis, muito embora o denominado interesse cultural/social que é como o direito de autor objeto de disciplina constitucional, guarda, no entanto, pretensões em invadir uma das garantias individuais previstas na Carta Magna, o que preocupante.
O ilustre autoralista PLINIO CABRAL sobre o tema assim se manifesta: “Os direitos morais do autor, entretanto, não nascem com a personalidade, mas com a elaboração da obra. Não fazem parte intrínseca do homem, mas sim do seu ato criador. Nascem quando a obra é fixada num suporte material, tangível ou intangível. E, finalmente, ele é imprescritível e, mais ainda, sobrevive a o próximo autor, já que seus herdeiros são obrigados a manter e defender a paternidade e a integridade da obra. Disso resulta que os direitos morais não podem ser objeto de contrato. Qualquer estipulação contrato tendo em vista os direitos morais é nula de pleno direito.” (01)
O saudoso professor e desembargador WALTER MORAES nos ensina que: “ Fala-se direito moral para contrapô-lo ao pecuniário. Como se o econômico não fosse também moral, como se o pecuniário escapasse ao domínio do ético. Mas fala-se “moral” para significar que este direito não é econômico. E aí vai o outra impropriedade mais profunda ainda, porque de fato os direitos morais têm expressão “moral”, ou melhor, personalíssima. Não há, realmente, uma linha demarcatória nítida entre o patrimonial e o não patrimonial. A mutilação de uma obra pode causar prejuízo; e se diz direito moral.” (02)
RODRIGO MORAES em obra sobre o tema suscita a seguinte questão: “A lei autoral brasileira prevê o prazo de duração apenas dos direitos patrimoniais. Omitiu-se sobre qual seria aquele dos direitos morais. Com tal omissão, pode-se dizer que são perpétuos? Caso afirmativo, todos eles ou apenas alguns? Há divergência doutrinária a esse respeito.” (03)
O fato das convenções das quais o Brasil é signatário não disporem sobre o prazo de defesa dos direitos morais, diversamente com o que ocorre com os direitos patrimoniais, tal lapso a nosso ver em nada invalida a afirmação de que esses direitos imprescritíveis, mesmo porque a lei autoral vigente nos permite alcançar essa conclusão, senão vejamos.
No tocante aos direitos patrimoniais a matéria está disciplinada no artigo 41 da lei, em que num primeiro plano o autor criador intelectual goza das disposições contidas no artigo 24 enquanto viver, o que vale dizer que poderá reinvindicá-las sempre que ocorrer um dano moral nas hipóteses previstas nos incisos I a VII, sendo que seus sucessores somente defender a sua criação artística nas hipóteses dos incisos I a IV, inclusive com base no artigo 18 do Código Civil.
O artigo 27 da lei diz que os direitos morais são inalienáveis e irrenunciáveis, nada dizendo quanto ao direito do seu exercício, o que a nosso ver em nada invalida serem esses direitos imprescritíveis, pela sua essência como direitos personalíssimos, cujo exercício nas e morre com o autor ou seus sucessores, salientando-se, no entanto que o inciso I consigna expressamente que são direitos morais do autor o de reivindicar, a qualquer tempo....., o que vale dizer que a lei fixou sim que quaisquer violações desses direitos são imprescritíveis, pois a qualquer tempo significa enquanto viver o sucessor ou o último dos sucessores.
Aliás, recentemente analisamos os direitos morais posição dos quais eles exercem esses direitos em face da obra cujos direitos patrimoniais se extinguiram e consequentemente passaram a ser de domínio público, quando assim consignamos: (04)
“O que se verifica já à primeira vista, é que aos sucessores cabe a incumbência e até mesmo a obrigação de zelar pela obra do artista que pelo lapso de tempo deixou de gozar da exclusividade de sua exploração patrimonial e, o Estado a defesa da integridade e autoria da obra.
Essas normas são compatíveis, muito embora os direitos morais dos sucessores também visam assegurar a integridade da obra (inciso IV) bem como a autoria, também denominada direitos de paternidade (inciso I), e ambos a defesa da obra, todavia o Estado não tem a legitimidade do exercício dos direitos morais dos sucessores, pois são situações parecidas, mas que não se confundem, mesmo porque legisladas com fundamentos diversos.
O jurista, advogado e Desembargador aposentado RENAN LUTUFO em comentários ao Código Civil vigente externa seu entendimento nos seguintes termos: “Os direitos da personalidade podem ser divididos em direitos à integridade física e em direitos à integridade moral. Em relação à integridade física, destacam-se o direito à vida, o direito sobre o próprio corpo e do direito ao cadáver. Quanto aos direitos à integridade moral, tem-se o direito à honra, à liberdade, à privacidade, e, numa esfera mais estreita, à intimidade, à imagem, ao nome e aos direitos morais sobre as criações pela inteligência . O dispositivo não tem precedentes na legislação anterior. Assim, para Gustavo Tepedino, considerados como direitos subjetivos privados, os direitos da personalidade possuem como características, além da extrapatrimonialidade e da irrenunciabilidade previstas no art. 11 deste Código, a característica da generalidade, o caráter absoluto, a inalienabilidade, a imprescribilidade e a intransmissibilidade. O absolutismo decore do fato de ser logicamente oponível erga omnes, impondo-se à coletividade o dever de respeitá-los. A generalidade, que consiste em ser concedida a todos, pelo simples fato do ser humano estar vivo, de ser, implica a existência e investidura dos direitos da personalidade. A extrapatrimonialidade, que decorre da indisponibilidade expressa na intransmissibilidade, ademais, é visa como característica desses direitos por serem insuscetíveis de avaliação econômica, mesmo que sua lesão gere efeitos econômicos. (Código Civil comentado, volume I, págs. 51 e 53, Saraiva).
Diante desse ordenamento já se pode concluir que o fato da obra cair em domínio público em nada afeta o exercício dos direitos morais dos sucessores do artista, posto que o exercício dos direitos morais é imprescritível, e além do mais a lei autoral no já citado artigo 45 é expressa quando estabelece o marco inicial que a obra cai no domínio público, ou seja, quando decorreu o prazo de proteção dos direitos patrimoniais, que neste caso são de 70 anos do dia 1º de janeiro do ano subseqüente ao do falecimento do autor, conforme norma expressa no artigo 41 da lei autoral.
E essa previsão legal é muito importante, mormente em um país de terceiro mundo, caminhando sem dúvidas para uma condição melhor, em que a memória é fraca e o poder público é absolutamente inepto e inerte quanto ao seu patrimônio histórico/cultural/artístico, em que a presença de titular ou titulares desses direitos morais é de suma importância.
Os exemplos existentes podem a qualquer momento ser constatados, como por exemplo o “Obelisco” de autoria do escultor Emendabile que normalmente encontra-se em situação precária, em cujo local além da obra escultural em si é o local em que se encontram aqueles que serviram e honraram o Estado de São Paulo, “Monumento do Ipiranga” ou “à independência” de Ettore Ximenes, que tantos danos já recebeu, o “Monumento às bandeiras” de autoria de Victor Brecheret, cujas pichações já fazem parte do seu cotidiano, o “Monumento a Caxias” cujo abandono pela municipalidade é uma vergonha e outros que nos fogem à memória, a “Mãe preta” e “Bandeirante” de autoria de Julio Guerra, que igualmente é muito é pichada, as “Graça I e II” de Victor Brecheret, que se encontram na galeria Prestes Mais cujo braço de uma delas quase foi arrancado muito embora hoje restaurada, tudo isso já existiu e existe com o patrimônio público e provavelmente continuará a existir, pois e depender do poder público constituído nada acontece a não ser que haja uma atitude enérgica dos sucessores dessas ou daquela obra.
Mas não são só os monumentos públicos que podem se sujeitar a atos de vandalismo, os painéis por exemplo como o do Teatro Cultura Artística de autoria de Di Cavalcanti, que salvou-se do recente incêndio em que poderia ter quiçá ocorrido má administração, mas que de qualquer o sucessor ou sucessores devem sempre estar atentos.
O estado dos painéis de mármore travertino do Jockey Club na área externa encontram-se corroídos pela poluição sem que a administração tome qualquer medida a respeito.
E a cidade de São Paulo e outras são muito ricas com obras dessa natureza, criadas que foram em uma época em que a sociedade contratava a feitura de painéis, como por exemplo, os painéis do pintor Clovis Graciano na avenida 23 de maio e na avenida Paulista, perto da Brigadeiro Luis Antonio, o painel de Di Cavalcanti no antigo Hotel Jaraguá, os painéis de autoria de Fulvio Penacchi no belíssimo Hotel Turiba em Campos do Jordão, os afrescos de Portinari na igreja da Pampulha, um painel de Di Cavalcanti no aeroporto de Congonhas na ala reservada a autoridades, os afrescos de Di Cavalcanti e Fulvio Penacchi que juntamente com a “Via Sacra” de Brecheret ornamento a igreja que se encontra junto ao Hospital das Clínicas e assim por diante.
Com todas essas obras podem ocorrer danos, quer pertençam ao patrimônio público quer sejam particulares, mas em quaisquer das hipóteses os direitos morais exercidos pelos sucessores se farão presentes sempre que elas se inserirem nos incisos I a IV, do artigo 24 da lei autoral já invocado, o que torna os sucessores tão responsáveis quanto aos poderes constituídos e mesmo os particulares, que não podem permitir que as obras pertencentes a eles sejam danificadas ou de qualquer forma possam macular o nome, a obra e a imagem do seu criador que são riquezas oriundas do intelecto e do espírito, portanto personalíssimas.
Pode-se concluir, portanto, que a obra caída no domínio público em nada altera o exercício dos direitos morais dos sucessores do artista plástico, que continuam hígidos até a morte deles”.
Há que se fazer uma diferenciação no tocante aos direitos morais em termos gerais, em que várias situações ensejam indenizações não apenas patrimoniais mas igualmente morais, pois naquela situação específica alguém sentiu-se ofendido, magoado, frustrado, enfim, sua intimidade foi afetada por ato ou omissão que consequentemente ensejaram danos morais.
Já no tocante aos danos morais como tal previstos na lei autoral a situação a nosso ver é diferente, em que os direitos morais são decorrentes de determinados ações ou omissões, ou seja, eles já existem previamente quando da criação artística/intelectual, e se fazem presentes quando essas situações são objeto de ações por parte do autor ou de seus sucessores.
São situações específicas e sui generis todas elas decorrentes da criação artística/intelectual do artista e pela sua morte dos seus sucessores, todas visando a proteção da criação intelectual e dos direitos personalíssimos do autor que posteriormente serão exercidos pelos seus sucessores, o que torna desnecessária qualquer menção legislativa a qualquer prazo para o exercício desses direitos em face da própria essência do direito de autor.
Ou seja, os direitos morais surgem no mundo jurídico no momento em que o autor cria a sua obra, suas criação intelectual como diz a lei e poderão ou não ser violados e os seus sucessores exercerão esses direitos se for o caso.
E o contido no inciso I, do artigo 24 da lei autoral não propicia qualquer outro entendimento, pois ao consignar que o autor e/ou sucessores poderão a qualquer tempo recorrer aos incisos previstos no dispositivo legal mencionado, essa disposição a nosso ver já definiu o prazo, ou melhor, a ausência de qualquer prazo para esse fim, diversamente do Código Civil, que na espécie entendemos não se aplicar, mesmo porque a lei autoral é lei específica.
A jurisprudência já se manifestou a respeito e penso que a ementa abaixo pode ser um leading case em matéria autoral, oriunda do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na AC nº 70018822239- Rel. DES. ODONE SANGUINE, Porto Alegre, Nona Câmara Cível, à unanimidade – j. 23/05/2007 – Publ. 01/06/2007, a saber:
“APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDINIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DIREITO AUTORAL. Plágio de dissertação de mestrado. ART. 24, II, DA LEI Nº 9610/98 . DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO.”
2. MÉRITO . PRESCRIÇÃO. O ART. 24 da Lei nº 9610/98 dispõe que: “São direitos morais do autor: I – o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoral da obra; (...). Desta redação, extrai-se ser o direito moral do autor imprescritível.” (grifei)
(01) A nova lei de direitos autorais, comentários, Harbra, 4ª. Ed., págs. 44/45
(02) Questões de direito de autor, Editora RT, 1977, pág.41
(03) Os direitos morais do autor, repersonalizando o direito autoral, Lúmen Júris Editora, 2008, pág. 15
(04) Direitos autorais. Direitos morais dos sucessores. Obra caída em domínio público. (www.apamagis.com.br/doutrina.php).