323 - Porte de arma branca: contravenção penal ou conduta atípica

 

ANA RAQUEL COLARES DOS SANTOS LINARD - Juíza de Direito

 

 

As unidades de Juizados Especiais Criminais recebem diuturnamente inúmeros Termos Circunstanciados de Ocorrência – TCOs decorrentes da conduta costumeiramente entendida como ilícita, referente ao porte de arma branca, compreendidas estas como sendo as facas, canivetes, punhais e até mesmo chaves de fenda, em casos mais extremos.

 

No entanto, em que pese a praxe policial e, mesmo forense, acerca da matéria, a polêmica em torno da licitude ou não da conduta tem adquirido consistência, conforme se pode facilmente perceber das decisões judiciais que tem sido proferidas, notadamente pelos Tribunais e pelas Turmas Recursais, sem falar dos Juízos Criminais, entendendo pela atipicidade da conduta de portar arma branca, à míngua de legislação prévia que tipifique a conduta seja como crime, seja como contravenção.

 

Entendo conveniente iniciar a abordagem da questão pelo conceito de arma branca. De acordo com a enciclopédia livre WIKIPÉDIA, arma branca é “todo objeto simples ou singelo que serve de arma, para a defesa ou ao ataque, constituído de ponta(s) ou lâminas, com capacidade de perfurar ou cortar como prego(s), parafuso(s), agulha(s)de costura, tricot, para fazer redes de pesca, tesouras, chaves de fenda, canivetes ou navalhas. Também podem ser consideradas armas brancas outros objetos simples ou singelos utilizados para golpear, perfurar ou cortar como pedaços de madeira, canetas ou cacos de vidro.[1]

 

Esclarece, ainda, que existem duas divisões de armas brancas, no caso, armas com corte, como espadas e machados, bem como armas sem corte, como porretes.

 

Há também a classificação que divide as armas brancas em próprias e impróprias, sendo as primeiras detentoras de finalidade ofensiva que, no caso das armas brancas abrangeriam os punhais e as adagas e estas, as que não tendo esta finalidade, podem, eventualmente, ser utilizadas como arma, tais como facas, canivetes, tesouras, chaves de fenda, as quais ostentam finalidade de ferramentas ou utensílios.

 

Em magistral lição acerca do assunto, o Des. EDUARDO MAYR, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em acórdão proferido na Apelação Criminal nr. 5673/06, datado de 09/01/2007, refere que “as ditas ‘armas brancas’ se classificam na doutrina, em quatro espécies: as cortantes; as pérfuro-cortantes; as perfurantes; e as corto-contudentes.”

 

Segue o eminente julgador esclarecendo que as armas brancas cortantes teriam como característica uma borda delgada, com gume, afiada o bastante para seccionar tecidos, tendo como exemplo a navalha de barbeiro. As perfuro-cortantes teriam uma ponta e um ou mais gumes, destinadas a perfurar e cortar, sendo exemplo as facas e adagas. As perfurantes são instrumentos datados de ponta aguda, destinados apenas a perfurar, como os floretes. Por fim, as corto-contundentes que são peças que atum cortando, mas que, por conta de sua massa acabam também por contundir o tecido atingido, tais como os machados e as foices.

 

Histórico da legislação – No Brasil, a legislação acerca do porte de arma branca teve como seu primeiro diploma legal regulador o Decreto nº 1.246, de 11 de dezembro de 1936, o qual regulamentava, dentre outros assuntos, o transporte de armas, relacionando as armas proibidas, bem como as permitidas para civis, regulamentando o porte das permitidas, como também proibia o cidadão de portar facas (ou outras lâminas) que possuíssem mais de 10 (dez) centímetros de comprimento, origem possível do entendimento popular pela proibição de porte de arma branca com lâmina dotada de "... mais de 4 dedos...".

 

Tal diploma legal foi revogado pela Lei das Contravenções Penais e pelos diplomas seguintes, notadamente o artigo 19 da LCP que textualmente determina: Art. 19 - Trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade: Pena - prisão simples, de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, ou multa, ou ambas cumulativamente.”

 

Assim, estando atualmente regida a conduta ora sob exame pelo teor do artigo suso transcrito, a questão que se apresenta é se, considerados os princípios constitucionais da legalidade e da anterioridade da lei penal, sem prejuízo do determinado pelo artigo 5º. da LICC (Art. 5o  Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum) aquela seria típica e, portanto, passível de reprimenda pela imposição de pena ali prevista, ou atípica, à míngua de lei anterior que a defina como crime.

 

Em defesa desta última tese se levantam, seja no meio jurídico, bem como nos Tribunais, vozes que defendem, com base em uma análise meramente técnica, a absoluta atipicidade da conduta de porte de arma branca.

 

Em prol de tal argumento, alegam que o referido artigo 19 da LCP sequer se destinaria a regular o porte de arma branca, mas antes armas de fogo, dedução extraída pela presença no texto da exigência de autorização de autoridade competente, a qual o cidadão pudesse solicitar a licença para conduzir a arma branca – autoridade esta cuja indicação inexiste, tornando impossível o cumprimento da imposição – além da menção, no parágrafo 2º., à arma ou munição, numa clara referência às armas de fogo.

 

Resta óbvio que se trata de norma penal em branco, a exigir complemento por meio de outro tipo de normativo legal, sendo que somente para as armas de fogo é que tal lacuna encontra-se suprida, sem qualquer especificação no que se refere às armas brancas.

 

Assim, tal conduta seria atípica, considerado o teor dos incisos II e XXXIX do artigo 5º. da CF/88 - os quais configuram os princípios da legalidade e da anterioridade da lei penal[2] - pelos quais restou estabelecida, de forma clara, a necessidade de prévia cominação legal para fins de imposição de sanções de natureza penal, não se prestando o artigo 19 da LCP a tais fins, o que tem sido reconhecido pela jurisprudência, conforme se constata dos julgados abaixo transcritos:


EMENTA:
  RECURSO CRIME. POSSE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE PARA USO PRÓPRIO. MACONHA. ART. 28 DA LEI 11.343/06. CONDUTA TÍPICA. PORTE DE ARMA BRANCA. ART 19 DA LCP. REGULAMENTAÇÃO INEXISTENTE. ATIPICIDADE DA CONDUTA. SENTENÇA CONDENATÓRIA PARCIALMENTE REFORMADA. 1- Comprovadas a ocorrência e a autoria do fato delituoso previsto no artigo 28, caput, da Lei 11.343/06, a condenação é conseqüência lógica. A pequena quantidade de tóxico apreendida em poder de quem a detém para uso próprio tipifica a conduta, uma vez que se trata de delito de perigo abstrato, possuindo plena aplicabilidade em nosso sistema jurídico, e cuja repressão visa a preservar a saúde pública. 2- De outra banda, ao contrário do que ocorre em relação às armas de fogo, inexiste regulamentação de licença para porte ou uso de armas brancas. Assim sendo, não se configura a contravenção penal do art. 19 do Decreto-Lei 3.688/41, devendo o réu ser absolvido. RECURSO DEFENSIVO PARCIALMENTE PROVIDO. (Recurso Crime Nº 71001915404, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Cristina Pereira Gonzales, Julgado em 16/02/2009)


EMENTA:
  APELAÇÃO CRIME. POSSE ILEGAL DE ARMA BRANCA. ART. 19 DA LCP. ATIPICIDADE. PROVA PRECÁRIA. 1.Se não bastasse a precariedade da prova, já, de muito, é dito aqui que portar arma branca não caracteriza a contravenção imputada ao R., 2.Ao contrário do que ocorre em relação às armas de fogo, inexiste regulamentação de licença para porte ou uso de armas brancas. NEGADO PROVIMENTO A APELAÇÃO. UNÂNIME. (Recurso Crime Nº 71001543339, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Nara Leonor Castro Garcia, Julgado em 21/01/2008)


APELAÇÃO CRIME. PORTE DE ARMA BRANCA. ART. 19 DA LCP. ATIPICIDADE. Ao contrário do que ocorre em relação às armas de fogo, inexiste regulamentação de licença para porte ou uso de armas brancas. Ausente lei que regulamente, não configura o porte de arma branca, a contravenção do art. 19 da LCP. NEGADO PROVIMENTO À APELAÇÃO, UNÂNIME. (Recurso Crime Nº 71001203066, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Nara Leonor Castro Garcia, Julgado em 12/02/2007)

 

Inobstante, tal entendimento não se apresenta predominante, uma vez que ainda se mantém em outros julgados o reconhecimento da conduta de porte de arma branca como delitiva, nos moldes do previsto pelo artigo 19 da LCP, do que são exemplos os julgados abaixo transcritos:

 

Neste sentido:

PORTE DE ARMA BRANCA. ARTIGO 19 DA LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS. DECISÃO QUE DETERMINOU O ARQUIVAMENTO DO TERMO CIRCUNSTANCIADO DIANTE DA ATIPICIDADE DA CONDUTA DO RÉU. INCONFORMIDADE MINISTERIAL. A Lei nº 9.437/97 não veio para descriminalizar o porte de arma branca, apenas elevou o porte ilegal de arma de fogo, antes tipificado como contravenção penal, à categoria de crime. Se pelo contexto fático narrado no Termo Circunstanciado há possibilidade de utilização da faca para fins criminosos, pode este se caracterizar como arma e atrair a incidência do artigo 19 da Lei das Contravenções Penais. DERAM PROVIMENTO. (Recurso Crime Nº 71001655117, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Alberto Delgado Neto, Julgado em 02/06/2008)


Ementa: PENAL - APELAÇÃO - CONTRAVENÇÃO - PORTE DE ARMA BRANCA - CARACTERIZAÇÃO - ATIPICIDADE DA CONDUTA - NÃO-PROCEDÊNCIA - INEXISTÊNCIA DE LEI FEDERAL DISPONDO SOBRE REGISTRO E LICENÇA - IRRELEVÊNCIA - PENA - REDUÇÃO NÃO CABÍVEL - SUBSTITUIÇÃO DA PENA CORPORAL POR RESTRITIVA DE DIREITOS - POSSIBILIDADE - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. - Embora a faca seja tida como arma imprópria, e tenha, muitas vezes, outras destinações, se possuir potencialidade lesiva, há que ser considerada como elemento caracterizador da contravenção do artigo 19 do Decreto-lei 3.688/1941; - Se as circunstâncias judiciais foram devidamente examinadas pelo juízo sentenciante para a fixação da pena imposta ao acusado, respeitando-se as regras dos artigos 59 e 68 do CP, incabível é a sua redução; - A substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos é cabível, desde que preenchidos os requisitos legais previstos no artigo 44 do CP, e, outrossim, se revelar-se a medida socialmente recomendável e suficiente, que é o que ocorre no caso em exame ; - Recurso parcialmente provido. Súmula: DERAM PROVIMENTO PARCIAL. (TJMG - Número do processo: 1.0155.06.011609-4/001 - Relator: JOSÉ ANTONINO BAÍA BORGES - Data do Julgamento: 07/08/2008 - Data da Publicação: 12/09/2008.


APELAÇÃO-CRIME. PORTE DE ARMA BRANCA. FATO TÍPICO. ARTIGO 19, DA LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS. Os fatos demonstram que o facão era portado como arma, colocando em perigo terceiros, tendo o réu admitido que o portava para sua defesa, merecendo provimento a apelação ministerial. APELAÇÃO PROVIDA. (Recurso Crime Nº 71002083285, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Angela Maria Silveira, Julgado em 25/05/2009)

 

O certo é que, de forma a afastar tais discussões, tramita na Câmara dos Deputados, pelo menos, um projeto de lei destinado a regular a conduta de porte/transporte de arma branca, o que demonstra o reconhecimento da necessidade de criminalizar a conduta pelo perigo que a mesma impõe à sociedade.

 

De fato, o PL 2967, do Deputado Lincoln Portela (PR-MG), com apenas 02 artigos, estabelece em seu artigo 1º. que:


Art. 1º - Fica proibido o porte de arma branca em via pública:

Pena – detenção de três meses a um ano e multa.


§ 1º Entende-se como arma branca, todo instrumento, constituído de lâmina de qualquer material cortante ou pérfuro-cortante, tendo dez ou mais centímetros de comprimento.


§ 2º Não constitui o crime tipificado no caput o transporte de objeto, que possa ser considerado arma branca, entre o seu local de depósito e o local de sua adequada utilização e vice-versa.  

 

De acordo com o citado normativo, percebe-se que o legislador visa criminalizar o porte, resguardando o direito de transporte de eventual utensílio ou ferramenta, utilizado em sua função precípua, certamente em vista de algumas tarefas executadas no interior do País, pelo homem do campo, em sua labuta diária.

 

Enquanto o referido normativo não entra em vigor, entendo que concluir pela atipicidade da conduta de porte de arma branca - analisada a questão apenas pelo aspecto técnico - se mostra preocupante, uma vez que a arma branca, notadamente as facas, punhais e canivetes tem sido utilizados, com certa e constante freqüência, para a consumação de crimes de lesões corporais e homicídios, principalmente nas cidades interioranas e nas periferias das grandes cidades.

 

Assim, o artigo 19 da LCP, em que pese uma certa inespecificidade em seus ditames, deve ser aplicado nos casos de porte de arma branca, tanto na fase processual - inclusive para os fins de absolvição, caso comprovada a não destinação ofensiva do objeto - como na fase preliminar prevista na Lei 9099/95, ainda que alegue o autor que a ferramenta/utensílio destinava-se a ser utilizada em atividade laboral, devendo o Juiz atentar para o teor do artigo 5º. da Lei de Introdução ao Código Civil, (Art. 5o  Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum) cabível ainda a  aplicação, neste tocante, do brocardo in dúbio pro societate, o qual é aplicado no juízo de pronúncia, considerados os alarmantes índices de criminalidade e a primordial defesa da sociedade em detrimento do direito individual eventualmente atingido.

 

 

Ana Raquel Colares dos Santos Linard é Juíza Titular do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Juazeiro do Norte (CE).

 

Novembro, 2009.



[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Arma_branca

[2] II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

 


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