302 - Criminalidade e democracia

ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES – Juiz de Direito

 

 

Recentemente, a mídia tem publicado notícias sobre a redução dos índices de criminalidade nas grandes cidades, sobretudo daqueles que envolvem grave ameaça ou violência contra a pessoa. A boa-nova soa como uma bela música, mas poderia soar como a nona sinfonia de Beethoven ou qualquer obra de Mozart, o que, penso, seria certamente alcançado por uma revitalização dos valores que integram nosso ideário de democracia.

 

Democracia é um assunto difícil de extenuar. Existe uma interminável disputa teórica sobre a idéia. É natural. Habermas a entende como um processo, cujo ponto de partida legitimador estaria nas eleições e na adoção de instituições democráticas. Dworkin a vê pela lente da substância, do conteúdo material, ficando em plano secundário os procedimentos típicos de uma democracia representativa. Já Rawls propõe um mínimo conteúdo valorativo para o exercício da democracia e, principalmente, que seja partilhado pela grande maioria. Do contrário, descamba em totalitarismo mais cedo ou mais tarde (basta lembrar que o facínora do holocausto chegou ao cargo de chefe de governo pela via eleitoral).

 

Os atenienses, que implementaram uma experiência de democracia direta por uns 30 anos e que resultou num populismo descomedido que levou a morte de Sócrates e a guerras com todo mundo (inclusive entre os próprios gregos), legaranos a concepção de isonomia, a igualdade de todos perante a lei. De fato, a idéia de norma clara e válida para todos é condição para o exercício da democracia.

 

Todavia, a norma não é como enfeite de árvore de natal. É um comando que cobra o esforço de cada cidadão no cumprimento. Como magistrado, fico espantado com a inflação normativa que nos cerca e que torna impossível o cidadão conhecer bem a lei: uma verdadeira enxurrada de leis, decretos, decretos-leis, regulamentos, portarias, medidas provisórias, leis complementares, circulares normativas, portarias e por aí vai. Em alguns casos, com o devido respeito ao legislador, dada a má qualidade do texto normativo, seria melhor substituir a expressão “inflação normativa” por “diarréia normativa”...

 

Se a lei não é observada, como não vale a alegação de ignorância dela, seu desvio reclama a intervenção imparcial do Poder Judiciário, a fim de que aquele ideário de valores democráticos seja resguardado. Daí vem o enorme poder dos juízes em moldar comportamentos segundo a lei, educando, de certo ponto de vista, a conduta do cidadão transgressor da lei e, indiretamente, toda uma sociedade.

 

Em matéria de criminalidade, a atuação do Poder Judiciário é muito importante. Sobretudo por aqui, onde o brasileiro nunca teve uma grande convicção de respeito pela lei e pela autoridade, talvez fruto de um atavismo dos tempos de Colônia. Do lado do cidadão, se for possível e sem chamar demasiada atenção, prefere-se o “jeitinho”.

 

Do lado do legislador, no discutível afã de tornar isso aqui algo parecido com a Suécia ou a Dinamarca, comumente, criam-se verdadeiras pérolas normativas. Basta lembrar da inimputabilidade para os menores de 18 anos e para a alegria geral dos traficantes e roubadores. Sem se esquecer do pessoal da esquerda saudosista dos tempos áureos de Fidel ou de Che Guevara, que enxerga no indivíduo desajustado socialmente um revolucionário em fase embrionária...

 

Mas o Poder Judiciário não resolve a criminalidade sozinho. A prevalência dos valores democráticos reclama, em última análise, uma verdadeira mudança de atitude do cidadão. A começar por uma cultura de império da lei e da ordem, sem a passividade que se vê, por exemplo, nas ilegais ocupações do MST e nas infundadas rebeliões nos presídios.

 

E, no caso específico da criminalidade, no incremento de uma cultura de valorização da vítima e não do preso condenado, bem ao contrário do que existe hoje, pois o sensacionalismo da mídia acaba induzindo algumas pessoas a representar um papel criminoso e o delinqüente, pasmem, tem até pastoral e as vítimas, mais numerosas que os malfeitores, ficam à mercê da própria sorte, sem qualquer tipo de amparo dos órgãos governamentais ou da própria sociedade.

 


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br)


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