312 - A eficácia dos direitos fundamentais nas relações de trabalho

  

TEREZA APARECIDA ASTA GEMIGNANI * - Desembargadora

 

DANIEL GEMIGNANI ** - Bacharelando de Direito


“Ora, as mudanças econômicas tornaram necessário fazer circular os efeitos do poder por canais cada vez mais sutis, chegando até os próprios indivíduos, seus corpos, seus gestos, cada um de seus desempenhos cotidianos. Que o poder, mesmo tendo uma multiplicidade de homens a gerir, seja tão eficaz  quanto se ele se exercesse sobre um só”

 

Michel Foucault- Microfísica do Poder



Resumo:
 O artigo analisa a tormentosa questão da eficácia dos direitos fundamentais nas relações de trabalho. Trata da assimetria de poder das partes envolvidas e foca a abordagem nas dispensas coletivas, fazendo uma leitura constitucional da matéria. Sustenta a eficácia plena do disposto no inciso I do artigo 7º da CF/88 mesmo ante a inexistência de norma infraconstitucional, por considerar que nosso sistema rejeita o non liquet  e propõe meios para sua operacionalização nas diretrizes constantes do artigo 8º da CLT, ressaltando o compromisso que o direito do trabalho tem, desde  sua gênese, com a articulação entre a justiça comutativa e a justiça distributiva.


Palavras-chave:
direitos fundamentais entre particulares numa relação de trabalho - dispensa coletiva e direito fundamental - colisão entre direitos fundamentais do empregado e do empregador - non liquet - justiça comutativa/justiça distributiva.


Sumário:
1- Introdução; 2- Admirável Mundo Novo; 3- Direitos Fundamentais; 4- Direitos Fundamentais  Trabalhistas; 5- Da despedida arbitrária; 6- Do non liquet ; 7- Do marco civilizatório; 8- Da Constituição-fundamento; 9- Conclusão;  10- Referências

 

1- Introdução

 

Uma das características mais expressivas da pós-modernidade, que marca a época contemporânea, é a intensificação das relações de poder entre os particulares. A resistência a um modelo de poder centralizado, a fragilidade das instituições e o sistemático descumprimento da lei, por desacreditar em seus efeitos isonômicos, tem acentuado as disputas de poder nas relações privadas.

 

Essa nova realidade fática vem revelando o anacronismo de nossas instituições jurídicas, edificadas sob notória influência do sistema europeu continental, baseado na supremacia da lei, produto do Parlamento, que serviu de sustentação para o modelo positivista[1].

 

A efervescência econômica e social que foi se intensificando durante o decorrer do século XX, veio evidenciar que a lei não se mostrava suficiente para apontar soluções aos novos conflitos, que se apresentavam cada vez mais complexos.

 

A par disso, nosso sistema constitucional passou a desatrelar-se dos modelos estrangeiros, apresentando traços de maturidade ao atentar para as peculiaridades de nossa cultura e valores, para as particularidades de nossa evolução jurídica.

 

Tais questionamentos se acentuaram com a promulgação da Constituição Federal de 1988, em decorrência da inserção em seu artigo 7º  dos direitos trabalhistas como fundamentais, dando ensejo à formulação doutrinária que garante a possibilidade de exercê-los em face do Estado.

 

Entretanto, este equacionamento tem se mostrado insuficiente para oferecer resposta aos novos conflitos, marcados principalmente pelas relações de poder entre os particulares, fenômeno que se espraia por todos os segmentos da sociedade, como bem  observou Michel Foucault,[2] ao defini-lo como  o exercício de uma microfísica do poder, chamando atenção para o fato de que  o “grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-las ao inverso e voltá-las  contra aqueles que as tinham imposto, de quem, se introduzindo no aparelho complexo, o fizer funcionar de tal modo que os dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias regras”.

 

A questão se revela mais grave quando há relações assimétricas, em que as partes envolvidas ostentam notória disparidade de forças, como ocorre nas relações de trabalho

 

É neste contexto que o presente artigo se propõe a examinar a questão da eficácia dos direitos fundamentais nas relações de trabalho entre particulares[3].

 

 

2- Admirável mundo novo

 

Quando apregoou aos quatro cantos que a tecnologia  seria uma aliada importante na redução do tempo de trabalho e ampliação dos períodos de lazer, Domenico de Masi[4] conquistou corações e mentes. Argumentou que chegara o momento do ócio criativo, em que “na sociedade impõem-se novos sujeitos, a industria e até o trabalho perdem sua importância central, o tempo destinado à formação, aos cuidados consigo e à folga prevalece claramente sobre o tempo destinado ao trabalho”. Então poderíamos  trabalhar apenas 3 a 4 horas por dia com a mesma produtividade das 8 horas habituais e reservar um período maior para o lazer?

 

Apesar das boas intenções, o conhecido sociólogo não logrou comprovar suas idéias.

 

Pelo contrário.

 

Logo descobrimos que a tecnologia na verdade nos trazia uma carga maior de atribuições e, ao invés das 8 horas, passamos a trabalhar muito mais.

 

Mas não é só.

 

Deixou de existir a distinção entre os tempos de trabalho e os tempos da vida privada, os tempos de atividade e os tempos de descanso.

 

Tudo ficou misturado e muito mais controlado.

           

O empregado passou a ser parte do sistema, passível de ser “acessado” a qualquer hora, independentemente do período estipulado no contrato de trabalho. Além disso, diferentemente do apregoado por Domenico de Masi, volta a ser considerado apenas peça de uma engrenagem, e de maneira muito mais perversa e abrangente. Com efeito, enquanto nos primórdios do século passado esta engrenagem estava fixada num determinado espaço físico, e o trabalhador dela se libertava quando encerrava o expediente e as portas se fechavam, hoje ela tem existência virtual e, como tal,  não pára nunca, não fecha as portas, embora mantenha o velho esquema de limitar sua atuação a espaços compartimentalizados, sem ter a noção do conjunto, para que não haja a menor possibilidade de ocorrer perda de controle. Charlie Chaplin[5] certamente ficaria surpreso ao descobrir que, apesar dos grandes avanços tecnológicos, os apertadores de parafuso e a velha bancada estão de volta, com a  agravante de que agora não são os movimentos, mas a própria linha de produção que passa a acompanhá-lo para todo lugar, virtualmente, ampliando os espaços de sujeição.

           

Depois do taylorismo, do toyotismo, do just in time,  o velho fordismo está de volta!

          

Repaginado, é verdade. Mas com o mesmo espírito usurpador da liberdade.

           

Só que muito mais intenso.

          

Usa-se tecnologia de ponta. Mas as condições de vida no trabalho pioraram.

         

Retrocedemos.

           

E, o que é pior, de forma subreptícia, o que dificulta a compreensão do processo e impede a reação, pois ao invés de empregados, o sistema agora trata de colaboradores.

            

Colaborador é parceiro. Parceiro não se insurge contra outro parceiro, porque a estratégia da palavra os coloca lado a lado, na mesma trincheira, supostamente com o mesmo objetivo.

            

É esta realidade fática que revela a importância de abordar a questão da eficácia  dos direitos fundamentais entre os particulares, exigindo a análise de sua funcionalidade, notadamente quando os espaços de poder se ampliam, como vem ocorrendo nas relações de trabalho.

           

Com efeito, quando são quebradas as fronteiras entre a vida laboral e a vida privada, garantir os direitos fundamentais é criar muros de contenção e resistência, que visam impedir a precarização das condições de vida, fazendo valer a efetividade da Constituição, mesmo quando há inoperância do poder legiferante na promulgação das normas infraconstitucionais.

            

É uma situação cuja abordagem se reveste de significativa importância  no mundo do trabalho, pois ao prestá-lo o trabalhador se coloca inteiro como pessoa, limitando seus espaços de liberdade.

             

Neste contexto, manejar direitos fundamentais só em face do Estado se torna insuficiente. O marco normativo só terá eficácia se os direitos fundamentais puderem ser  garantidos também nas relações  entre particulares, preservando  os patamares necessários para  resguardar a pessoa daquele que trabalha[6].

 


3- Direitos Fundamentais

 

Os direitos fundamentais nasceram para garantir os interesses do cidadão em face do Estado, ante a disparidade de poder existente entre eles.

 

Porém, conforme explica Virgílio Afonso da Silva [7], esta “visão limitada provou-se rapidamente insuficiente, pois se percebeu que, sobretudo em países democráticos, nem sempre é o Estado que significa a maior ameaça aos particulares, mas sim outros particulares, especialmente aqueles dotados de algum poder social ou econômico”

 

As relações de trabalho, marcadas pela assimetria de poder entre as partes envolvidas no conflito, vem se apresentando como um campo fértil para debater a questão, notadamente após a promulgação da Carta Constitucional de 1988, que incluiu em seu artigo 7º um extenso rol de direitos trabalhistas como fundamentais.

 

Tal ocorre  porque é impossível haver prestação de trabalho sem  envolvimento e  comprometimento da pessoa do trabalhador. Assim, ao ingressar numa relação de trabalho, além de trazer consigo todos os direitos fundamentais inerentes a sua condição de pessoa, agrega os que a lei lhe garante como trabalhador, o que vai repercutir não só na execução do próprio contrato mas até mesmo na organização empresarial.

 

 

4- Direitos Fundamentais Trabalhistas

 

O artigo 7º da CF/88 listou uma série significativa de direitos fundamentais trabalhistas, criando a ossatura institucional que não só vai sustentar o corpo legal infraconstitucional, como definir parâmetros decisórios para as situações-limite.

 

Neste trabalho pretendemos focar a análise na eficácia dos direitos fundamentais entre os particulares na tormentosa questão das dispensas coletivas.

 

O direito ao emprego sempre esteve no centro do debate das questões trabalhistas. Abolida a escravidão, o trabalho passou a ser valorizado como meio lícito para garantir a subsistência, abrindo caminho para o reconhecimento da dignidade daquele que trabalha. A edição de um corpo legislativo, inicialmente de forma esparsa, e posteriormente através de uma consolidação, passou a reconhecer o valor jurídico desta configuração, fundada no trabalho como direito de cidadania, assim evoluindo para sua constitucionalização.[8]

 

A questão tem voltado ao centro dos debates sob uma nova ótica, agora pela perspectiva dos direitos fundamentais, por se constatar que não adianta albergar um extenso elenco de direitos individuais, se não for garantido o direito ao trabalho. Assim sendo, a proteção da dignidade, almejada pelos direitos fundamentais,  abarca não só garantias negativas mas também positivas, significando um facere que visa  a promoção da cidadania.

 

Ao tratar da matéria, Canotilho [9] destaca  que a teleologia da Constituição aponta para uma eficácia horizontal dos direitos fundamentais, por estarem atrelados à preservação da dignidade humana.

Neste espeque Oscar Ermida Uriarte[10]  pondera que o direito ao emprego está vinculado não só ao princípio protetor, mas faz valer a correção jurídica da desigualdade econômica que existe entre empregador e trabalhador e, por isso, se constitui em condição de eficácia do próprio direito do trabalho, não se podendo olvidar sua interrelação também com o princípio da liberdade, face aos efeitos limitantes que uma relação de emprego impõe ao tempo e a vida daquele que trabalha para garantir sua subsistência.

 

No mesmo sentido o pensamento de Barbagelata[11], ao reconhecer a efetividade jurídica de tais normas e a possibilidade de sua exigência imediata.

 

Ao tratar da matéria, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu no inciso I do artigo 7º que constitui direito fundamental dos trabalhadores a proteção da relação de emprego “contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”.

 

Nosso ordenamento infraconstitucional passou a disciplinar apenas a indenização que é devida nos casos de dispensa individual sem justa causa pelo empregador (lei 8.036/90 [12]), mas até o momento ainda não foi editada  a norma complementar exigida, de modo que não há nenhuma lei  que restrinja a plenitude do comando constitucional em relação à dispensa coletiva arbitrária.

 

Assim, a questão é saber se esta lei, editada para regular a dispensa individual imotivada, passaria a disciplinar também a demissão coletiva arbitrária, elidindo a aplicação imediata do preceito constitucional, enquanto inexistir lei complementar.

 

Não há como estender a aplicação do disposto na lei 8.036/90 para os casos que ela não regulamenta, ou seja, a dispensa coletiva arbitrária, além do que a Constituição exige expressamente que tal matéria seja tratada em lei complementar, condição que ela não ostenta.

 

Assim sendo, como deixar o exercício de um direito fundamental na dependência de uma discricionariedade legislativa, ou seja, ao juízo de conveniência e oportunidade do Poder Legislativo?

 

A efetividade de um direito fundamental pode ficar dependente dos tempos da política?

 

Em outras palavras, qual o significado e a abrangência do princípio da supremacia constitucional ?[13]

 

Ora,  garantir direitos fundamentais é integrar cláusulas abertas, interpretar a lacuna infraconstitucional em favor da eficácia do comando constitucional, e não o contrário, face ao princípio da máxima efetividade que orienta os aplicadores da Lei Maior “para que  em toda situação hermenêutica, sobretudo em sede de direitos fundamentais, procurem densificar os seus preceitos, sabidamente abertos e predispostos a interpretações expansivas”, conforme explicitam Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco[14].

 

Como pondera  Pietro de Jesus Lora Alarcon[15] é por isso que “não podemos falar de uma infiltração indesejada do aparelho jurisdicional no legislativo, mas da possibilidade oferecida pelo Constituinte de dizer o direito quando esta falta de atividade do legislativo desemboca na projeção de uma inefetividade”. Quanto à inexistência de norma infraconstitucional, explica que “logicamente a interpositio  legiferante- o espaço de tempo entre a ordem constitucional e a edição normativa- supõe um prazo. Sendo assim, por óbvio, surge uma questão importante: pode o legislativo, simplesmente não legislar sobre um tema que afeta interesses diretos de uma pessoa ou de uma coletividade de pessoas, comprometendo, destarte, a efetividade da Constituição? Por outras palavras, impõem-se descobrir o sentido da razoabilidade desse espaço de tempo em todos os casos, mas especialmente, quando a efetividade seja dos direitos fundamentais”.

 

Neste diapasão Virgílio Afonso da Silva[16] enfatiza que a Constituição de 1988 respalda a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. E mais, entende que enquanto o legislador não editar a lei referida os efeitos da norma constitucional poderão ser imediatamente exigidos, cabendo ao Judiciário a atribuição de fazer valer sua eficácia. Sustenta a “desnecessidade de mediação legislativa para que os direitos fundamentais produzam efeitos nas relações entre particulares”, destacando que essa “ é uma diferença fundamental, já que, mesmo sem o material normativo de direito privado ou, mais ainda, a despeito desse material, os direitos fundamentais conferem, diretamente, direitos subjetivos aos particulares em suas relações entre si.”

 

No mesmo sentido, esclarece Daniel Sarmento[17] que a teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares surgiu na  Alemanha, no início da década de 50 por Hans Carl Nipperdey, ao explicar  que “embora  alguns direitos fundamentais previstos na Constituição alemã vinculem apenas o Estado, outros, pela sua natureza, podem ser invocados diretamente nas relações privadas, independentemente de qualquer mediação por parte do legislador, revestindo-se de oponibilidade erga omnes.”


Ressalta que nossa Carta de 1988 prevê a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, por considerar que “só existe efetivamente autonomia privada quando o agente desfrutar de mínimas condições materiais de liberdade. Isso não acontece em grande parte dos casos de aplicação dos direitos humanos nas relações entre particulares, nas quais a manifesta desigualdade entre as partes obsta, de fato, o exercício da autonomia. Pensar a autonomia privada, num sentido pleno, é pensar também nos constrangimentos impostos a ela por agentes não estatais, no contexto de uma sociedade profundamente assimétrica e excludente”, como ocorre nas relações trabalhistas.

 

Assim também tem caminhado a jurisprudencia, cabendo destacar dois exemplos importantes:

 

(i) RE 161.243/DF - Relator Min.  Carlos Mário Velloso, assim ementado:

 

“Constitucional- Trabalho. Princípio da igualdade. Trabalhador brasileiro empregado de empresa estrangeira. Estatutos do Pessoal desta. Aplicabilidade ao trabalhador estrangeiro e ao trabalhador brasileiro.

 

I- Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade.

 

II- A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso etc... é inconstitucional”

 

(ii) RE 201.819/RJ – Voto vencedor proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, ao consignar expressamente que as “violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados”. Fazendo remissão ao pensamento de Hesse, enfatiza que “a liberdade individual pode restar ameaçada pela utilização de mecanismos de poder econômico ou social, o que acabaria por permitir a supressão daquele standard mínimo de liberdade pelo uso (abusivo) de posições dominantes no plano econômico-social”.

 

Desta forma rechaça a aplicação da state action em nosso país,  teoria que restringe  a aplicação dos direitos fundamentais apenas em face do Estado, de larga aplicação nos estados Unidos, embora venha sendo minorada atualmente pela public function theory ao imputar tais limitações também aos particulares, mas apenas quando executam atividades de natureza tipicamente estatal.

 

Neste mesmo julgamento o relator foi acompanhado pelo Ministro Celso de Mello, ao ressaltar que  “é por essa razão que a autonomia privada- que encontra claras limitações de ordem jurídica- não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere os particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.”

 

Ademais, é importante registrar que, ao analisar a expressão “além de outros que visem à melhoria de sua condição social”, explica José Afonso da Silva que a respeito desses outros direitos que podem ser outorgados aos trabalhadores, o legislador ordinário está condicionado ao fim ali proposto- melhoria da condição social do trabalhador. “Qualquer providência do Poder público, específica ou geral, que contravenha  esse fim é inválida e pode ser declarada a sua inconstitucionalidade pelo juiz”[18]



5- Da despedida arbitrária

 

O direito trabalhista já vem acolhendo os fundamentos desta teoria nos casos de despedida individual arbitrária, assim considerada aquela que, embora formalmente definida “sem justa causa”, na verdade ocorre mediante a prática de uma conduta discriminatória, como a verificada em relação aos portadores de HIV por exemplo, levando a decretação de reintegração mesmo inexistindo lei infraconstitucional que assim estabeleça. Entende-se que o inciso I do artigo 7º da CF/88 confere o suporte jurídico necessário para resolver a questão, de modo que a eficácia dos direitos fundamentais não é exigível apenas em face do Estado, mas também entre as partes de uma relação de trabalho, notadamente porque nossa Lei Maior veda qualquer discriminação e imputa à empresa o encargo de atender a função social que lhe cabe (artigos 1, 3 e 5º XXIII da CF/88).

 

E quanto aos dissídios que tratam de dispensas coletivas?

 

De um lado a autonomia privada da empresa gerir economicamente seu negócio, de outro uma massa de trabalhadores que, de repente, vê suprimida sua fonte de sustento.

 

Ao disciplinar a matéria, estabeleceu o artigo 7º e seu inciso I da CF/88 que:

 

“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem a melhoria de sua condição social:

 

I-relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos da lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;”

 

Dada tais premissas, como sustentar a eficácia dos direitos fundamentais quando se trata de despedida individual arbitrária e negar tal aplicação nos casos de despedida coletiva, cujos efeitos podem violar direitos fundamentais de um número considerável de pessoas e produzir resultados muito mais lesivos para a ordem pública, comprometendo de forma contundente a função social da empresa?

 

E mais, como submeter a eficácia, de direitos garantidos como  fundamentais pela Constituição, única e exclusivamente à discricionariedade legislativa ?

 

A vedação da dispensa coletiva arbitrária visa evitar que o pretenso exercício de um direito, pelo empregador, seja na verdade um subterfúgio para  maquiar conduta patronal lesiva, geralmente direcionada contra  trabalhadores que estão em situação mais vulnerável, pois tem mais idade e tempo de serviço, chefes de família que via de regra são os que recebem salários mais elevados. A dispensa em massa visa substituí-los por trabalhadores mais jovens que, além de dominar melhor as novas tecnologias, aceitam receber salários menores porque tem menos encargos familiares.

 

Não se pode deixar de reconhecer que a empresa tem interesse legítimo de preservar sua viabilidade econômica e operacional, para garantir seus espaços de competitividade. Entretanto, a proteção desse interesse não pode ser entendida como um direito absoluto, nem pode desconsiderar que, por outro lado, o empregado é detentor de um direito fundamental ao trabalho, que é sua fonte de subsistência.

 

Ora,  o fato de ser coletiva não afasta a vedação imposta pelo preceito constitucional contra a dispensa arbitrária. Pelo contrário, vem torná-la ainda mais imperiosa face à amplitude da lesão, que não só provoca gravame aos demitidos, mas irradia seus efeitos também para a vida econômica e social da comunidade em que estão inseridos.

 

É por isso que nas rescisões coletivas a negociação com o sindicato da categoria se revela imprescindível ante o constante do artigo 8º da Lei Maior, integrando o que o ordenamento constitucional instituiu como iter procedimental do devido processo demissional, mediante o qual o empregador tem a oportunidade de explicitar os motivos justificadores que possam afastar a conotação de dispensa arbitrária, e os trabalhadores a chance de participar da fixação dos critérios que minimizem os efeitos traumáticos da medida, de modo que a inexistência de lei complementar não impede que seja juridicamente exigível, pois se trata de direito fundado na Constituição, que visa impedir a conduta patronal discriminatória.


Tal se dá porque a manutenção da relação de emprego interessa à própria lógica do ordenamento jurídico/político, pois tem o escopo de proteger os meios que possibilitem a subsistência digna do cidadão, sendo que no caso de dispensa coletiva a lesão ultrapassa os limites de um contrato, espraiando seus efeitos para toda sociedade e atraindo a aplicação do disposto no inciso XXIII do artigo 5º da CF/88, ao determinar que a propriedade deve atender a sua função social. Trata-se de garantir a funcionalidade do sistema jurídico, que foi edificado em vasos comunicantes e não em compartimentos estanques, assim preservando a unidade da Constituição.

 

O direito de propriedade não foi instituído, nem pode ser considerado absoluto, porque a própria Constituição estabeleceu expressamente que só estaria justificado na medida em que estivesse atendida sua função social, assim balizando o exercício dos direitos particulares pelos interesses difusos da sociedade em ver prestigiado o trabalho como valor fundante da república brasileira, escopo que não prescinde da preservação do direito ao emprego daqueles que  ajudam a construir a sustentabilidade econômica do empreendimento, a fim de evitar o esvaziamento de sentido de nossas instituições e a intensificação das relações de  dominação  entre as partes de um contrato de trabalho.

          

A exigência de negociação prévia nos casos de dispensa coletiva abre caminhos para a coexistência  do direito ao trabalho com o exercício da livre iniciativa, colocando-os frente a frente para que ocorra a necessária ponderação.

         

Ao frustrar a negociação coletiva e a oportunidade de  estabelecer critérios em  conjunto com o sindicato, representante da categoria dos trabalhadores, o empregador viola preceito constitucional, pretendendo fazer valer exclusivamente seus objetivos particulares e econômicos, em prejuízo da função social que lhe cabe desempenhar.

 

É claro que neste microcosmo existe uma constante correlação de forças,  disputando espaços de poder. Entretanto, há limites que não podem ser ultrapassados, notadamente o respeito aos direitos fundamentais, de modo que as reais razões que motivam as dispensas coletivas devem ser claramente especificadas numa mesa de negociação, a fim de que possam ser barradas todas as tentativas de travestir como legítima uma conduta arbitrária, pois é preciso impedir que a barbárie se reinstale nas relações de trabalho.

 

 

6- Do non liquet

 

Ao inserir tal preceito na Constituição, o sistema  lhe confere eficácia imediata, passível de ser juridicamente exigível, mesmo ante a inexistência de norma infraconstitucional, pois “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça à direito”, assim afastando a possibilidade do  non liquet, diretriz devidamente observada pelo artigo 8º da CLT ao estabelecer que “na falta de disposições legais, ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerias de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público”

 

Neste contexto, a dispensa coletiva se apresenta como matéria de inequívoco interesse público, face aos efeitos econômicos e sociais que provoca na distribuição de renda do grupo social que sofre os seus efeitos, além de tratar de direitos fundamentais que garantem ao cidadão o acesso aos meios dignos e lícitos  de subsistência, assim interferindo  nos valores que pautam a vida em sociedade.

 

 É por isso que o sistema jurídico não permite que o Judiciário deixe de decidir, mesmo ante a  inexistência da lei complementar referida, por considerar que tal não configura omissão impeditiva da tutela jurisdicional, já que a  norma posta no inciso I do artigo 7º da CF/88 é suficiente para garantir a necessária proteção.

 

 

7- Do marco civilizatório

 

Ao discorrer sobre o tema  Jane Reis Gonçalves Pereira[19]explica que “todo o debate relativo à incidência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares é permeado por algumas noções-chave”, entre as quais destaca que quanto mais intenso o poder da organização privada, maior peso terá o direito fundamental que porventura venha a ser violado por suas ações, além de chamar atenção para a necessidade de “preservar a pluralidade no âmbito social. A incidência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares não pode conduzir e uma homogeneização da comunidade, ou seja, é preciso preservar a identidade e as peculiaridades dos diversos agentes sociais”. Finaliza, ponderando que tal discussão é apenas “um reflexo, no plano jurídico, de problemas mais amplos tais como as fronteiras do poder do Estado, a capacidade emancipatória do direito e, correlatamente, os limites e possibilidades da constituição como instrumento de transformação social.”

 

A escalada de coisificação do ser humano, que ressurge de forma violenta neste início do século XXI, torna o Direito cada vez mais necessário como instrumento de resistência, destinado a garantir espaços para preservar a condição de pessoa do trabalhador.

 

A precarização da condição humana vem se intensificando rapidamente. Apesar de todo avanço tecnológico, as relações humanas e sociais estão dando cada vez mais sinais inequívocos de volta à barbárie, o que avulta a importância do Direito para garantir os marcos civilizatórios até aqui conquistados.

 

Como destaca Oswaldo Giacóia Junior[20] “civilização significa a passagem da barbárie à ordenação regular de uma práxis  humana, isto é a constituição de um esquema  praxeológico a que se dá o nome de ethos”. Henrique Cláudio de Lima Vaz[21] ressalta que o aparecimento e o desenvolvimento da idéia de sociedade caminha “em estreita interrelação com a formação da ciência do ethos. A matriz conceptual é representada aqui pela idéia de lei (nomos) que deve permitir o estabelecimento de uma proporção ou correspondência (analogia) entre a lei ou medida (métron) interior, que rege a práxis do indivíduo e a lei da cidade,que é propriamente nómos, e deve assegurar a participação equitativa (uenomia) dos indivíduos no bem que é comum a todos e que e que é, primeiramente, o próprio viver-em-comum”.

 
Ora, o padrão normativo tem o escopo de garantir a vida em sociedade, atuando de forma propositiva para evitar o risco de retrocesso.Por isso, ao analisar a questão sob a perspectiva jurídica, Virgílio Afonso da Silva [22] ressalta ser inadmissível a assertiva de que algumas normas tem eficácia meramente limitada pois “pode-se imaginar que nada resta aos operadores do direito, sobretudo aos juízes, senão esperar  por uma ação dos poderes políticos; com base em concepção diversa, pode-se imaginar que a tarefa do operador do direito, sobretudo do juiz, é substituir os juízos de conveniência e oportunidade dos poderes políticos pelos seus próprios”. Conclui que nenhuma destas posições é sustentável, defendendo como postura mais adequada “aquela que se disponha a um desenvolvimento e a  uma proteção dos direitos fundamentais... a partir de um diálogo constitucional fundado nessas premissas de comunicação intersubjetiva entre os poderes estatais e a comunidade”.

 

Todavia, não se pode desconsiderar que a relação do particular com o Estado tem natureza diversa da existente entre particulares, mesmo em se tratando de direitos fundamentais.Assim, como explica Daniel Sarmento[23],  não “seria aceitável sujeitar o cidadão ao mesmo regime vigente para o Estado, na qualidade de sujeito passivo dos direitos fundamentais, diante da liberdade constitucional desfrutada pelo primeiro, que se apresenta como corolário inafastável de sua dignidade como pessoa humana, em oposição ao caráter intrinsecamente limitado do segundo.”

 

No mesmo sentido pondera Virgílio Afonso da Silva que o complicador desta controvérsia reside na constatação de que “é impossível simplesmente transportar a racionalidade e a forma de aplicação dos direitos fundamentais da relação  Estado- particulares para a relação particulares-particulares, especialmente porque, no primeiro caso, apenas uma das partes envolvidas é titular de direitos fundamentais, enquanto que, no segundo caso, ambas o são”, o que naturalmente vai resultar numa intensificação da complexidade nas controvérsias suscitadas.

 

Para dirimi-las, Virgílio [24] defende a “exigência de fundamentação constitucional”, rejeitando as “teorias que recorrem a figuras pouco claras como limites imanentes, conteúdos absolutos, especificidade, ou a outras formas de restrição ao suporte fático dos direitos fundamentais” em que “a restrição ocorre de forma disfarçada, com base em uma exclusão a priori de condutas, estados e posições jurídicas de qualquer proteção”  indevidamente liberando o “aplicador do direito de qualquer ônus argumentativo”, o que não pode ser sustentado ante o constante do artigo 93 X da nossa Constituição.

 

Neste passo, a fixação dos limites deve encontrar supedâneo no próprio texto constitucional, a fim de “criar condições de diálogo intersubjetivo e de controle social da atividade do Legislativo e do Judiciário, a partir de um modelo que impõe, a todo momento,exigências de fundamentação”, o que está em consonância “com as exigências de um Estado Democrático de direito, que não aceita a restrição aos seus direitos mais fundamentais de forma acobertada”.

 

No caso do Direito do Trabalho o artigo 8º da CLT fixa este balizamento, de modo que a aferição quanto a ocorrência, ou não, de dispensa coletiva arbitrária deve ser feita caso a caso, com observância não só dos princípios gerais de direito, mas também da equidade, dos usos e costumes imperantes na comunidade local, constituindo-se num trabalho de prudência, de jurisprudência, de sorte que o fato de inexistir lei infraconstitucional disciplinando a questão não  impede que a solução seja dada com base na norma constitucional.

 

Com isso, o Direito  exerce sua função promocional, pois não só fornece soluções para um conflito que já está instalado, como  também  passa a  pautar o futuro, como sinalizador de  condutas e comportamentos.

 


8- Da Constituição-fundamento

 

O exame da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas implica em analisar  como é valorada a Constituição Federal no ordenamento, e como se dá  sua interrelação com os demais  marcos normativos postos pelo sistema. Pondera Virgílio[25]  que “quanto mais onipresente for a constituição, menor será a área reservada ao legislador” e mais assertiva a atuação do juiz. Destaca que, a despeito de ter poucos adeptos em outros países, a concepção de constituição-fundamento “tem grande força no Brasil” e considera os princípios constitucionais como mandamentos de otimização que “devem ser realizados na maior medida possível dentro das condições fáticas e jurídicas existentes”. Defende a compatibilidade entre a teoria dos princípios e a constituição como moldura, pois se trata de um modelo dinâmico e flexível, que deixa espaços abertos e considera que  quanto maior “o número de variáveis- e de direitos- envolvidos em um caso concreto, maior tenderá a ser a quantidade de respostas que satisfaçam o critério de otimização”.

 

Logo, a questão referente a garantia de emprego pode ser analisada e equacionada de diferentes maneiras, dependendo das variáveis e especificidades que envolvem um determinado caso concreto, já que o próprio sistema constitucional normativo manteve “espaços abertos” para essa atuação. Daí a necessidade de valorizar a atuação direta dos corpos intermediários como atores de uma negociação coletiva para tratar da matéria, resguardando sempre a possibilidade de  um provimento jurisdicional caso persista o impasse pois, independentemente da existência de qualquer lei infraconstitucional, já há norma erigida pela própria Constituição para resolver o conflito sob a perspectiva do direito fundamental por ela estabelecido, passível de ser juridicamente pleiteado junto aos Tribunais Trabalhistas.

 

Ao rechaçar o argumento de que tal configuraria ativismo judicial, como apregoa certa corrente doutrinária, Daniel Sarmento[26] ressalta que a “jurisdição constitucional, na prática, vem se revelando quase sempre uma aliada e não uma adversária da democracia. Assim, quando o próprio constituinte, numa clara e inequívoca escolha, opta por se imiscuir na esfera das relações privadas, como aconteceu no caso brasileiro, não existe qualquer razão que justifique excluir a jurisdição constitucional deste campo. Não divisamos nenhuma razão para que se reconheça plena eficácia a certas normas constitucionais quando, no caso concreto, seus comandos dirigirem-se ao Estado, negando-se iguais efetivos às mesmas normas quando voltadas à resolução de litígios privados”

 

Nesta toada, refuta também a alegação de insegurança jurídica, salientando que no paradigma pós-positivista contemporâneo se revelou “extremamente freqüente o emprego de conceitos jurídicos indeterminados e de cláusulas gerais”, em cumprimento ao comando constitucional que “exige o reconhecimento de uma eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais na esfera privada” .

 

No mesmo sentido alertou Guilherme Guimarães Feliciano[27], de que não se trata de viés ideológico ou ativismo de qualquer ordem, pois “não se pode mais interpretar a Constituição pelas lentes míopes das leis,  como se o legislador fosse o único intérprete autorizado do texto constitucional”

 

A questão da eficácia dos direitos fundamentais entre particulares surge de forma contundente no Direito do Trabalho, pois é em nossa seara que se dá o imbricamento explícito entre a justiça  comutativa e a justiça distributiva. A dispensa coletiva é matéria que ultrapassa os estritos limites da contratualidade, espraiando seus efeitos por toda a sociedade local, de modo que a questão não pode ser tratada apenas sob o paradigma posto pela justiça comutativa. Neste contexto a aferição quanto à ocorrência, ou não, de sua conformação arbitrária, deve considerar também a perspectiva da justiça distributiva, pois a Constituição Federal de 1988 assim exigiu  ao estabelecer a função social como requisito imprescindível para justificar a atuação empresarial, contrapondo o direito do trabalho à livre iniciativa.

 

A atuação incisiva do Poder Judiciário Trabalhista, para fazer valer tais preceitos, explicita um movimento de aproximação entre os sistemas da civil law e da common law e contribui para a edificação de um ordenamento  próprio, mais consonante com as especificidades de nossa cultura brasileira, restaurando a importância da justiça distributiva para o mundo do Direito Trabalhista. Como bem ressalta José Reinaldo de Lima Lopes[28], perdida “que estava a idéia mesma de uma justiça das distribuições racionalizada, não foi longo o caminho da equiparação pura e simples do interesse público com os interesses do Estado como pessoa individual (persona ficta) ou com a vontade da maioria. Assim, abriu-se a porta, outra vez, para deixar escapar dos juristas as idéias mínimas sobre a distribuição....no entanto, os temas da distribuição estão de volta, inclusive pela mão do próprio direito constitucional”

 

 

9-Conclusão

 

A aplicação dos direitos fundamentais nas relações de trabalho impõe a  construção de um novo marco paradigmático, centrado na constitucionalização. A vedação das dispensas arbitrárias, tanto individuais quanto coletivas, está prevista no inciso I do artigo 7º da CF/88, que detém eficácia plena mesmo quando inexistente norma infraconstitucional, de modo que a exigência de observância dos direitos fundamentais nas relações entre particulares é plenamente sustentável pelo ordenamento brasileiro, que em nenhum momento restringiu sua aplicação apenas em face do Estado. No caso das dispensas coletivas a negociação com o sindicato da categoria se revela imprescindível ante o constante do artigo 8º da Lei Maior, integrando o iter que o ordenamento constitucional instituiu como o devido processo demissional, procedimento mediante o qual o empregador tem a oportunidade de explicitar os motivos justificadores e aptos a afastar a conotação de arbitrária e os trabalhadores a chance de participar da fixação de critérios que possam minimizar os efeitos traumáticos da medida. Quando isso não ocorre, face às peculiaridades de uma relação em que há assimetria de poder entre as partes envolvidas, o deslinde da controvérsia se faz pela ponderação dos direitos fundamentais em conflito, cabendo ao Poder Judiciário dirimir a questão, pois nosso sistema rejeita o non liquet.

 

Para tanto deverá valer-se  dos critérios estabelecidos no artigo 8º da CLT, impedindo que os interesses meramente econômicos e particulares prevaleçam, a fim de preservar os marcos civilizatórios que devem reger uma relação de trabalho, resgatando o compromisso que o direito do trabalho tem,  desde a sua gênese, com a articulação entre a justiça distributiva e a justiça comutativa.

 

 

10- Referências

 

1- FOUCAULT, Michel- A microfísica do poder- organização e tradução de Roberto Machado- Rio de Janeiro- Edições Graal- 1979 –

 

2- DE  MASI, Domenico- O futuro do trabalho- fadiga e ócio na sociedade pós industrial-  tradução de Yadyr A. Figueiredo- José Olympio Editora S/A- Rio de Janeiro- 1999

 

 

3- AFONSO da Silva, Virgílio- A constitucionalização do Direito- os direitos fundamentais nas relações entre os particulares- 1ª edição- Malheiros Editores Ltda- São Paulo- 2008-

 

4- URIARTE, Oscar Ermida- La estabilidad  del trabajador em la empresa – protección real o fictícia ?- Monografias Juridicas 4. Acali Editorial- Montevidéu- 1983-

 

5- BARBAGELATA, Héctor- Hugo- El camino hacia la integración del derecho del trabajo em el sistema de los derechos fundamentales y su aplicación efectiva por los tribunales de justicia- in Derecho Laboral- Tomo LI- nº 232- octubre-diciembre 2008- págs 725-746- Fundación de Cultura Universitaria- FCU- Montevidéo- Uruguai

 

6- CANOTILHO- José Joaquim Gomes-  Direito  Constitucional e Teoria da Constituição- 5ª edição- Livraria  Almedina- Coimbra- Portugal-

 

7- SARMENTO, Daniel-  Direitos Fundamentais e Relações Privadas – 2ª edição- editora Lúmen Juris- Rio de Janeiro- 2008-

 

8- PEREIRA, Jane Reis Gonçalves- Apontamentos sobre a aplicação das normas de direito fundamental nas relações jurídicas entre particulares in a nova interpretação constitucional- ponderação, direitos fundamentais e relações privadas- organizador Luis Roberto Barroso- Editora Renovar- Rio de Janeiro- 2ª edição-2006

 

9- GIACÓIA JUNIOR, Oswaldo- Antigos e novos bárbaros  in Nietzsche e Deleuze- bárbaros civilizados- organização de Daniel Lins e  Peter Pál Pelbart - Editora  Annablume- - São Paulo 2004

 

10- LIMA  VAZ, Henrique Cláudio- Ética e Direito- Landy Editora- organização e introdução: Cláudia Toledo e Luiz Moreira

 

11- AFONSO da Silva, Virgílio- Direitos fundamentais- conteúdo essencial,restrições, eficácia- Malheiros Editores  Ltda- São Paulo- 2009

 

12- MENDES, Gilmar Ferreira, Coelho, Inocêncio Mártires e Gonet Branco, Paulo Gustavo- Curso de Direito Constitucional- Editora Saraiva- 2ª edição – São Paulo 2008

 

13- ALARCON, Pietro de Jesus Lora- O mandado de injunção: na trilha da efetividade in Fachin, Zulmar (coord.) – 20 anos de Constituição Cidadã. -Editora Método 2008

 

14- LIMA LOPES, José  Reinaldo- As palavras e a lei: direito, ordem e justiça na história do pensamento juridico moderno- Editora 34- São Paulo- Edesp- 2004

 

15- DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. LTr. 8º Edição. 2009

 

16- NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. Editora Martins Fontes. 2ª Edição. São Paulo. 2008.

 

17- MENDES, Conrado Hübner. Controle de Constitucionalidade e Democracia. Editora Campus Jurídico. São Paulo. 1ª Edição. 2008.

 

18- AFONSO da Silva, José- Aplicabilidade das normas constitucionais- 7 edição- Malheiros-2008

 

 

* Tereza Aparecida Asta Gemignani é Desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas e Doutora em Direito do Trabalho- nível de pós graduação pela USP - Universidade de São Paulo


** Daniel Gemignani
é bacharelando de Direito - PUC São Paulo - Autor do trabalho “A coerência na interpretação dos direitos sociais quando analisados pelo STF: comparação evolutiva do tema- in Jurisprudência Constitucional- como decide o STF? – Malheiros Editores Ltda - São Paulo- 2009

 



[1] MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. Editora Saravia. 4ª Edição. 2009, p. 222/223: “A supremacia do Parlamento tornava impensável um controle judiciário das leis.

(...)

A prática revolucionária concordava com Montesquieu, que reduzia o poder de julgar à condição de ‘instrumento que pronuncia as palavras da lei’. Dominava a concepção de que ‘nenhum juiz tem o direito de interpretar a lei segundo a sua própria vontade’.

O princípio da separação dos Poderes atuava para consagrar o poder de julgar a uma posição de menor influência. Era impensável que se postulasse perante uma corte de justiça a efetividade de um cânone constitucional; ao juiz não cabia censurar um ato do parlamento.

A subordinação do Judiciário ao Parlamento, do ponto de vista funcional, é notável. Uma manifestação disso é a criação, na França, do instituto do référé législatif, por uma lei de 1790, somente abolida em 1837.

Por meio do référé législatif, remetia-se ao Legislativo a interpretação de um texto obscuro de alguma lei. A Constituição de 1791, acolhendo o instituto, dispunha que, se uma interpretação da lei fosse atacada por três vezes num tribunal de cassação, este deveria submetê-la ao corpo legislativo, que emitiria um decreto declaratório da lei, vinculante para o tribunal de cassação. Havia, portanto, uma interferência direta do Parlamento até no mais alto tribunal, sob o pretexto de preservar a vontade do povo, como expressa por seus legítimos representantes, os seus deputados. A tarefa de interpretar a lei é, assim, vista como consubstancial à função legislativa.” 

[2] Foucault, Michel- A microfísica do poder- organização e tradução de Roberto Machado- Rio de Janeiro- Edições Graal- 1979 – págs. 25/26

[3]  Cabe aqui consignar questão atinente a forma como se intitula o tema em epigrafe. A doutrina, em sua grande maioria, traz o tema dos efeitos dos direitos fundamentais sob a rubrica “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”. Contudo, ante a evidente assimetria existente nas relações entre particulares, ainda mais evidente quando se trata das relações de trabalho, propugna-se, aqui, por se evitar a nomenclatura indicada, optando-se, pois, por assumir apenas a expressão “eficácia dos direitos fundamentais entre particulares”. 

[4] De Masi, Domenico- O futuro do trabalho- fadiga e ócio na sociedade pós industrial-  tradução de Yadyr A. Figueiredo- José Olympio Editora S/A- Rio de Janeiro- 1999 – pag 329

[5] Charlie Chaplin- ator americano que ficou mundialmente famoso ao atuar no filme “Tempos Modernos’ que ironizava a forma de produção fordista.

[6]  Afonso da Silva, Virgílio-  A constitucionalização do Direito- os direitos fundamentais nas relações entre particulares- Malheiros Editores Ltda- São Paulo- 1ª edição- 2008- pág. 22: “Como se sabe, e como ficará bastante claro no decorrer desse trabalho, o tema ‘constitucionalização do direito’, e seu subtema principal, a ‘vinculação de particulares aos direitos fundamentais’, tem seu epicenntro nos países de língua alemã. Como se perceberá ao longo do trabalho, a grande maioria dos trabalhos sobre o tema é originário da Alemanha e, em escala já bem menor, da Austria e da Suiça. Ora, não é possível ‘importar’, sem grandes reflexões, temas e problemas de outros países e tentar incuti-las, artificialmente, na discussão brasileira. Não só as tradições jurídicas podem ser bastante distintas, a despeito da filiação comum à família jurídica romano-germânica, como também o material básico de análise – os textos constitucionais e legais – podem variar em grande escala. É o que acontece no caso dos direitos fundamentais, ainda que isso passe muitas vezes desapercebido.

Nesse sentido, embora consagre também os direitos fundamentias que a Constituição alemã e a grande maioria das constituições das democracias ocidentais consagram no âmbito dos chamados direitos de defesa ou das chamadas liberdades públicas, muitos dispositivos da Constituição brasileira já dão a entender que eles não tem apenas efeito na relação indivíduo-Estado, mas também nas relações dos indivíduos em si.”. 

[7] Afonso da Silva, Virgílio- obra citada - pag  18 

[8] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. LTr. 8º Edição. 2009. Pág. 62: “Quanto às suas funções e atuação na comunidade circundante, é segmento jurídico que cumpre objetivos jurídicos fortemente sociais, embora tenha também importantes impactos econômicos, culturais e políticos. Trata-se de segmento jurídico destacadamente teleológico, finalístico, atado à meta de aperfeiçoar as condições de pactuação da força de trabalho na sociedade capitalista. Em consonância com isso, destaca-se por forte direcionamento interventivo na sociedade, na economia e, principalmente, na vontade das partes contratuais envolvidas nas relações jurídicas que regula.”. 

[9] Canotilho- José Joaquim Gomes-  Direito  Constitucional e Teoria da Constituição- 5ª edição- Livraria  Almedina- Coimbra- Portugal- págs. 479.

[10] Uriarte, Oscar Ermida- La estabilidad  del trabajador em la empresa – protección real o fictícia ?- Monografias Juridicas 4. Acali Editorial- Montevidéu- 1983- págs 21 a 28

[11] Barbagelata, Héctor- Hugo- El camino hacia la integración del derecho del trabajo em el sistema de los derechos fundamentales y su aplicación efectiva por los tribunales de justicia- in Derecho Laboral- Tomo LI- nº 232- octubre-diciembre 2008- págs 725-746- Fundación de Cultura Universitaria- FCU- Montevidéo- Uruguai

[12] Questionamentos poderiam aqui ser sucitados quanto a constitucionalidade  material da lei regulamentadora, ante a especialidade da lei requerida pelo enunciado constitucional. Não notamos na doutrina discussões quanto ao tema, e, por se tratar de questão distinta ao objeto do presente artigo, mas a ele não alheia, não deixamos de consignar a questão

[13]  NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. Editora Martins Fontes. 2ª Edição. São Paulo. 2008, p. XVIII/XIX: “O problema do Estado Democrático de Direito é exatamente o de como conciliar poder eficiente com direito legitimador. Na tradição ocidental, Leviatã apresenta-se como um símbolo do poder expansivo do Estado. Têmis, antes de tudo, representa a justiça abstrata. O Estado Democrático de Direito caracteriza-se precisamente por ser uma tentativa de construir uma relação sólida e fecunda entre Têmis e Leviatã – portanto, de superar a contradição tradicional entre justiça divina e poder terreno (um paradoxo!); uma tentativa no sentido de que a justiça deveria perder sua dimensão transcendente e o poder não mais ser considerado mera facticidade: o Estado Democrático de Direito como invenção da modernidade. Nesse tipo de Estado, Têmis deixa de ser um símbolo abstrato de justiça para se tornar uma referência real e concreta de orientação da atividade de Leviatã. Este, por sua vez, é rearticulado para superar sua tendência expansiva, incompatível com a complexidade sistêmica e a pluralidade de interesses, valores e discursos da sociedade moderna. Não se trata apenas de uma fórmula para ‘domesticar’ ou ‘domar’ o Leviatã. Antes, o problema consiste em estabelecer, apesar das tensões e conflitos, uma relação construtiva entre Têmis e Leviatã, de tal maneira que o direito não se mantenha como uma mera abstração e o poder político se torne impotente por sua hipertrofia ou falta de referência legitimadora.” (grifos nossos). 

[14] Mendes, Gilmar Ferreira, Coelho, Inocêncio Mártires e Gonet Branco, Paulo Gustavo- Curso de Direito Constitucional- Editora Saraiva- 2ª edição – São Paulo 2008- pag 118.

[15] Alarcon, Pietro de Jesus Lora- O mandado de injunção: na trilha da efetividade in Fachin, Zulmar ( coord.) – 20 anos de constituição cidadã. Editora Método 2008- pag.223.

[16] Afonso da Silva, Virgílio-  A constitucionalização do Direito- os direitos fundamentais nas relações entre particulares- Malheiros Editores Ltda- São Paulo- 1ª edição- 2008- págs. 89 e seguintes

[17] Sarmento, Daniel-  Direitos Fundamentais e Relações Privadas – 2ª edição- editora Lúmen Juris- Rio de Janeiro- 2008- pag. 204, 240.

[18] Afonso da Silva, José- Aplicabilidade das normas constitucionais- 7 edição- Malheiros-2008.

[19] Pereira, Jane Reis Gonçalves- Apontamentos sobre a aplicação das normas de direito fundamental nas relações jurídicas entre particulares in a nova interpretação constitucional- ponderação, direitos fundamentais e relações privadas- organizador Luis Roberto Barroso- Editora Renovar- Rio de Janeiro- 2ª edição-2006 pag. 187 e seguintes

[20] Giacóia Junior, Oswaldo- Antigos e novos bárbaros  in Nietzsche e Deleuze- bárbaros civilizados- organização de Daniel Lins e  Peter Pál Pelbart - Editora  Annablume- - São Paulo 2004

[21] Lima Vaz, Henrique Cláudio- Ética e Direito- Landy Editora- Edições Loyola -organização e introdução Cláudia Toledo e Luiz Moreira - pag 205

[22] Afonso da Silva, Virgílio- Direitos fundamentais- conteúdo essencial, restrições, eficácia- Malheiros Editores  Ltda- São Paulo- 2009- pag. 256

[23] Sarmento, Daniel-  Direitos Fundamentais e relações privadas- 2ª edição- Editora Lumen Júris-

  Rio de Janeiro 2008- págs. xxvii

[24] Afonso da Silva, Virgílio- Direitos  fundamentais- conteúdo essencial, restrições e eficácia- Malheiros Editores Ltda-São Paulo- 2009- págs. 253 a 256

[25] Afonso da Silva, Virgílio- A constitucionalição do direito- pag 111, 147 e seguintes

[26] Sarmento, Daniel- Direitos Fundamentais e Relações Privadas – Lúmen Juris Editora- Rio de Janeiro- 2ª edição- 2008- págs 242 e seguintes

[27] Feliciano, Guilherme Guimarães- “Ativismo Judicial- para bom entendedor”- Jornal Folha de São Paulo- página A3- 25 de maio de 2009

[28] Lima Lopes, José  Reinaldo- As palavras e a lei: direito, odem e justiça na história do pensamento juridico moderno- Editora 34- São Paulo- Edesp- 2004- págs. 199 e seguintes


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