315 - A crise do matrimônio: mito e realidade

 

ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito 

 

O matrimônio está em crise? No fundo, toda vez que se duvida da viabilidade do matrimônio, questiona-se a forma de comunicação sexual mais adequada às características da espécie humana.

 

O matrimônio não é propriamente uma pergunta, mas uma resposta, porque, a humanidade respondeu, intelectual e vitalmente, à questão de fundo, de maneiras muito diversas, embora a resposta matrimonial tenha sido a de aceitação mais ampla e constante ao longo da história.

 

Como justificar que uma resposta ótima esteja em crise? Será que o próprio fato de sua crise não será a prova de que o matrimônio é a fórmula ideal? Aparentada do verbo grego krino, a palavra crise significa “juízo”, mas um juízo de revisão com o qual julgamos de novo anteriores estados de opinião – um juízo do juízo.

 

Dentre todas as espécies diferencialmente sexuadas, o homem é a única que pode julgar e rever a questão de fundo do início, pois é dotado de entendimento racional para compreender o sentido das coisas e de vontade livre para optar responsavelmente pelo mais adequado à sua condição pessoal. A crise ou a atividade crítica é uma manifestação normal da humanidade.

 

O matrimônio constitui a solução de maior predicamento e prática na história e, por isso, é o resultado daquela constante reconsideração ou crise. No barril de carvalho da história da humanidade, perenemente crítico, o matrimônio é uma gota trabalhosamente destilada, fruto de mil crises, gota que, em comparação com outras formas destiladas, resultou a mais depurada.

 

Daí concluir que a crise do matrimônio é sinal de sua vitalidade e não de sua morte ou inaptidão, porque somente uma fórmula de comunicação sexual que carecesse de sentido para a razão não seria crítica e suscetível de crise: estaria humanamente morta.

 

Não é a primeira vez que a cultura humana descobriu a possibilidade de criticar as bases do matrimônio e adivinhou fórmulas superadoras. A crise da instituição matrimonial seria mais uma novidade dos tempos modernos, porque toda herança histórica relativa ao matrimônio tem o mesmo valor das crenças dos antigos astrônomos ou dos remédios medievais em relação à astronomia moderna e à medicina atual.

        

Quais serão as novas e definitivas fórmulas sexuais, além daquelas já milenarmente conhecidas, como a poliandria, a poligamia, o matriarcado, o patriarcado, o repúdio, o divórcio, a união estável, o comunismo sexual e a líbertinagem?

 

Por carecer de razões perante o herdado, carece de razões perante o novo. E, assim, nessa questão, o homem fica enredado numa perplexidade relativista e, logo, crê ter localizado a verdade no paladar mais intenso do sabor da novidade. Surpreender-se perante a crise do matrimônio e crer na sua novidade é o mesmo que descobrir a América: uma confissão de ingenuidade ou de ignorância.

 

Em primeiro lugar, porque tal crise é uma constante histórica. Já se disse praticamente tudo a respeito das combinações lógicas e experimentáveis do matrimônio. A reargumentação reduz-se numa reedição segundo o gosto e a linguagem da época.

 

Em segundo lugar, porque carece de seriedade e de veracidade histórica a apresentação do matrimônio como uma fórmula de eficácia limitada a uma época histórica concreta. Seria o mesmo que sentenciar que cada nova época há de dar à luz a sua peculiar fórmula matrimonial.

 

O matrimônio é instituição comum a todas as culturas de todos os tempos e lugares, não só coexistindo com outras fórmulas, mas, sobretudo, constituindo o resultado final da destilação crítica das demais fórmulas e ensaios.

 

Sem dúvida, uma das maiores dificuldades para estudar o matrimônio e seus efeitos parece-nos advir do grave equívoco de considerá-lo primordialmente um instituto jurídico, ou seja, uma realidade regulamentada pela lei e posteriormente aceita pelos nubentes.

 

Esquece-se então que se trata de uma realidade primordialmente vital, anterior à própria organização social. De acordo com o famoso jargão, a família é a célula da sociedade. E o fundamento da família é exatamente o casamento. Portanto, o direito é que se deve moldar à natureza do casamento e não ser manipulado ao bel-prazer do legislador.

 

O contrário disso leva à dissolução social, pois as pessoas necessitam de uma família bem constituída, na qual podem desenvolver-se integralmente, para serem, posteriormente, bons cidadãos. Daí decorre que as leis sobre a família devem ser as mais importantes para a vida social.

 

É decisivo entender uma conseqüência do fato de o matrimônio ser, antes de mais nada, uma realidade natural. É esta: o legislador não inventa a essência e a estrutura básica da união conjugal, mas estas derivam da própria natureza do homem, de sua distinção, de sua complementaridade sexual e das exigências inatas de sua condição e dignidade de pessoa. A família e, conseqüentemente, o matrimônio se baseiam na diversidade e complementaridade dos sexos.

 

A procriação humana dá-se entre pessoas de sexos diferentes, que contribuem com uma parcela daquilo que será o material genético do novo ser humano. A própria diferenciação sexual tem a sua razão primária e mais radical na procriação, apesar dela não se manifestar somente neste ponto: a própria estrutura física e psíquica das pessoas está influenciada pelo seu sexo, surgindo assim várias diferenças importantes entre o homem e a mulher.

 

Fingir que essas diferenças não existem ou querer forçar que um sexo imite o outro é uma violência que traz o desequilíbrio à pessoa e à sociedade. Evidentemente, o reconhecimento dessas diferenças naturais não significa que um dos sexos é superior ao outro. A personalidade é anterior ao sexo e, por isso, há uma mesma dignidade entre homem e mulher.

 

Além de diferentes, os sexos são complementares e há uma atração mútua entre ambos. Na vida em comum e na educação dos filhos, o homem e a mulher contribuem com suas características próprias. O homem tende mais para a atividade externa, enquanto a mulher está mais voltada para a maternidade e a manutenção do lar familiar, mesmo trabalhando fora.

 

Entretanto, cabe também ao homem participar da vida familiar, à qual ele traz importantes ingredientes e é excelente que a mulher possa também participar do mundo do trabalho, ao qual aporta contribuições não só quantitativas, mas também qualitativas, tornando-o mais humano e agradável.

 

Como preconiza o Código Civil, o casamento estabelece a comunhão plena de vida. Se fôssemos às últimas conseqüências dessa afirmação, diríamos que essa comunhão não poderia ser rompida posteriormente, pois não pode ser plena uma comunhão sujeita a se dissolver mais adiante.

 

De fato, é exatamente isso que, na grande maioria dos casos, os cônjuges buscam ao casar-se, e podemos mesmo dizer que boa parte das uniões estáveis tem, atrás de si, a reta intenção de construírem algo duradouro. Assim é pela própria estrutura do ser humano, que quer ser amado de modo incondicional, independente do tempo e das circunstâncias.

 

A noção de provisoriedade é contrária ao amor, tanto conjugal quanto de amizade, e é natural que haja no matrimônio exatamente o desejo de vencê-la, bem como de assegurar a estabilidade de uma relação que quer ser plena.

 

Quando pensamos em um casamento que se dissolveu, dizemos que ele “não deu certo” e não que simplesmente seguiu um rumo absolutamente comum e previsto pela lei, tão natural quanto seria a sua continuidade. Na argumentação de muitos que defendem a dissolubilidade do matrimônio (e advogam para que seja cada vez mais simples e fácil dissolver o vínculo entre os cônjuges), está, mais do que procurar uma maior liberdade nas relações entre homens e mulheres, a desconfiança na possibilidade de uma entrega total e mútua entre um homem e uma mulher, uma espécie de cinismo com relação ao amor humano.

 

Portanto, parece-nos que o natural da união conjugal é que ela seja celebrada entre um homem e uma mulher, de maneira exclusiva e indissolúvel. Isso decorre do amor em que deve estar fundado o casamento e do tipo de união que representa uma família, cuja indissolubilidade é importante tanto para o desenvolvimento dos cônjuges quanto dos seus filhos.

 

O matrimônio e a família, nos termos acima propostos, são a solução ótima, a melhor até hoje encontrada, para as questões do comércio sexual entre homem e mulher, considerando-os seres dotados de razão e de dignidade, capazes de amar e de se entregar.

 

Trata-se da melhor resposta, aceita por um grande número de pessoas de culturas bastante diversas, mas que, em nossa sociedade, tem sido colocada por algumas pessoas no armário das velharias que já não servem senão como lembrança de um passado romântico e ingênuo.

 

Mais e antes que a realidade positiva, o matrimônio é um dado natural, consubstanciado na própria realidade humana, cuja essência e linhas mestras são fixadas pela própria natureza. O legislador, num segundo momento, pode regular ordenadamente o exercício deste direito de casar-se, o que implica na criação de normas de direito matrimonial, mas desde que não desvirtue a própria realidade natural do matrimônio.

        

As leis a respeito devem limitar-se a regular a realidade preexistente e a canalizar os interesses das partes para uma prática mais depurada possível. Reduzir o casamento ao mero estado legal é um despropósito tão grande como crer que a paternidade e a filiação, por sua vez, são somente vínculos legais.

 

Logo, ficam fora da competência do legislador: a constituição da essência da união conjugal, as propriedades essenciais desta união, o conteúdo nuclear do conjugal, as linhas mestras do desenvolvimento da vida matrimonial e a essência do pacto conjugal.

 

O desejo de encobrir, debaixo do nome legal de matrimônio, relações que não o podem ser no plano natural, não é mais que o tributo que o erro se vê obrigado a prestar à verdade: disfarçar-se hipocritamente com seu nome ou a sua roupagem. Serão, no máximo, matrimônios legais e não matrimônios reais e naturais.

 

Resta ao legislador somente regular o ordenado exercício do direito a casar-se, fixando os requisitos de capacidade das partes e a forma de celebração do matrimônio; estabelecer a relevância concreta dos vícios e defeitos do pacto matrimonial; ordenar as vicissitudes normais e patológicas do estado matrimonial e regular os efeitos jurídicos familiares, patrimoniais e sociais.

 

A permissão do divórcio mudou a própria visão do casamento, se não para toda a sociedade, ao menos para boa parcela dela. A dissolução do casamento pela simples vontade dos cônjuges altera essencialmente a união que se dá entre homem e mulher, pois a entrega que se dá entre ambos deixa de ser plena e absoluta e passa a ser transitória e limitada.

 

Há os que argumentam que o divórcio não destrói o casamento daqueles que de fato não desejam se separar, mas apenas abre a possibilidade da dissolução para aqueles que, por qualquer motivo, já não querem a comunhão de vida com seu cônjuge. Assim, o divórcio representaria somente uma vantagem para alguns e nenhum prejuízo para todos.

 

Entretanto, não foi isso que aconteceu na realidade. A pessoa que queira se comprometer de maneira plena com outra e que também busca que esta lhe ofereça um compromisso de entrega irrevogável simplesmente não encontra uma figura que satisfaça suas aspirações. É bastante diferente que as partes saibam, desde o início, que estão formalizando um pacto de casamento para sempre e, portanto, não sujeito a futuras mudanças, do que se pactuam algo em si mesmo transitório.

 

No primeiro caso, o consentimento é dado com maior responsabilidade, pois a situação que se vai criar é radical e imutável, enquanto o segundo possibilita seu desmanche com facilidade, sendo até menos trabalhoso, hoje, dissolver o casamento do que contrai-lo.

 

A conseqüência mais evidente da possibilidade de dissolução do casamento foi, ao contrário do que sustentavam alguns, a diminuição do número de matrimônios legais e o aumento das uniões informais. Há uma progressiva trivialização do pacto matrimonial, pois esse pacto pode facilmente desdizer-se, acompanhada de um aumento da convicção de que o casamento é um ato puramente social, burocrático, sem valia em si mesmo.

 

Afinal, porque casar-se, se é possível dissolver o casamento a qualquer momento e a parte tem exatamente a perspectiva de fazê-lo quando entender conveniente? Não seria então mais autêntica a simples união de fato, o concubinato, que dura enquanto permanece o desejo das partes de continuarem juntas?

 

É um paradoxo de tirar a força do casamento, que as partes livremente quiseram, especialmente no que concerne aos seus direitos e deveres, e aumentar as formalidades da união estável, que freqüentemente é escolhido pelo casal que não queria qualquer formalidade.

 

É um paradoxo também que a facilitação da conversão da união estável em casamento seja feita com o afrouxamento das exigências deste, o que prejudica a própria instituição do casamento. Numa etapa seguinte, o matrimônio passa a servir de vestimenta a outras situações bastante distantes da noção natural de casamento.

 

Esvaziando o conteúdo natural do matrimônio pelo divórcio, ele fica com pouca defesa frente outros requerimentos que quase nada têm em comum com a depurada solução que corresponde ao matrimônio uno e indissolúvel entre um homem e uma mulher. Torna-se um conteúdo vazio, uma forma cujo conteúdo pode ser praticamente qualquer coisa.

 

É necessária a superação da visão ritualística e vazia que se tem a respeito do casamento, confundida com o mito da legalidade, em favor de um reencontro com a realidade natural da união conjugal plena entre homem e mulher. O importante é a verdadeira existência dos laços humanos plenos e não o simples registro de situações legais. O reencontro com o natural do matrimônio é o efeito imediato da agonia do casamento legal. E, depois desse reencontro com o natural, o matrimônio volta a ser original e surpreendentemente entendido em profundidade.

 

 

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br)


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