307 - Autorização judicial de aborto eugênico: alvará para matar
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
Não obstante a respeitável decisão liminar do Ministro Marco Aurélio, em caso de autorização judicial para aborto em fetos com malformação genética (anencefalia), pendente de julgamento pelo plenário da Suprema Corte, tenho para mim que o nobre julgador não bem atuou com o esmero que o caracteriza em seus judiciosos votos.
Todos seres humanos são seres humanos desde a concepção. A vida se inicia na fecundação, quando os 23 cromossomos masculinos transportados pelo espermatozóide se unem aos 23 cromossomos da mulher, ocasião em que todos os dados genéticos que caracterizam o ser humano já estão presentes. Daí para frente, qualquer método artificial para destruir a vida é um assassinato, ainda que esteja revestido de uma roupagem judicial.
Penso que, salvo melhor juízo, nenhum magistrado está autorizado a permitir o cometimento de um crime ou de um ato ilícito, já que o aborto legal - estupro e perigo de vida para a mãe - não foi recepcionado pela Constituição de 1988 e o aborto eugênico esbarra na absoluta ausência de respaldo legal.
O aborto eugênico é o aborto fundado em indicações referentes à qualidade de vida. Em sua origem, a eugenia estudava os fatores que poderiam elevar ou diminuir as qualidades raciais (físicas ou mentais) das gerações futuras. Desde seu advento, fortemente influído pelo Evolucionismo de Darwin, tal ciência sofreu muitas alterações de cunho científico e pressões de ordem ideológica.
Seus defensores sustentavam que a seleção natural já não mais funcionava, porque governos e instituições de caridade começaram a amparar os fracos, os doentes e as pessoas malformadas, o que provocou a decadência da raça humana e o surgimento de várias doenças que contaminavam a sociedade de então. Para cessar tal involução, deveria impedir-se a propagação dos degenerados, dos débeis mentais, enfim, de todas as pessoas indesejadas na sociedade.
Hoje, a eugenia se incumbe da tarefa de eliminação de tipos não desejáveis para a espécie humana, de caráter físico e mental, seja por meio de contraconcepção ou de eliminação de entes defeituosos, antes ou depois do nascimento.
A maior parte das prognoses eugênicas são indicações meramente estatísticas. Os médicos que projetam tais juízos futurológicos querem, no fundo, amenizar a traição de seu juramento profissional e já que o feto não terá condições (baseado em conjecturas) de viver futuramente, decide-se que ele não merece viver desde logo. Sobre uma suposição de que o feto não poderá viver ou bem viver (embora viva, fato naturalmente incômodo), autoriza-se a interrupção repentina de sua vida.
O núcleo da tese abortista eugênica é a qualidade de vida: as malformações genéticas de qualquer natureza detectadas precocemente devem ser eliminadas para evitar que as criaturas não sejam fonte de sofrimento para si próprias e para os demais, ou seja, prevalece o racismo cromossômico dos sadios físicos e mentais no direito de nascer e viver.
Ainda que exista alguma limitação física ou mental grave, o homem não perde seu direito à vida e sua dignidade pessoal, assim como não as perdem os esclerosados e os doentes incuráveis. Eis um dos perigos da biotecnologia, algo muito discutido no campo da filosofia: a substituição da postura de prevenção dos deficientes pela recusa de aceitá-los e assisti-los quando eles existem.
Não se admira que este fator esteja presente nas recentes tentativas de abordagem, independentemente de qualquer apelo à transcendência, do futuro da natureza humana. Isso se dá, por exemplo, na visão de Habermas, para quem, a sujeição da tutela daquilo que denomina de pré-vida pessoal a fins terapêuticos produziria uma perda de sensibilidade da nossa visão de natureza humana, a ponto de que um incentivo de tal prática abriria os caminhos para a eugenia liberal.
Daí ser ingênuo crer que os pais defendem o aborto porque o feto tem uma anomalia irreversível. Na verdade, eles se valem das doenças constatadas pelos exames pré-natais para que se arroguem no direito de se livrar de uma criança malformada e, por conseqüência, não terem de enfrentar um problema futuro. Não é o medo à infelicidade alheia que impulsiona ao aborto, mas o medo à infelicidade própria. O aborto resolve o problema dos pais e não o dos filhos.
A hipótese eugênica de que as pessoas incapacitadas são verdadeiramente infelizes, socialmente inúteis e causadoras de sofrimento para terceiros não convence, na medida em que a qualidade de vida futura não é título absoluto para o ser, porque a substância (a vida) não se justifica por um de seus acidentes (a qualidade), mas tem existência em si, independentemente do qualitativo que receba. Ao acidente resta existir em outro, que lhe é distinto.
Assim posta, a questão supera argumentos sentimentais, utilitários e conclusões generalizadoras tomadas a partir da apreciação emocional de casos singulares. Do contrário, coerentemente, a lógica eugênica levaria a uma conclusão paradoxal: poderia justificar-se a morte dos nascidos (pouco importa a idade) que tivessem uma má qualidade de vida.
Os homens de bem devem defender o direito de nascer, já que aqueles que o atacam só o podem fazer porque seus pais lhes asseguraram o direito à vida. Como não foram abortados, podem lutar pela aplicação, aos outros, de uma pena de morte que seus ascendentes lhes pouparam. O bem maior do ser humano é a vida.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br).