301 - Ainda há juízes no Brasil
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES – Juiz de Direito
Todos desejamos a democracia, ainda que não seja um bom sistema de representação popular. Mas ainda não inventaram outro melhor. O grande elemento complicador neste sistema de governo é o próprio homem, justamente seu destinatário, criando um paradoxo insolúvel. A razão é muito simples: o homem nunca é confiável quando exerce o poder.
Montesquieu, sabedor disso, uniu os ensinamentos de Locke e Aristóteles e deu uma nova roupagem ao Poder: dividiu-o em três, a fim de que um controlasse o outro. Assim, os riscos de abuso ou desvio de poder diminuiriam bastante, ainda que não fossem eliminados, dada a natureza decaída do homem.
Por aqui, princípio da separação de poderes já faz parte do ideário constitucional há tempos. Na Constituição Federal de 1988, o artigo 2º dispõe que os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são independentes e harmônicos entre si.
O Poder Legislativo compõe as leis, o Poder Executivo torna-as efetivas e o Poder Judiciário mantém a harmonia da ordem jurídica. Todavia, como acontece nas democracias modernas, existem alguns pontos de intersecção nas atribuições dos Poderes, mas sem que cada um deles perca a exclusividade naquilo que é de sua competência.
Basta lembrar que o Poder Executivo pode editar excepcionalmente as chamadas leis governamentais (medidas provisórias e leis delegadas) e o Poder Legislativo veste a toga, em nível inquisitório, nas Comissões Parlamentares de Inquérito. O sistema tripartite e a democracia sempre são submetidos à prova nos momentos de crise social ou política. E cada poder deve respeitar a ação própria dos demais.
Num aspecto, o Poder Judiciário é peculiar. Enquanto os outros dois buscam no povo seu vigor, ainda que manipulando-o e impondo-se pela demagogia e promessas homéricas, o Poder Judiciário é formado por pessoas altamente preparadas para a difícil missão de julgar, selecionadas depois de cansativo e escrupuloso processo, onde são avaliadas sob os aspectos técnico e moral. Em regra, o Poder Judiciário só fala nos autos e outros poderes falam demais...
Assim, causa perplexidade as constantes manifestações de quadros dos Poderes Executivo e Legislativo no intuito de desqualificar os membros ou as decisões do Poder Judiciário. Para atiçar os ânimos dos bolchevistas enrustidos no primeiro escalão do Governo Federal, basta um magistrado determinar uma liminar de reintegração de posse contra o MST, braço agrário do partido de plantão. Ou então julgar desfavoravelmente qualquer pretensão trabalhista da CUT, a longa manus sindical do mesmo partido.
Recentemente, o secretário de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro teve seus direitos políticos cassados. Foi aos holofotes e acusou a magistrada da decisão de simpatizante do Partido dos Trabalhadores. Sem papas na língua e à semelhança de seu colega de mundo político, a ex-prefeita de São Paulo, que também passou a pertencer ao quadro dos políticos inelegíveis, não poupou adjetivos de coloração tucana à magistrada que a condenou por ato de improbidade administrativa.
Divorciado da boa parte da mídia que sempre o paparicou, o Partido dos Trabalhadores, por intermédio de seu presidente, criou uma curiosa teoria conspiratória, na qual acusa “os setores conservadores” da sociedade de golpismo, só porque provocaram o Supremo Tribunal Federal para se manifestar a respeito da não instalação da CPI dos Bingos e obtiveram um veredicto favorável justamente no meio da pior crise política do Governo Federal. Pasmem, o Poder Judiciário também faria parte da quadrilha que pretende subverter a ordem...
Tais pessoas esquecem-se de que somente estão nos lugares que hoje ocupam, pois a lei os assegura na função e o Poder Judiciário zela por isso, se for o caso, quando acionado, até porque seus membros não desejam nele se manter a cada quatro anos, não contrariam os interesses das partes em favor do império das circunstâncias ou da vontade momentânea da base política, mas objetivam garantir o primado da lei e da ordem para os cidadãos e os governantes.
Por isso, as autoridades devem acatar a lei e as decisões judiciais e compreender que não devem prestigiar seu desrespeito por intermédio de desajustamentos ideológico-temperamentais. No mundo inteiro, o Poder Judiciário preserva o Direito, zela pelas instituições e distribui justiça.
Trata-se de verdade sabida para qualquer cidadão. Basta lembrar conto do humilde moleiro que não quis vender suas terras para Frederico, o Grande, que as desejava para aumentar seus aposentos palacianos. Quando o rei disse-lhe que era rei e tudo podia, o moleiro respondeu-lhe: “Vossa Majestade, mas ainda há juízes em Berlim”. E Frederico desistiu.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br)