322 - Art. 44 da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas): A Liberdade Provisória em Crime de Tráfico de Drogas na Visão do Supremo Tribunal Federal

 

 

RENATO MARCÃO - Promotor de Justiça

 

 

SUMÁRIO: 1) Breve retrospecto; 2) O art. 44 da Lei de Drogas; 3) O enfrentamento da questão no Supremo Tribunal Federal; 4) Conclusão.

 

 

1) Breve retrospecto

 

A Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), em seu art. 2º, II, passou a considerar insuscetíveis de liberdade provisória os crimes hediondos, a prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, bem como terrorismo.

 

É do conhecimento geral, e até por isso desnecessário discorrer a respeito, as discussões que desde então se estabeleceram na doutrina e jurisprudência, a respeito da (in)constitucionalidade da referida proibição genérica, ex lege.

 

No Supremo Tribunal Federal prevaleceu por longo período entendimento no sentido da constitucionalidade da vedação.

 

Com a vigência da Lei n. 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), a discussão adquiriu novo impulso em razão do disposto em seu art. 21, que passou a considerar insuscetíveis de liberdade provisória os crimes previstos nos arts. 16 (posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito), 17 (comércio ilegal de arma de fogo) e 18 (tráfico internacional de arma de fogo) daquele Estatuto.

 

Contra tal vedação expressa; genérica e antecipada, foi ajuizada ação direta de inconstitucionalidade,[1] que resultou procedente, ficando reconhecida afronta aos princípios constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal (CF, art. 5º, LVII e LXI). Na ocasião, destacou-se que “a Constituição não permite a prisão ex lege, sem motivação, a qual viola, ainda, os princípios da ampla defesa e do contraditório (CF, art. 5º, LV)”.[2]

 

Resolvendo a controvérsia, a Lei n. 11.464, de 28 de março de 2007, deu nova redação ao art. 2º da Lei n. 8.072/90, e retirou a vedação antes expressa no inc. II do art. 2º, que proibia a concessão de liberdade provisória nos crimes mencionados. 

 

2) O art. 44 da Lei de Drogas

 

Dentro do quadro anteriormente apresentado se insere a Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), que em seu art. 44 passou a dispor que os crimes previstos em seus arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 são inafiançáveis e insuscetíveis de liberdade provisória, dentre outros benefícios também expressamente vedados.[3]

 

Conforme sempre sustentamos,[4] a Lei n. 11.464, de 28 de março de 2007, que deu nova redação ao disposto no inciso II do art. 2º da Lei 8.072/90, retirando a proibição genérica, ex lege, de liberdade provisória, em se tratando de crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo, derrogou o art. 44 da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), de maneira que a vedação antecipada e genérica ao benefício da liberdade provisória não subsiste no ordenamento jurídico vigente.

 

Ainda que assim não fosse, as razões que fundamentaram o reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 21 da Lei n. 10.823/2006 (Estatuto do Desarmamento), servem na mesma medida para fundamentar a inconstitucionalidade da vedação à liberdade provisória contida no art. 44 da Lei de Drogas.

 

Se as situações são idênticas, como realmente são e isso não se pode negar, não há razão lógica ou jurídica para interpretações distintas e conclusões díspares, geradoras de condenável tratamento desigual.

 

Mesmo assim, parte considerável da jurisprudência continua inclinada a admitir a vigência e constitucionalidade da vedação à liberdade provisória contida no art. 44 da Lei de Drogas.[5]

 

Nestes termos, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que “a vedação expressa do benefício de liberdade provisória aos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes, disciplinada no art. 44 da Lei n. 11.343/06, é, por si só, motivo suficiente para impedir a concessão da benesse ao réu preso em flagrante por crime hediondo ou equiparado, nos termos do disposto no art. 5º, inciso LXVI, da Constituição Federal, que impõe a inafiançabilidade das referidas infrações penais” (STJ, RHC 23.083/SP, 5ª T., rela. Mina. Laurita Vaz, DJU de 22-4-2008, Revista Jurídica, n. 366, p. 192).

 

3) O enfrentamento da questão no Supremo Tribunal Federal

 

Em novembro de 2008, ao denegar a ordem no julgamento do HC 95.539/CE (STF, 2ª T.), o Min. Eros Grau destacou que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal estava alinhada no sentido do não-cabimento da liberdade provisória no caso de prisão em flagrante por tráfico de entorpecentes.

 

Seguindo a mesma linha de argumentação, o Min. Ricardo Lewandowski indeferiu liminar no HC 100.831/MG, nos seguintes termos: “Em que pese o tráfico ilícito de drogas ser tratado como equiparado a hediondo, a Lei 11.343/2006 é especial e posterior àquela – Lei 8.072/90. Por essa razão, a liberdade provisória viabilizada aos crimes hediondos e equiparados pela Lei 11.464/2007 não abarca, em princípio, a hipótese de tráfico ilícitos de drogas” (STF, HC 100.831/MG, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 30-9-2009).

 

Contudo, ainda que tardiamente, o Supremo Tribunal Federal vem revendo seu posicionamento, de maneira a reconhecer a inconstitucionalidade da vedação “a priori” à liberdade provisória, e, de conseqüência, a insubsistência da negativa ao benefício com fundamento exclusivo na literalidade do art. 44 da Lei de Drogas.

 

Nessa linha argumentativa, em dezembro de 2008 decidiu o Ministro Celso de Mello que a “vedação apriorística de concessão de liberdade provisória, reiterada no art. 44 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), tem sido repelida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que a considera incompatível, independentemente da gravidade objetiva do delito, com a presunção de inocência e a garantia do ‘due process’, dentre outros princípios consagrados pela Constituição da República” (STF, Med. Cautelar em HC n. 96.715-9/SP, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 19-12-2008. Informativo STF n. 533).[6]

 

Tal forma de pensar foi novamente adotada pelo Min. Celso de Mello ao deferir liminar no HC 97.976/MG (DJ de 11-3-2009).[7]

Mais recentemente, em 17 de setembro de 2009, embora tenha novamente destacado que o Supremo Tribunal Federal vem adotando o entendimento de que o preso em flagrante por tráfico de entorpecentes não tem direito à liberdade provisória, por expressa vedação do art. 44 da Lei n. 11.343/06, o Min. Eros Grau reformulou seu posicionamento e concedeu liminar em habeas corpus, consignando que o Min. Celso de Mello, ao deferir a liminar requerida no HC 97.976/MG, já havia destacado que o tema está a merecer reflexão pelo Supremo Tribunal Federal, e terminou por decidir que “a vedação da concessão de liberdade provisória ao preso em flagrante por tráfico de entorpecentes, veiculada pelo art. 44 da Lei n. 11.343/06, é expressiva de afronta aos princípios da presunção de inocência, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana (arts. 1º, III, e 5º, LIV e LVII da Constituição do Brasil). Daí resultar inadmissível, em face dessas garantias constitucionais, possa alguém ser compelido a cumprir pena sem decisão transitada em julgado, além do mais impossibilitado de usufruir benefícios da execução penal”. E arrematou: “A inconstitucionalidade do preceito legal me parece inquestionável” (STF, HC 100.745/SC, rel. Min. Eros Grau, j. 17-9-2009).

 

4) Conclusão

        

Ao se permitir a liberdade provisória e condenar pela inconstitucionalidade toda e qualquer vedação ex lege ao benefício, não se está a homenagear a criminalidade, tampouco aqueles que a patrocinam. É preciso admitir que “há “traficantes e traficantes”.

        

O que se busca, em verdade, é a plenitude do irrenunciável Estado Democrático de Direito e a efetividade das garantias constitucionais alcançadas ao longo dos tempos não sem muitos esforços.

        

Busca-se restaurar a presunção de inocência; a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório violados.

        

Com tal proceder, renovam-se os votos de confiança na Magistratura brasileira, acreditando na capacidade de discernimento na avaliação que deve ser feita por seus Ilustres integrantes, caso a caso, na análise da possibilidade, ou não, de se conceder a liberdade provisória.

        

Em última análise, busca-se a tratativa do humano pelo humano no enfrentamento de questões individuais que cada caso traz, sem olvidar do valor Liberdade. Não se olvidando, ainda, que “não haverá liberdade sempre que as leis permitirem que o homem deixe de ser pessoa e se torne coisa”.[8]

        

No campo em que gravitam reflexões que conduzem às discussões mais elevadas não há espaço para discursos rasteiros e mofados; calcados em doutrina penal baseada no felizmente superado Ato Institucional nº 5.

        

Aos leitores, uma reflexão de Aristóteles como fecho deste pequeno trabalho: “o ignorante afirma, o sábio dúvida, o sensato reflete”.

 

 

Renato Marcão é membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor no curso de pós-graduação da Faculdade de Direito Damásio E. de Jesus; no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP). Autor dos livros: Tóxicos (Saraiva); Curso de Execução Penal (Saraiva), Estatuto do Desarmamento (Saraiva), Crimes de Trânsito (Saraiva), e Lei de Execução Penal Anotada e Interpretada (Lumen Juris). Co-autor dos livros: Notáveis do Direito Penal (Consulex) e Comentários à Lei de Imprensa (Revista dos Tribunais).

 



[1] Renato Marcão. Estatuto do Desarmamento, 2ª ed.,São Paulo, Saraiva, 2009, p. 209/210.

[2] Renato Marcão. Estatuto do Desarmamento, 2ª ed.,São Paulo, Saraiva, 2009, p. 209.

[3] Renato Marcão. Tóxicos, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 328.

[4] Renato Marcão. Tóxicos, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 331.

[5] Neste sentido: STF, HC 92.747-5/SP, 1ª T., rel. Min. Menezes Direito, DJ de 25-4-2008, Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal, n. 50, p. 146; STJ, RHC 22.379-SP, 5ª T., rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJU de 22-4-2008, Revista Jurídica, n. 366, p. 197; STJ, RHC 22.623-MT, 5ª T., rel. Min. Felix Fischer, DJU de 22-4-2008, Revista Jurídica, n. 366, p. 192.

[6] Na mesma linha de pensamento já havia se posicionado a Desembargadora do TJMG Jane Silva, enquanto convocada para o Superior Tribunal de Justiça, conforme ementa que segue transcrita: “A gravidade abstrata do delito atribuído ao agente é insuficiente para a manutenção de sua prisão provisória, sob pena de afronta à garantia constitucional de presunção de não-culpabilidade. Precedentes. Da mesma forma, a invocação da repercussão social do delito não se presta para a justificação da constrição cautelar, sob pena de antecipação do cumprimento da reprimenda, vedada pelo ordenamento jurídico pátrio, notadamente quando a quantidade de drogas encontrada em poder dos agentes não se mostra expressiva. Precedentes. Unicamente a vedação legal contida no artigo 44 da Lei 11.343/2006 é insuficiente para o indeferimento da liberdade provisória, notadamente em face da edição da Lei 11.464/2007, posterior e geral em relação a todo e qualquer crime hediondo e/ou assemelhado. Precedentes. Dado provimento ao recurso para deferir ao recorrente os benefícios da liberdade provisória” (STJ, RHC 24.349, 6ª T., rela. Mina. Jane Silva, j. 11-11-2008, DJU de 1-12-2008; Boletim IBCCrim n. 194, Jurisprudência, p. 1228).

[7] No v. Acórdão ficou consignado: “(...) o princípio da proporcionalidade visa a inibir e a neutralizar o abuso do Poder Público no exercício das funções que lhe são inerentes, notadamente no desempenho da atividade de caráter legislativo. Dentro dessa perspectiva, o postulado em questão, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, atua como verdadeiro parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais.   Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal.   A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, bem por isso, tem censurado a validade jurídica de atos estatais, que, desconsiderando as limitações que incidem sobre o poder normativo do Estado, veiculam prescrições que ofendem os padrões de razoabilidade e que se revelam destituídas de causa legítima, exteriorizando abusos inaceitáveis e institucionalizando agravos inúteis e nocivos aos direitos das pessoas (RTJ 160/140-141, rel. Min. Celso de Mello; RTJ 176/578-579, rel. Min. Celso de Mello; ADI 1.063/DF, rel. Min. Celso de Mello v.g.)”.

[8] Cesare Becaria, Dos delitos e das penas, 3. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006.


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