299 - Considerações sobre o poder geral de cautela
DANIEL CARNIO COSTA - Juiz de Direito
Introdução – A tutela jurisdicional cautelar
O Código de Processo Civil brasileiro é divido em Livros, cada qual correspondente a um tipo específico de tutela jurisdicional[1].
Existem, nesse sentido, os processos que visam a tutela jurisdicional de conhecimento (tradicionalmente divididos em provimentos constitutivos, condenatórios e meramente declaratórios), os processos de execução e os processos cautelares.
A tutela jurisdicional veiculada por cada tipo de processo tem funções e objetivos distintos.
Nos processos onde se busca uma tutela jurisdicional de conhecimento, o objetivo é a definição de uma situação controvertida, devendo o Estado-Juiz definir o reconhecimento de um direito. Nesse sentido, o juiz dirá qual das partes tem razão ou é titular do direito material e se limitará à simples declaração, nos casos das tutelas de conhecimento meramente declaratórias. Ou, então, declarará quem tem razão e constituirá ou desconstituirá uma situação jurídica, nos casos das tutelas de conhecimento constitutivas (positivas e negativas). Por fim, poderá declarar quem tem razão e condenar a parte à obrigação de fazer, não fazer, dar ou pagar quantia, nos casos de tutelas de conhecimento condenatórias.
Já a tutela executiva tem objetivo distinto. Não se trata mais de definir quem tem razão ou é titular do direito material no caso concreto. Busca-se, na verdade, a realização prática de um direito já devidamente reconhecido num título judicial ou extrajudicial.
Nota-se que a tutela executiva pressupõe o prévio reconhecimento do direito em título judicial (sentença ou decisão de antecipação de tutela, por exemplo) ou, então, em documento ao qual a lei atribua eficácia executiva (títulos executivos extrajudiciais, como, por exemplo, os títulos de crédito, os documentos particulares assinados pelo devedor e por duas testemunhas etc.)
A tutela executiva visa, portanto, a prática de atos materiais tendentes à realização efetiva de um direito já reconhecido em favor do credor e não adimplido voluntariamente pelo devedor.
A tutela cautelar, por sua vez, não visa nem o reconhecimento de um direito material, nem tampouco a realização prática de um direito já reconhecido num título. Sua finalidade é garantir a proteção e o resguardo de uma pretensão, que é ou será objeto de processo de conhecimento ou de execução.
O processo, como um conjunto de atos encadeados para a obtenção de uma tutela jurisdicional é freqüentemente demorado. A imposição da ampla defesa e do contraditório exige que se dê às partes a possibilidade de alegar no processo aquilo que entenderem pertinente em relação aos seus direitos e, ainda, que se possibilite a produção de provas de suas alegações, sempre num ambiente de ciência e audiência bilaterais. Tudo isso demanda tempo.
Ocorre que o decurso do tempo, ainda que seja o mínimo suficiente para garantir o contraditório e a ampla defesa das partes no processo, pode trazer como conseqüência o risco de perecimento do direito discutido em juízo ou resultar na inutilidade do provimento final, causando prejuízos às partes e, principalmente, à própria função jurisdicional.
É nesse contexto que se compreende a tutela cautelar, cuja função é neutralizar o risco de que a demora na solução do processo (seja de conhecimento ou de execução) possa trazer como conseqüência o perecimento do direito da parte, tornando o futuro provimento jurisdicional buscado no processo uma providência absolutamente inútil.
Tem-se, assim, que a finalidade do processo ou tutela jurisdicional cautelar é garantir a eficácia e a utilidade de um provimento final perseguido nos processos de conhecimento ou de execução, protegendo a pretensão contra os riscos da morosidade do processo principal.
Evolução histórica da tutela cautelar
A concepção tradicional do Estado Democrático Liberal, que tinha como base a liberdade do cidadão e a proteção das garantias do indivíduo em face do Estado (resultado da evolução do Estado Absolutista para o Estado Liberal Burguês), era absolutamente incompatível com a possibilidade de uma tutela jurisdicional que pudesse atuar sobre a vontade de alguém que sequer havia violado um direito.
A matriz do Estado de Direito liberal era marcada pela prevalência da liberdade individual em relação aos poderes de intervenção estatal, não se admitindo a concepção de uma tutela preventiva que constrangesse a vontade do demandado[2].
Bem por isso, o Código de Napoleão não previa a possibilidade de se constranger ou obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer algo, coercitivamente, em razão de uma decisão judicial. Previa a lei que toda a obrigação de fazer ou não fazer resolvia-se em perdas e danos em caso de inadimplemento[3].
A desconfiança do indivíduo em relação ao Estado-Juiz, decorrência do processo histórico de conquistas liberais (prevalência dos valores individuais sobre a imposição Estatal) impedia a concepção de que se pudesse realizar na prática decisões proferidas com base em juízo de verossimilhança ou que se fizesse restrições à ampla participação das partes no processo (ampla defesa e contraditório).
Entretanto, a evolução da sociedade, sua crescente complexidade, bem como a transformação do Estado, todos esses fatores fizeram surgir a necessidade de criação de uma tutela jurisdicional que efetivamente impedisse a prática do ilícito e não simplesmente garantisse a reposição do prejuízo derivado de sua realização.
O surgimento de novos direitos e a crescente necessidade de sua proteção impuseram a transformação do processo civil clássico (liberal), com a necessária criação de tutelas jurisdicionais preventivas, com estrutura procedimental específica e autônoma, atuantes na prevenção do ilícito, na proteção do direito contra o risco de perecimento, na garantia da utilidade do provimento jurisdicional.
É certo que já no direito romano se conhecia algumas medidas preventivas, mas que não tinham uma visão autônoma do processo cautelar como forma específica de jurisdição. Foi somente no último século que a concepção de processo cautelar surgiu como modalidade autônoma de jurisdição, resultado da evolução da doutrina alemã e italiana[4].
Nesse contexto surgiu, então, o processo cautelar.
Processo cautelar e medida cautelar
Processo cautelar não se confunde com medida cautelar.
O processo cautelar é a relação jurídica processual que se exterioriza através do procedimento e que visa a tutela cautelar. É a forma procedimental idealizada pelo legislador para veicular medidas cautelares.
A medida cautelar é a providência efetivamente tomada para proteção de um bem envolvido no processo.
Normalmente, a medida cautelar é o resultado de um processo cautelar, ou seja, a regra é que tal medida seja deferida dentro do processo cautelar.
Entretanto, conforme se verá adiante, admite-se o deferimento de medidas cautelares fora do processo cautelar, no bojo do próprio processo de conhecimento ou de execução.
É possível, assim, que o juiz defira medida cautelar no processo de conhecimento quando a parte solicita tutela antecipada de natureza cautelar, nos exatos termos do art. 273, §7º CPC.
Alguns procedimentos especiais estabelecem a possibilidade de deferimento de liminares de natureza cautelar (não antecipativa), como no caso do mandado de segurança.
Da mesma forma, o art. 653 CPC admite o deferimento do arresto no processo de execução, medida de natureza cautelar que visa garantir a efetividade da função executiva.
Evidencia-se, portanto, que o processo cautelar é o veículo processual adequado para a realização de medidas cautelares. Todavia, nem toda medida cautelar surge em função de um processo cautelar, havendo a possibilidade de serem deferidas no bojo dos processos de conhecimento e de execução.
Breves comentários sobre as características do processo cautelar
a) Instrumentalidade, acessoriedade e autonomia.
O processo cautelar é instrumental, vale dizer, sempre pressupõe a existência de outro processo de conhecimento ou executório, pois sua função não é satisfazer uma pretensão, mas garantir a utilidade e a eficácia de um provimento final em um processo principal.
É correto afirmar que o processo cautelar existe em razão de outro processo, diante da finalidade desse tipo de provimento jurisdicional.
O processo cautelar será preparatório, quando proposto antes da ação principal. Será incidental, quando proposto durante o curso da ação principal
A acessoriedade também é característica desse tipo de processo.
O processo cautelar é acessório em relação ao processo principal, de modo que se o processo principal for extinto, o cautelar também o será. O contrário, entretanto, não é verdade.
Não obstante a instrumentalidade e a acessoriedade do processo cautelar, se trata de processo dotado de autonomia.
O Código de Processo Civil de regência reconheceu expressamente a autonomia do processo cautelar, ao tratá-lo como tutela jurisdicional específica no Livro III, diferentemente do que ocorria na vigência do revogado Código de Processo Civil de 1939, onde o processo cautelar não tinha foros de autonomia, sendo tratado como simples acessório, incluído no título das medidas preventivas.
Atualmente, a autonomia do processo cautelar é amplamente reconhecida, considerando que possui um procedimento próprio, que não se confunde com o processo principal, e possui uma finalidade distinta do processo principal, como visto acima.
Evidência maior da autonomia do processo cautelar se revela na possibilidade de julgamento de procedência do processo cautelar e de improcedência do processo principal ou mesmo do contrário.
Não foi por outra razão que Piero Calamandrei afirmou que o processo cautelar possui uma instrumentalidade hipotética em relação ao processo principal, já que além de estar a serviço do processo principal, não depende da certeza da decisão favorável naquele processo.
b) Provisoriedade, revogabilidade e inexistência de coisa julgada material.
A tutela cautelar é sempre provisória e deve durar até que seja definido o direito através de sentença de mérito (no processo de conhecimento) ou até que o direito seja definitivamente realizado (no processo de execução).
O limite de validade da cautela é, portanto, a conclusão definitiva do processo principal.
Além de serem provisórias, são também as medidas cautelares sempre revogáveis. Vale dizer, a medida de cautela pode sempre e a qualquer tempo ser revogada ou modificada pelo Juiz, desde que se verifique sua desnecessidade ou que se altere o estado de coisas durante o decurso do tempo até a definição da lide principal.
A provisoriedade e a revogabilidade são características inerentes à função cautelar, considerando que esse tipo de provimento jurisdicional se presta, justamente, à proteção do bem jurídico objeto do processo principal e, nesse sentido, deve atuar enquanto houver necessidade de proteção e na exata medida para garanti-la, adaptando-se às alterações de fato ocorridas ao longo do tempo ou mesmo sendo extinta em caso de desaparecimento do risco de dano.
Reconhece-se, assim, que as medidas cautelares são sempre deferidas rebus sic stantibus, para vigerem enquanto a situação de fato permanecer inalterada, ou seja, enquanto existir a necessidade da medida.
É conseqüência lógica da provisoriedade e da revogabilidade das medidas cautelares que a sentença cautelar (definidora de uma medida cautelar) não possa se tornar imutável.
A coisa julgada material é a imutabilidade dos efeitos decorrentes de uma sentença de mérito não mais sujeita a recurso. Porém, no caso das cautelares, não é possível imaginar que uma medida cautelar, deferida através de uma sentença proferida no processo cautelar, possa conviver com a definitividade da coisa julgada material.
Não se pode perder de vista que a finalidade última da tutela cautelar é conferir proteção eficácia ao direito da parte contra o risco de perecimento enquanto não ocorre sua definição no processo principal. Nesse sentido, ainda que a medida cautelar tenha sido deferida em sentença no processo cautelar, poderá ser modificada ou mesmo revogada, sempre em função da necessidade de sua atuação em função da proteção ao bem jurídico discutido no processo principal.
Ademais, a tutela cautelar é deferida sempre com base na fumaça do bom direito, ou seja, mediante cognição sumária. Nesses termos, a imutabilidade dos efeitos da sentença não seria mesmo compatível com a ausência de cognição plena em relação ao direito à cautela.
c) urgência e sumariedade de cognição.
A razão de existir do processo cautelar é a urgência, que se revela através do periculum in mora, ou seja, o perigo de que a demora na definição do processo principal possa gerar à parte um dano irreparável ou de difícil reparação.
O receio da ocorrência da lesão deve ser sério, plausível e fundado. O fundado receio deve ser objetivo, baseado em motivos sérios e que possam ser demonstrados, ainda que de maneira indiciária. O simples receio subjetivo não configura o periculum in mora para concessão da tutela cautelar
No processo cautelar o juiz não analisa de maneira exauriente o direito à cautela. Contenta-se com a existência da fumaça do bom direito ou fumus boni iures.
O Juiz apenas analisa se o direito alegado pela parte é plausível, verossímil, provável, sem analisar profundamente sua existência, o que será feito na ação principal.
Basta a mera possibilidade de existência do direito alegado pela parte e o risco de que haja o seu perecimento durante o curso do processo que já se justifica o deferimento da cautela.
Note-se que a forma cautelar de neutralização do periculum in mora não deve envolver a antecipação à parte do objeto do direito discutido no processo principal, considerando que a análise do direito à cautela se faz com base na mera possibilidade do direito da parte ao objeto da discussão no processo principal.
O juiz deve garantir o objeto da pretensão da parte no processo principal de qualquer forma, menos antecipando à parte o referido o objeto ou parte de sua pretensão discutida na lide principal.
c) Fungibilidade.
A fungibilidade consiste na possibilidade conferida ao Juiz de conceder a medida cautelar mais adequada para resguardar o eventual direito da parte, ainda que não seja a medida requerida pela parte.
É plenamente possível, assim, que o autor ajuíze ação cautelar requerendo determinada medida cautelar, mas o juiz, entendendo que a medida solicitada não será eficaz na proteção do direito da parte, defira medida diversa, mais adequada para resguardar o eventual direito da parte.
Há, em relação às cautelares, uma mitigação do princípio da vinculação do juiz ao pedido que se justifica pela própria função desse tipo de provimento jurisdicional e pelo fato de que não se discute no processo cautelar o direito material das partes, mas tão somente se busca garantir a eficácia e a utilidade do provimento a ser proferido em relação ao direito material protegido.
A fungibilidade é inerente à função de acautelamento, pois visa dar ao Juiz maior liberdade para proteger efetivamente o direito da parte[5].
Poder cautelar geral do juiz
O poder geral de cautela consiste na possibilidade que tem o juiz de determinação de qualquer medida cautelar, ainda que não prevista expressamente no Código de Processo Civil.
Segundo Humberto Theodoro Júnior, “além dos procedimentos cautelares específicos, que o Código regula no Capítulo II deste Livro, poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando houver fundado receito de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação (art. 798)”.[6]
Trata-se, portanto, da possibilidade de utilização pelas partes das medidas cautelares inominadas.
Conforme acima referido, o Código de Processo Civil estabelece um rol de procedimentos cautelares específicos, prevendo regulação procedimental e o conteúdo das medidas cautelares destinadas à proteção do direito material da parte. São as chamadas medidas cautelares típicas ou nominadas.
Entretanto, seria mesmo impossível que o legislador conseguisse prever todas as hipóteses concretas que pudessem ensejar o risco de perecimento do direito da parte, bem como imaginar medidas cautelares que, nos casos concretos, fossem suficientes para neutralizar o risco de prejuízo irreparável ou de difícil reparação.
Nesse sentido, estabeleceu o legislador de 1973, de maneira expressa no art. 798, que o juiz poderá conceder qualquer medida preventiva que julgar adequada para a proteção do direito da parte contra o risco de dano, ainda que não tenha sido prevista e regulada pela lei processual.
O poder geral de cautela tem, portanto, inequívoca finalidade supletiva, buscando complementar o sistema protetivo de direitos, pela concessão, ao Juiz, da possibilidade de suprir as lacunas do ordenamento jurídico.
O Código de Processo Civil de 1939 trazia, de forma implícita, o poder geral de cautela no art. 675. Entretanto, a jurisprudência relutava em admiti-lo em toda sua extensão[7]. Assim, o reconhecimento expresso trazido pelo art. 798 do CPC em vigor representou grande evolução no direito brasileiro, aproximando nossa legislação das codificações européias da Itália, da Alemanha e da Inglaterra.
Relativamente às medidas cautelares típicas ou nominadas, a própria lei estabelece suas condições e procedimentos de maneira específica. Assim, por exemplo, a lei prevê a medida cautelar de arresto, consistente na constrição de qualquer bem do patrimônio do devedor, diante da prática pelo devedor de atos tendentes a fraudar credores, a fim de garantir a eficácia de uma futura execução por quantia certa. Da mesma forma, a lei estabelece quais são os requisitos específicos para a concessão dessa medida cautelar, define em que consiste a fumaça do bom direito e o periculum in mora para fins de arresto e, ainda, estabelece a forma procedimental para seu requerimento judicial.
Entretanto, poderá a parte requerer e o juiz deferir medidas cautelares que não estejam previstas e reguladas na lei, para hipóteses não imaginadas pelo legislador.
Nos casos das cautelares inominadas ou atípicas, deferidas com base no poder geral de cautela, o juiz deverá observar como condição de seu deferimento a presença genérica do fumus boni iures e do periculum in mora. Além disso, o Código estabelece um procedimento cautelar genérico ou padrão, a ser utilizado também para veicular os pedidos cautelares inominados.
Vale destacar, novamente, a advertência feita por Liebman[8], no sentido de que as medidas cautelares inominadas não poderão ser usadas como forma de burlar a demonstração dos requisitos legais exigidos para o deferimento das medidas cautelares previstas em lei[9].
Conforme adverte Carlos Calvosa[10], as medidas cautelares inominadas não tem finalidade substitutiva das outras medidas cautelares típicas, nem se acrescem a elas alternativamente.
Formas de manifestação do poder geral de cautela
O poder geral de cautela se manifesta de duas maneiras:
a) quando a parte, presentes os pressupostos genéricos, requer a instauração, preventiva ou incidental, de processo cautelar, pleiteando medida não prevista no rol legal (inominada);
b) nos próprios autos do processo de conhecimento ou de execução, quando uma situação de emergência exige a atuação imediata do Juiz, independentemente da existência de processo cautelar ou mesmo de iniciativa da parte.
A utilização da ação cautelar inominada é decorrência direta do poder geral de cautela, conforme já analisado acima. O rol de procedimentos e medidas cautelares é meramente exemplificativo, ou seja, numerus apertus, sendo possível, assim, que a parte solicite qualquer outra medida cautelar, ainda que não prevista em lei, desde que presentes fumus boni iures e periculum in mora. Para tanto, deverá a parte fazer uso do procedimento cautelar genérico, estabelecido nos artigos 801 a 812 do CPC.
Entretanto, essa não é a única manifestação do poder geral de cautela.
Também é manifestação do poder cautelar geral do juiz a possibilidade de deferimento de medidas cautelares fora do processo cautelar.
Nesse sentido, entende-se possível que o juiz defira, dentro de um processo de conhecimento ou de execução, medidas cautelares destinadas a neutralizar uma situação de ameaça ao direito da parte.
Conforme já visto acima, as medidas cautelares normalmente são deferidas no bojo de um processo cautelar. Mas nada impede que o juiz, com base no poder geral de cautela, defira medidas cautelares no bojo do processo de conhecimento ou de execução, sempre que apareça a necessidade urgente de garantir o seu resultado útil, protegendo o direito material dos riscos decorrentes da demora no andamento do processo.
Assim é que, por exemplo, o juiz poderá determinar medidas policiais para proteção de uma testemunha que esteja sendo ameaçada durante o curso do processo de conhecimento. Da mesma forma, poderá determinar a remoção de uma coisa objeto da constrição judicial ou a substituição do seu depositário sempre que houver o risco de seu desaparecimento ou de seu perecimento no processo de execução.
Deferimento ex officio de medidas cautelares inominadas
Discute-se na doutrina se o poder geral de cautela pode ser exercitado de ofício pelo juiz, sem requerimento da parte interessada.
É certo que o juiz poderá conceder medidas cautelares no bojo do processo cautelar ou, então, dentro do processo de conhecimento ou de execução. Da mesma forma, é fora de dúvida que o juiz pode conceder medida cautelar diversa daquela que foi requerida pela parte (fungibilidade). Mas, a pergunta que se coloca é a seguinte: poderia o juiz conceder tais medidas cautelares, mesmo sem pedido da parte?
Vejamos.
A tutela cautelar, como forma de tutela jurisdicional, pressupõe a existência do exercício do direito de ação.
A jurisdição é inerte, de modo que o Estado-Juiz somente atuará no caso concreto, substituindo as partes na função de dizer o direito, se provocado pelo exercício do direito de ação.
Segundo dispõe o art. 2, do Código de Processo Civil, nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais.
Vige no direito brasileiro o princípio dispositivo, representado pelo brocardo do ne procedat iudex ex officio.
O processo, cuja instauração depende da iniciativa da parte (mediante o exercício de seu direito de ação) é o instrumento necessário da jurisdição; é o veículo através do qual o Estado-Juiz vai decidir a lide levada ao seu conhecimento.
Nesse sentido, é fora de dúvida de que a prestação da tutela cautelar, com o deferimento de medidas cautelares, pressupõe sempre a existência de um processo.
Conforme já visto, a medida cautelar será deferida sempre no bojo de um processo; normalmente será resultado de um processo cautelar, mas nada impede que tal medida seja deferida dentro de outro processo de conhecimento ou executivo.
Mas uma coisa é certa: não haverá medida cautelar sem a existência de um processo (cautelar, de conhecimento ou executivo). E não haverá processo sem iniciativa da parte.
Tal conclusão não exclui, todavia, a possibilidade de deferimento de medidas cautelares de ofício.
Não há processo cautelar de ofício, mas poderá haver medida cautelar de ofício.
Instaurado o processo por iniciativa da parte (já que é vedado ao juiz prestar jurisdição sem provocação do interessado), poderá o juiz conceder medidas cautelares de ofício.
Sempre que houver a premente necessidade de se resguardar o resultado útil do processo, em prestígio à função jurisdicional, poderá o juiz conceder medidas cautelares mesmo sem iniciativa das partes.
As medidas cautelares de ofício terão caráter obrigatoriamente incidental, pois, como já visto, não há jurisdição sem processo.
Segundo dispõe o art. 797 do CPC, o juiz poderá determinar medidas cautelares sem a audiência das partes, em casos excepcionais, expressamente autorizados por lei.
Segundo Humberto Theodoro Júnior, o deferimento de medida cautelar de ofício é excepcional e limita-se aos casos previstos na lei processual de regência.
O renomado jurista cita como exemplos de hipóteses legais autorizadoras do deferimento de medidas cautelares de ofício, o caso do arresto em execução (art. 653 do CPC), a exigência de prestação de caução na execução provisória (art. 475-O do CPC), a exigência de caução como condição para o deferimento de liminares cautelares inaudita altera parte (art. 804 do CPC), a reserva de quinhão em inventário e o sobrestamento do julgamento da partilha na pendência de impugnação à qualidade de herdeiro (artigos 1000 e 1001 do CPC), a reserva de bens em poder do inventariante (art. 1018 do CPC) e o seqüestro de livros comerciais e de bens do devedor durante o processo preparativo de falência (art. 12 da revogada Lei de Falências).
Marinoni, por sua vez, sustenta que a medida cautelar pode ser deferida de oficio mesmo em casos não previstos em lei, mas de forma excepcional e que a excepcionalidade do deferimento das medidas cautelares de ofício se revela pela ausência de tempo para oitiva da parte e, ainda, que a situação de urgência não seja de conhecimento da parte que possa ser prejudicada[11].
Entendo, todavia, que a restrição aos casos expressamente previstos em lei é referente, tão somente, às cautelares nominadas. Entendo, ainda, que sua concessão não está condicionada à ausência de tempo de oitiva das partes ou ao desconhecimento delas sobre a situação de urgência, mas tão somente à existência da situação de urgência e da fumaça do bom direito.
Até por questão de lógica, não se poderia limitar o deferimento de ofício de medidas cautelares inominadas aos casos expressamente autorizados por lei pela simples razão de que as medidas cautelares inominadas não estão, por definição, previstas no rol de procedimentos legal.
Bem por isso, reconhece Humberto Theodoro Júnior, com toda razão, que a restrição ao deferimento de medidas cautelares de ofício não pode ser levada ao extremo em relação às medidas cautelares inominadas.
Marinoni também concorda que “se a tutela de segurança pode se concedida de ofício em casos previstos na lei, não há como não permiti-la nas situações concretas que, embora não adivinhadas pelo legislador, igualmente justificam a atuação oficiosa do juiz”[12].
Além da questão lógica acima colocada, outros argumentos dão sustentação jurídica ao entendimento de que o deferimento de ofício de medidas cautelares inominados não pressupõe autorização legal expressa, estando sujeito, apenas, à presença dos requisitos do fumus boni iures e do periculum in mora.
Muito embora o processo somente possa ser instaurado por iniciativa da parte, depois de instaurado o seu desenvolvimento se dá por impulso oficial.
Segundo dispõe o art. 262 do CPC, o processo civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial.
A função jurisdicional, inspirada que é em objetivos de ordem pública, deve ser preservada, de modo que é dever do juiz zelar pela correta prestação dessa função do Estado.
Por essa razão, dispõe o art. 125 do CPC que incumbe ao juiz, na direção do processo, assegurar a igualdade de tratamento das partes, velar pela rápida solução do litígio e prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça.
Da mesma forma, poderá o juiz determinar, de ofício, provas necessárias à instrução do processo, em atividade complementar à das partes, segundo disposto no art. 130 do CPC.
É interesse público que o Estado-Juiz, quando chamado a prestar a função jurisdicional, o faça com efetividade e correção, dando às partes o que lhes cabe segundo o direito. O processo, como instrumento necessário da jurisdição, deve cumprir com eficácia sua função.
Nesse diapasão, também é imposição do interesse público que o juiz determine o que for necessário para preservar a função jurisdicional, evitando que o provimento jurisdicional se torne providência inútil em razão do perecimento do direito material da parte pela demora no julgamento definitivo da lide.
Portanto, sempre que houver o risco de que o direito, provavelmente pertencente à parte, venha a perecer, causando-lhe prejuízo irreparável ou de difícil reparação, deverá o juiz determinar medidas acautelatórias ou preventivas no intuito de preservar, em última análise, o próprio prestígio da função jurisdicional, evitando, assim, que o futuro provimento jurisdicional seja inútil ou irrelevante.
Tais medidas cautelares deverão ser determinadas, mesmo sem que haja pedido das partes.
Conforme assevera Humberto Theodoro Júnior, “se esses interesses públicos que o Estado detém no processo forem ameaçados de lesão, é claro que o juiz pode preveni-los adotando as medidas cautelares compatíveis, sem que tenha de aguardar a iniciativa ou provocação da parte prejudicada[13]”.
Considerando que é de interesse público o célere desenvolvimento do processo e a eficaz atuação jurisdicional, não poderia mesmo ficar a critério das partes solicitar ou não a intervenção do juiz e o exercício de seus poderes oficiais conferidos por lei.
Portanto, a única condição para o deferimento da medida cautelar de ofício é a presença do fumus boni iures e do periculum in mora, sendo irrelevante, assim, que exista ou não tempo para oitiva da parte ou conhecimento pela parte da situação de risco.
A falta de interesse processual para o ajuizamento da ação cautelar incidental
Segundo dispõe o art. 796 do CPC, o procedimento cautelar poderá ser instaurado antes ou no curso do processo principal e deste sempre é dependente.
Há, portanto, o processo (ou ação) cautelar preparatório, que vem antes do processo principal, e o processo cautelar incidental, que é instaurado quando já está em curso o processo principal.
O processo cautelar, diante de sua reconhecida autonomia, tem procedimento próprio, se inicia por uma petição inicial, com os rigores do art. 282, complementado pelo art. 801, ambos do CPC, e é julgado por sentença.
Até mesmo o processo cautelar incidental, que é instaurado quando já está em curso o processo principal e sobre ele incide, pressupõe petição inicial (com obediência a todos os rigores legais, pressupostos processuais e recolhimento de custas e despesas processuais) e julgamento por sentença.
O processo cautelar, como já visto, é o veículo normalmente utilizado para obtenção da medida cautelar. A providência efetivamente determinada pelo juiz para neutralização do risco de que a demora do processo principal possa gera o perecimento do direito da parte surge, normalmente, como resultado de um processo cautelar.
Entretanto, também já foi visto que a medida cautelar, como manifestação do poder geral de cautela, poderá ser deferida no bojo do processo de conhecimento ou de execução, a requerimento do interessado ou até mesmo de ofício.
Nesse sentido, questiona-se a existência do interesse processual (na modalidade necessidade) de instauração de um processo cautelar incidental, quando a medida cautelar pretendida pode ser obtida mediante simples requerimento ao juiz do processo principal.
Afronta o senso lógico que a parte, diante de duas opções possíveis para consecução de seu objetivo, escolha a mais difícil e custosa.
É evidente a vantagem que representa a obtenção da medida cautelar mediante simples pedido ao juiz da causa principal, ao invés de ajuizamento de ação cautelar incidental, com obediência a todos os rigores formais e o recolhimento de custas e despesas processuais.
Assim, por exemplo, se durante uma ação declaratória de inexigibilidade de título de crédito, a cártula impugnada é apontada para protesto, não faz sentido que a parte ajuíze uma ação cautelar incidental para pretender a sustação do ato notarial. Basta que solicite a providência ao juiz do processo de conhecimento que, por sua vez, estará autorizado a deferir a medida cautelar com base no poder geral de cautela.
Da mesma forma, se durante o curso de um processo de conhecimento uma testemunha é acometida por doença grave, colocando em risco a sua oitiva na fase processual adequada, basta que a parte interessada solicite ao juiz, no próprio processo principal, a antecipação de sua oitiva, sem a necessidade de instauração de um processo cautelar incidental.
Nesse sentido, diante do reconhecimento do poder geral de cautela, o interesse processual para o ajuizamento de ações ou processos cautelares incidentais desapareceu.
Relativamente às ações cautelares preparatórias, seu ajuizamento é imprescindível para a obtenção da medida cautelar diante da impossibilidade de que a tutela jurisdicional seja prestada sem processo.
Se ainda não há processo principal, não resta alternativa à parte para obtenção da medida cautelar senão mediante o ajuizamento da ação cautelar preparatória.
É claro que o poder geral de cautela deve obedecer aos seus limites, dentre eles a impossibilidade de ser utilizado como forma de burlar os requisitos legais expressamente impostos para medidas cautelares nominadas. Assim, se a parte fizer ao juiz do processo de conhecimento ou de execução um pedido de medida cautelar que tenha previsão em lei (arresto, seqüestro, antecipação de prova etc.), seu deferimento pressupõe a presença daqueles requisitos.
Isso, porém, não interfere no raciocínio desenvolvido, considerando que a medida cautelar pretendida também não seria obtida mediante a instauração de um processo cautelar incidental, diante da ausência dos seus requisitos legais autorizadores.
Portanto, é fora de dúvidas que o poder geral de cautelar fez desaparecer o interesse processual para o ajuizamento de ações cautelares incidentais, remanescendo, apenas e tão somente, o interesse para o ajuizamento de ações cautelares preparatórias.
Bibliografia
Calvosa, Carlos. Provvedimenti d´urgenza, in Novíssimo Digesto Italiano, vol. XIV.
Liebman, Henrico Tullio. Manuale di Dirrito Processuale Civile. 1968. vol. I.
Marinoni, Luiz Guilherme e Arenhart, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil, volume 04: processo cautelar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
Theodoro Júnior, Humberto. Processo Cautelar. São Paulo: Leud, 2008.
Daniel Carnio Costa é juiz de Direito em São Paulo. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Mestre em Processo Civil pela FADISP. Doutorando em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP. Coordenador do Curso de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UNAERP – Campus Guarujá/SP. Professor de Processo Civil da Graduação em Direito da FADISP. Professor Convidado da Pós Graduação da FAAP – Campus Ribeirão Preto.
[1] Não obstante a divisão das tutelas jurisdicionais em processos específicos pelo direito positivo brasileiro, não se deve perder de vista a inequívoca tendência do nosso processo de admitir o deferimento de medidas ou tutelas jurisdicionais distintas dentro de um mesmo processo. Trata-se do sincretismo processual, onde se admite a convivência de medidas de naturezas jurisdicionais distintas, como por exemplo, o deferimento de tutelas cautelares e executivas no processo de conhecimento.
[2] Marinoni, Luiz Guilherme e Arenhart, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil, volume 04: processo cautelar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. Pág. 45/46.
[3] Segundo o artigo 1.142 do Código de Napoleão.
[4] Theodoro Júnior, Humberto. Processo Cautelar. São Paulo: Leud. Pág. 35.
[5] A fungibilidade, entretanto, não pode ser utilizada como forma de burlar as exigências do legislador quanto às cautelares nominadas. Nesse sentido, não pode a parte pretender o depósito de dinheiro ou ordem para bloqueios de bens do devedor sem ter título da dívida líquida e certa, pois tal medida é em tudo igual ao arresto que, por sua vez, exige esse requisito específico para o deferimento da medida.
[6] Theodoro Júnior, Humberto. Op. Cit. Pág. 95.
[7] Theodoro Júnior, Humberto. Op. Cit. Pág. 95
[8] Liebman, Henrico Tullio. Manuale di Dirrito Processuale Civile. 1968. vol. I, n. 37, pág. 93.
[9] Segundo Humberto Theodoro Júnior, não se deve aplicar tal limitação. Mesmo nos casos em que a medida solicitada com base no poder geral de cautela tem requisitos expressamente previstos em lei, o juiz deve deferir a medida ainda que ausentes tais requisitos não sendo tolerável que o julgador fique inerte diante do risco de perecimento do direito e ineficácia da jurisdição. (Op. Cit. Pág. 112/113).
[10] Calvosa, Carlos. Provvedimenti d´urgenza, in Novíssimo Digesto Italiano, vol. XIV, pág. 446.
[11] Marinoni, Luiz Guilherme e Arenhart, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil, volume 04: processo cautelar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. Pág. 106.
[12] Marinoni, Luiz Guilherme e Arenhart, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil, volume 04: processo cautelar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. Pág. 104.
[13] Theodoro Júnior, Humberto. Op. Cit. Pág. 98.