321 - Poluição sonora – Legislação vigente e ineficaz
ANA RAQUEL COLARES DOS SANTOS LINARD - Juíza de Direito
Um dos grandes incômodos da vida em sociedade nos dias atuais é, seguramente, a poluição sonora. Com este mal nos deparamos cotidianamente sob várias formas de ruído em volume excessivo que, além de prejudicial à saúde física e mental, ainda constitui infração administrativa, contravenção penal e ilícito civil, devidamente estabelecidos em diversos diplomas legais.
Regular a produção de ruídos em volume excessivo já era objeto de preocupação desde a Roma antiga.
De fato, O Imperador César (101 - 44, antes de Cristo) determinou «que nenhuma espécie de veículo de rodas poderia permanecer dentro dos limites da cidade (Roma), do amanhecer à hora do crepúsculo; os que tivessem entrado durante a noite deveriam ficar parados e vazios à espera da referida hora». (César - Senatus Consultum - O Automóvel, de Halley).[1]
Mais adiante na linha do tempo, há o registro da Rainha Elizabeth I da Inglaterra, que reinou de 1588 a 1603, e que “proibia aos maridos ingleses baterem em suas mulheres depois da 10 horas da noite, a fim de não perturbarem os vizinhos com gritos”.[2]
Em que pese o malefício social do ruído excessivo, não se pode olvidar o prejuízo para a saúde do corpo e da mente decorrente da exposição a níveis sonoros acima dos 50 (cinqüenta) decibéis, limite que é considerado como confortável ao ouvido humano pela OMS e que equivale ao ruído de uma rua sem tráfego.[3]
Ressai claro, ainda, as conseqüências danosas ao organismo decorrentes da exposição ao barulho em excesso e que vão muito além da apregoada surdez. Na verdade, são prejuízos para a saúde física e mental, tais como estresse, irritação, cansaço, perda de sono e memória que, via de conseqüência, acarretam problemas cardíacos, neurológicos e até mesmo gástricos.
Muito embora tais informações não sejam de amplo conhecimento do público em geral, o bom senso, por si, já aponta no sentido de que qualquer que seja o exagero ou excesso, este se mostra indubitavelmente maléfico, acarretando conseqüências danosas tanto para quem produz como para quem sofre os efeitos do barulho em demasia.
Como tal conduta tem se tornado lamentavelmente comum, notadamente entre a população mais jovem, verifica-se a preocupação do legislador em tratar da questão através de vários normativos legais, os quais, em que pese sua vigência, infelizmente, não ostentam a eficácia que a sociedade espera, dada a incompreensível complacência das autoridades competentes em adotar as providências necessárias para garantir a aplicação efetiva dos diplomas legais, por razões imagináveis, como adiante se verá.
Dentre os aludidos normativos legais, que prevêem sanções de natureza administrativa, civil e penal, constam o artigo 42 da Lei de Contravenções Penais – a meu sentir, o mais eficaz dentre os demais – além dos artigos 228 e 229 do CTB[4] e os artigos 1.277 e seguintes do Código Civil, sem prejuízo, ainda, do teor dos artigos 54 e 59 da Lei 9.605/98 – ressaltando que o primeiro, cuja redação mencionava especificamente a produção de sons e ruídos em desacordo com as prescrições legais, foi vetado pelo Presidente da República sob o argumento de impropriedade técnica já que não mencionava na sua tipificação o bem jurídico tutelado, no caso, a qualidade ambiental.[5]
Assim, restou o preceito constante do artigo 54 da aludida lei, de natureza genérica, para os fins de uma pretensa regulação de poluição sonora, não sendo tarefa difícil concluir pela sua ineficácia para os fins em questão.[6]
A Constituição Federal de 1988, ao regular a matéria, estabeleceu a competência comum dos entes federativos para o combate à poluição, sob qualquer de suas formas, razão pela qual se verificam, ainda, diplomas estaduais e municipais que tem por objeto a regulação, no âmbito administrativo, das medidas destinadas a combater a poluição sonora.
Especificamente no que se refere ao Estado do Ceará, a Lei estadual 13.711, de 20/12/2005, estabelece medidas de combate à poluição sonora gerada por estabelecimentos comerciais e por veículos, e que, portanto, não abrange à poluição sonora gerada no interior de residências, a qual, inclusive, enseja grande parte das comunicações á autoridade policial.
De acordo com a aludida lei estadual, “ficam expressamente proibidos, no Estado do Ceará, independente da medição de nível sonoro, utilizar quaisquer sistemas e fontes de som: I - os estabelecimentos comerciais, com a finalidade de fazer propaganda publicitária e/ou divulgação de produtos ou serviços; II - os carros de som, volantes ou assemelhados em vias públicas; III - os veículos particulares, em vias públicas, com volume que se faça audível fora do recinto destes veículos.”
A Lei em alusão prevê, como sanção, o pagamento de multa de 100 (cem) UFIRCE´S cumulada com a apreensão da aparelhagem emissora da fonte sonora, possibilitando, ainda, a qualquer pessoa do povo que considerar seu sossego perturbado por sons ou ruídos proibidos pela mencionada lei, comunicar ao órgão competente a ocorrência, para que sejam tomadas as providências necessárias.
Não se tem notícia, todavia, de que a lei em questão tenha sido devidamente aplicada, em seus estritos termos, apesar de já vigente há quase 04 (quatro) anos, sendo que a mesma carece de regulamentação, de forma a que fosse identificado o órgão competente para a comunicação da ocorrência, bem como estabelecidos os termos necessários para os eventuais convênios ou parcerias com órgãos federais e municipais para o estrito cumprimento da lei.
Sem tais especificações não há como fazer cumprir o normativo legal, impondo tal omissão evidentes prejuízos à coletividade.
No âmbito municipal, a situação não é diferente.
No caso específico de Juazeiro do Norte, o Código de Posturas do Município estabelece, em seus artigos 46 e seguintes, uma série de normas que regulam a produção de ruídos, notadamente o horário e os limites, bem como as sanções previstas para o descumprimento, inclusive com a imposição de multa.
Igualmente, não se tem notícia de que o Município tenha adotado as providências necessárias ao cumprimento, mesmo havendo previsão de multa – acerca da qual poderia haver a previsão legal específica de sua destinação em prol da atividade fiscalizadora, seja com a aquisição de aparelhagem destinada a medição de ruídos ou demais equipamentos que se façam necessários, bem como com campanhas educativas e de esclarecimento da população acerca dos malefícios pessoais e sociais ocasionados pelo ruído em excesso, incluída em tal prática a promoção de cursos educativos destinados aos destinatários de transação penal decorrente da contravenção penal configurada.
A razão que se apresenta razoável para tal omissão é a do custo eleitoral imposto ao gestor pelo cumprimento estrito da legislação que garante o silêncio e o sossego público, uma vez que se trata de medida antipática por impor, necessariamente, limites ao que se convencionou denominar lazer.
Em reforço a tal entendimento, cita-se, neste azo, trecho do artigo POLUIÇÃO SONORA COMO CRIME AMBIENTAL, de autoria de Anaxágora Alves Machado[7], no qual a autora informa que a razão real para o veto presidencial ao artigo 59 da Lei 9.605/98 – o qual tipificava de forma específica a poluição sonora – foi, na verdade, uma resposta favorável a um pleito dos representantes da bancada evangélica que viam no texto legal um eventual obstáculo ao exercício da liberdade de culto que, comumente, envolvem atividades sonoras como cânticos e uso de instrumentos musicais.
Tal situação exemplifica com clareza inquestionável a provável razão pela qual os gestores municipais, notadamente, não se esforçam para fazer cumprir a legislação que regula o direito ao sossego e ao silêncio do cidadão, em evidente prejuízo para a coletividade.
No âmbito da responsabilidade civil e penal, o cidadão pode, mediante o acionamento do Estado-Juiz, fazer valer os preceitos legais, seja pelo acionamento da polícia - acarretando o eventual oferecimento de transação penal ao autor do fato detentor de condições subjetivas favoráveis – seja pelo aforamento de ação de obrigação de não fazer, visando a sustação da conduta lesiva.
No âmbito da responsabilidade administrativa, o que se conclui é que a chamada lei do silêncio, na verdade, consiste em um conjunto de normas que, invariavelmente, não estabelece sanções eficazes aos infratores de seus dispositivos, em que pese fixar limites para a intensidade dos ruídos, bem como geográficos e temporais para sua produção, configurando a chamada letra morta, sem qualquer sinal de interesse em sua reabilitação eficaz.
Ana Raquel Colares dos Santos Linard é juíza de Direito Titular do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Juazeiro do Norte (CE).
Dezembro, 2009.
[1] http://www.pitoresco.com.br/consultoria/variedades/05.htm
[2] Idem.
[3] http://www.bauru.unesp.br/curso_cipa/4_doencas_do_trabalho/4_ruido.htm
[4] Art. 228. Usar no veículo equipamento com som em volume ou freqüência que não sejam autorizados pelo CONTRAN: Infração - grave; Penalidade - multa;
Medida administrativa - retenção do veículo para regularização.
Art. 229. Usar indevidamente no veículo aparelho de alarme ou que produza sons e ruído que perturbem o sossego público, em desacordo com normas fixadas pelo CONTRAN:
Infração - média; Penalidade - multa e apreensão do veículo;
Medida administrativa - remoção do veículo.
[5] Art. 59. Produzir sons, ruídos ou vibrações em desacordo com as prescrições legais ou regulamentares, ou desrespeitando as normas sobre emissão ou imissão de ruídos e vibrações resultantes de quaisquer atividades.
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
[6] Art. 54. causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Se o crime é culposo:
Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa.
[7] MACHADO, Anaxágora Alves. Poluição sonora como crime ambiental . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 327, 30 maio 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5261>. Acesso em: 13 dez. 2009.