324 - Controle de constitucionalidade e democracia no Brasil: os riscos da adoção de um modelo predominante concentrado

 
ANDRÉ AUGUSTO SALVADOR BEZERRA - Juiz de Direito

 


Sumário
: 1. Introdução – 2. A consagração da autonomia do Judiciário nos Estados Unidos – 3. O nascimento do controle concentrado na Europa – 4. A histórica proeminência do Executivo no Brasil – 5. A promulgação da Constituição de 1.988 – 6. Peculiaridades do presidencialismo brasileiro – 7. O controle concentrado de constitucionalidade diante do fortalecido Executivo – 8. A adoção concomitante dos sistemas difuso e concentrado pela vigente Constituição – 9. Conclusão – 10. Bibliografia.

 

 

1 – Introdução

 

As duas décadas de vigência da Constituição de 1988 revelam, diuturnamente, as vantagens de se viver em uma ordem democrática.

 

É o caso do papel exercido pelo Judiciário, cuja atividade ganhou real autonomia e independência sob a vigência da Constituição de 1988, não somente por conta do que consta nos artigos 2º e 92 a 126, mas também em razão das exigências da sociedade organizada democraticamente, especialmente no controle de constitucionalidade dos atos do Executivo e do Legislativo.

 

Essa situação tem ensejado a publicação de novas e respeitadas teses a respeito do controle de constitucionalidade e que merecem análise crítica a partir da realidade brasileira.


Daí a importância do presente estudo. Pretende-se aqui discutir o controle de constitucionalidade no ordenamento brasileiro diante da promulgação da Constituição de 1988, verificando-se se é possível falar em prevalência de um modelo de controle sobre outro.   

 

2 – A consagração da autonomia do Judiciário nos Estados Unidos

 

Para se atingir o escopo acima aludido, cabe, de início, lembrar que a existência de um Judiciário autônomo só foi possível com a consagração da teoria da separação de poderes a partir da assunção do poder pela burguesia, cujo ponto culminante foi a explosão da Revolução Francesa.

 

Por outro lado, no mesmo período em que vigia a monarquia absoluta tão combatida pelos revolucionários burgueses, a magistratura era formada por membros nomeados diretamente pelo governo, agindo, assim, arbitrariamente em nome destes.  Tal fato, como lembra Dalmo de Abreu Dallari, “contribuiu para que a magistratura se tornasse poderosa, mas também para que se criasse uma imagem negativa dos juízes”.[1]

 

Não é de se estranhar que, embora sustentasse a existência autônoma do Judiciário, Montesquieu defendia o mínimo de iniciativa à magistratura, sob o argumento de ser a função de julgar “terrível entre os homens”.[2]

 

Vale dizer que no contexto em que o princípio da separação de poderes foi consagrado, atribuiu-se ao Judiciário papel coadjuvante nas relações políticas. Conferiu-se certa primazia ao Parlamento e à sua primordial função de elaborar leis, tanto por limitar as atribuições do monarca, quanto por garantir à burguesia a vigência de um ordenamento estável e seguro para a realização de seus negócios.

 

Em território norte-americano, entretanto, a situação era diversa. É que nos Estados Unidos, formou-se, prontamente, uma sociedade tipicamente capitalista, oriunda de anti-monarquistas que migraram em busca da liberdade de religião e da possibilidade da realização livre do comércio.

 

Não havia motivo para se defender o mesmo desprestígio do Judiciário na forma que sucedia em terras européias. Tanto é assim que a Constituição promulgada em 1787 consagrou a possibilidade do Judiciário verificar a constitucionalidade das leis, para, como ressaltado pelo “federalista” Alexander Hamilton, fazer valer a soberania popular[3], o que foi efetivado no célebre caso Marbury v. Madison.

 

O Judiciário assume, assim, o relevante papel de guardião da Constituição.  E note-se: não apenas a Suprema Corte, mas todos os órgãos jurisdicionais, ficando consagrado o controle difuso de constitucionalidade em idêntico contexto ao reconhecimento da força política do Judiciário.

 

3 – O nascimento do controle concentrado na Europa

 

Na Europa do início do século XX sucedeu o segundo momento em que se prestigiou a atividade jurisdicional pela fiscalização dos atos dos demais poderes: o nascimento do controle concentrado de constitucionalidade.

 

Nesse aspecto, é preciso recordar que as já aludidas revoluções burguesas sucedidas na Europa culminaram na instauração de um modelo estatal não intervencionista, de apoio à livre iniciativa, de modo que ao Estado cabia a limitada atribuição de garantir os direitos civis dos cidadãos, permitindo o pleno desenvolvimento dos interesses da nova classe dominante.

 

Se, por um lado, essa primeira fase do constitucionalismo possibilitou o progresso do capitalismo, do outro lado promoveu a exclusão sócio-econômica de grande parcela da população.  A filosofia de Marx e Engels no sentido de ser o Estado moderno “ um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”[4], consiste em um reflexo desta dura realidade.

 

A resposta do capitalismo para a ameaça marxista foi a implementação do Welfare State. Passou-se, então, a exigir dos órgãos públicos, atuações positivas, a fim de tornar efetivos novos direitos como previdência, saúde e educação, o que implicou na realização de atividades materiais e normativas em favor da coletividade e na direta atuação na esfera econômica.

 

A realização dessas novas tarefas evidentemente não era compatível com a morosidade do processo de elaborar leis pelo Parlamento.  O natural corolário deste novo contexto foi o fortalecimento do Executivo.

 

Diante de tal situação, ficava evidente a necessidade de se saber como defender a Constituição e como controlar a constitucionalidade dos atos normativos, expedidos tanto pelo Legislativo quanto pelo Executivo. Ficava também evidente que o controle de constitucionalidade difuso poderia não ser suficiente, eis que, neste, a inconstitucionalidade de ato normativo era apenas fundamento de decisão para um único caso concreto. O que não ficou claro, de início, foi quem deveria ser o responsável por tal tarefa.

 

Entendia, nesse aspecto, Carl Schmidt que cabia ao chefe do Executivo a função de verificar a compatibilidade das normas com a Constituição, por ser eleito pelo povo, representando a unidade do Estado. Desta forma, somente ele poderia servir de “contrapeso para o pluralismo dos grupos sociais e econômicos de poder e defender a unidade do povo como uma totalidade política”.[5]

 

Por sua vez, Hans Kelsen entendia que ao Judiciário cabia defender a Constituição, pelo fato de se tratar de poder normalmente equidistante das tensões políticas existentes entre Governo e Parlamento.  Ademais, não bastava a adoção do modelo difuso, sendo necessária a existência do controle concentrado em um tribunal constitucional, pois a verificação da compatibilidade entre uma norma e a Constituição consiste em “um interesse público que merece ser protegido por um processo correspondente à sua condição especial”.[6]

 

A História revelou o quanto eram perigosas as aparentemente democráticas idéias de Schmidt, porque foi com base nas idéias de “totalidade do povo” e “unidade do Estado” que se apoiou o regime nazista em território germânico.

 

Passada a Segunda Guerra Mundial, as idéias de Kelsen prevaleceram em considerável parte da Europa, inclusive na Republica Federal da Alemanha. Nasce, então, o controle concentrado de constitucionalidade, apto a tornar o Judiciário detentor do poder de verdadeiro “legislador negativo”[7] ao declarar uma norma inconstitucional.

 

Observe-se que o controle concentrado de constitucionalidade não nasceu no presidencialista Estados Unidos da América, mas nas democracias parlamentaristas da Europa, o que significa dizer que o poder de anular uma lei em tese dada ao Judiciário adveio de uma dinâmica em que deve haver integração entre Executivo (Governo) e Legislativo (Parlamento). O controle difuso permaneceu predominante em terras norte-americanas, em que, pela forma presidencialista de sistema de governo adotada, tem-se uma natural prevalência do Executivo. [8]

 

4 – A histórica proeminência do Executivo no Brasil.

 

Existe, como se vê, um paralelo entre a evolução do capitalismo europeu, a consolidação de democracias parlamentaristas e a criação do controle concentrado de constitucionalidade. Resta analisar se é possível traçar o mesmo paralelo no caso brasileiro.

 

Tal análise deve partir da primeira Constituição do país, outorgada em 1824, a qual previa a existência do poder Moderador, preconizado por Benjamin Constant, que, por intermédio do Imperador, tinha a função de manter a independência, o equilíbrio e a harmonia dos demais poderes, gerando exacerbada concentração de funções.[9]

 

O advento da proclamação da República levou à eliminação do poder Moderador da História brasileira com a promulgação da Constituição de 1891. Tal Carta, porém, ao limitar em demasia o poder central, não logrou concretizar as liberdades públicas, mas sim o excessivo fortalecimento de autoridades locais, centradas na figura de um chefe, chamado de “coronel”.[10]

 

A Constituição de 1934 procurou eliminar tal anomalia, ampliando as competências da União, sob a égide de um regime democrático. Passados, porém, poucos anos de turbulentos confrontos ideológicos, o que se viu, contudo, foi, novamente, a personalização do poder.  Em 1937, Getúlio Vargas dissolveu o Parlamento e outorgou outra Constituição, instituindo o “Estado Novo”, de índole autoritária, voltada para a figura pessoal do chefe do Executivo, que, reivindicando “(...) a plena identidade entre ele a Nação”[11], dispunha de plenos poderes.

 

A superação desse período autoritário sucedeu com a promulgação da Constituição de 1946, cujo caráter democrático, porém, não impediu a personalização do poder nas mãos de Presidentes da República que vinculavam as aspirações das massas urbanas, que se formavam com a crescente industrialização do país, como verdadeiros anexos estatais.[12]

 

A derrubada do Presidente João Goulart foi reflexo da necessidade da burguesia de realizar seus negócios em um ambiente estável: o golpe militar de 1964 visou, antes de tudo, promover uma almejada segurança aos interesses da classe dominante, afastando “getulistas” e movimentos ligados à esquerda do poder. Entretanto, a Constituição outorgada em 1967 e a Emenda Constitucional n. 01 de 1969 levaram o país, mais uma vez, à centralização ditatorial do poder nas mãos do chefe do Executivo, em verdadeiro “divórcio progressivo da sociedade civil”[13].

 

O retorno à democracia consolidou-se apenas com a promulgação da vigente Constituição de 1988.  Encerrou-se uma obscura fase da História brasileira, mediante novo período de promessa de democracia política, social, estável e duradoura.


Toda essa digressão foi feita para mostrar o quanto a História do Brasil difere dos países europeus que fazem predominar o controle concentrado de constitucionalidade.  No Velho Continente, o Parlamento nasceu forte e, aos poucos, cedeu espaço para o Executivo, surgindo daí a democracia parlamentarista hoje vigente, em que se tem um Tribunal Constitucional para mediar as tensões existentes entre os equilibrados poderes. No Brasil, há um Parlamento historicamente fraco e um Executivo forte, fato que não foi evitado nem mesmo por Constituições democráticas.


Resta saber se o advento da Constituição de 1988 alterou essa situação de modo a permitir que se aplique o mesmo predomínio do controle concentrado de constitucionalidade que sucede na Europa.

 

5 – A promulgação da Constituição de 1988

 

Para se atingir o objetivo mencionado, é preciso saber que, além da proeminência do Executivo, há outro ponto de convergência na instável História brasileira: a prevalência do controle difuso de constitucionalidade.

 

Com efeito, a noção de controle de constitucionalidade no Brasil só pode ter início com a promulgação da primeira Constituição republicana, pois a mera existência do poder Moderador impedia qualquer espécie de controle efetivo. A Constituição de 1891 previu, assim, o controle difuso de constitucionalidade como conseqüência da forte influência sofrida do constitucionalismo norte-americano. Apesar de ter passado por certas modificações pelas demais Constituições promulgadas ou outorgadas no século XX[14], esse sistema foi o que prevaleceu.

 

O controle concentrado só adveio com a Emenda 16, de 26/11/1965, que concedeu ao Procurador Geral da República a possibilidade de representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual à Suprema Corte, o que foi mantido pela Constituição de 1967 e pela Emenda 01/1969, ambas colocadas em vigor autoritariamente sob o regime militar.  Todavia, ainda assim, a insuficiência do sistema era evidente, na medida em que o único legitimado para provocar tal espécie de controle era o Procurador Geral da República, nomeado pelo Presidente da República.

 

A promulgação da Constituição de 1988 significou a promessa de romper com a tradição autoritária do sistema político do país. No caso do controle de constitucionalidade, a situação não foi diversa, pois, além de manter o sistema difuso tradicionalmente vigente, fortaleceu o controle concentrado. Com efeito, a problemática acima descrita acerca da legitimação exclusiva do Procurador Geral da República para propor ação direta de inconstitucionalidade (inclusive por omissão) foi resolvida pela ampla legitimação ativa prevista no artigo 103 e robustecida pela criação da ação declaratória de constitucionalidade de lei ou de ato normativo federal, por obra da Emenda Constitucional n. 03/1993.

 

Verifica-se, destarte, que o controle difuso não reina mais sozinho na ordem jurídica pátria, o que pode ser visto como verdadeiro atendimento à demanda por soluções jurisdicionais uniformes e urgentes a respeito de relevantes questões para o país e que, sob o exclusivo controle incidental, poderiam perder-se em torno de divergências jurisprudenciais.

 

Diante das inovações realizadas acima aludidas, passou a ganhar guarida a tese da efetiva prevalência do controle concentrado sobre o controle difuso no direito brasileiro, o que já foi externado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, em voto elaborado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento da ADC n.1, no sentido de que “a experiência tem demonstrado que será inevitável o reforço do controle concentrado, sobretudo nos processos de massa.”[15]   Há na doutrina quem corrobore essa tese de forma mais explícita, como Gilmar Ferreira Mendes, que entende que “a Constituição de 1988 alterou, de maneira radical, essa situação, conferindo ênfase não mais no sistema difuso ou incidental, mas ao modelo concentrado...”[16]

 

Anote-se que essa tese tem, em princípio, sua razão de ser. Não há como negar o relevante papel de guardião dos valores constitucionais, atribuído ao Supremo Tribunal Federal, como verdadeira necessidade de uma Constituição que procurou extinguir a histórica proeminência do Executivo e fortalecer o Legislativo. Cabe, em tal dinâmica, ao STF, mediar tensões eventualmente existentes entre os poderes do Estado, em tese, equilibrados.

 

A própria forma composição da Corte Suprema corrobora esse entendimento. De fato, a nomeação pelo Presidente da República após aprovação por maioria absoluta do Senado Federal (artigo 101, parágrafo único da CF), revela uma suposta integração que deve existir entre Executivo e Legislativo, em modo semelhante que sucede nas democracias parlamentaristas da Europa.

 

– Peculiaridades do presidencialismo brasileiro

 

Respeitada a tese acerca da prevalência de uma forma de controle de constitucionalidade sobre outra, é necessário, contudo, verificar se o sistema político adotado como um todo pela Carta de 1988, permite a integral aplicação do modelo europeu no direito pátrio. Para isso, deve-se volver à época em que a “Constituição – Cidadã” ainda estava sendo elaborada pelos deputados e senadores constituintes.


Nesse aspecto, no decorrer dos trabalhos então realizados pelos parlamentares, instituiu-se a Comissão de Sistematização, que recebera consideráveis poderes pelo Regimento Interno da Assembléia Constituinte, afastando das discussões a maiorias dos congressistas. Tal comissão era formada por defensores do sistema de governo parlamentarista, a ponto de preverem a chefia de governo a um Primeiro Ministro e típicos institutos de países parlamentaristas, como a possibilidade da convocação de Ministros de Estado pelo Legislativo para prestarem informações sobre determinados assuntos e a possibilidade do chefe do Executivo expedir medidas provisórias.

 

Os amplos poderes dados à Comissão de Sistematização geraram, porém, insatisfação de grande número de parlamentares, os quais lograram êxito em alterar o Regime Interno da Constituinte. Como resultado dessa articulação política, derrubou-se a instauração do sistema parlamentarista, relegando-o à eventual aprovação por plebiscito para cinco anos mais tarde, o que efetivamente ocorreu, tendo os cidadãos brasileiros optado pela manutenção do governo presidencialista.

 

Tal fato, entretanto, não ensejou a alteração dos institutos tipicamente parlamentaristas acima referidos.  A possibilidade do Legislativo convocar, para esclarecimentos, Ministros nomeados pelo Executivo perdurou. Outrossim, perdurou a possibilidade do Presidente da República expedir medidas provisórias, o que merece uma análise específica.

 

A medida provisória consiste em instituto de origem italiana. Não se pode olvidar, contudo, que a Itália adota a forma de governo parlamentarista, que, como já dito, caracteriza-se pela integração entre Governo e Parlamento, o que não sucede no presidencialismo, cuja atividade governamental concentra-se nas mãos do Presidente da República.  Desta forma, enquanto na Itália aludido instrumento é de iniciativa de um órgão colegiado - o Conselho de Ministros -, no Brasil sua iniciativa é de uma única pessoa, o chefe do Executivo. Outrossim, enquanto sob a égide da ordem italiana, a expedição de medida provisória requer cautela - eis que no sistema parlamentarista a manutenção do Conselho de Ministros depende da confiança do Parlamento -, sob a égide do presidencialismo brasileiro, o Governo pode expedir livremente medidas provisórias, pois sua manutenção no poder não depende da confiança de qualquer outro órgão de soberania.

 

O resultado da adoção desse instituto parlamentarista em vigente regime presidencialista não poderia ser outro senão o abuso na expedição de medidas provisórias por todos os Presidentes da República que governaram o país após o término da ditadura militar. A pauta das votações do Legislativo, portanto, fica à disposição da vontade política do chefe do Executivo. Inexiste, por conseqüência, verdadeira autonomia do Congresso Nacional perante o Governo e, mais uma vez na História do país, o Executivo perdura como o órgão de soberania proeminente na cena jurídica e política.

 

Há, pois, verdadeiro “... exercício monárquico do Poder Executivo pelo Presidente da República, Chefe de Estado e Chefe de Governo,”[17] que mantém sua histórica hegemonia, inexistindo o equilíbrio entre os poderes a ser mediado por um Tribunal Constitucional. 

 

7 – O controle concentrado de constitucionalidade diante do fortalecido Executivo


Diante de tudo que foi dito no item anterior, advém um natural questionamento. Se a previsão de instituto tipicamente parlamentarista - como a medida provisória - em um governo presidencialista levou à manutenção de uma falha histórica no regime constitucional brasileiro, é preciso saber se o extremo fortalecimento do controle concentrado de constitucionalidade irá gerar o mesmo desequilíbrio entre os poderes. A resposta a essa questão é positiva.

 

Conforme visto, o constituinte brasileiro previu interessante mecanismo de nomeação dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, exigindo a participação do Executivo e do Legislativo. Nada, porém, foi previsto acerca de eventual tempo de mandato dos Ministros do Corte Suprema; da mesma forma, nada foi previsto a respeito de eventual limite no número de membros do STF a ser nomeado por um único Presidente da República; por fim, nada foi previsto acerca da participação de outros órgãos neste sistema. 

 

Deixou, todavia, o constituinte de prever a existência de um Executivo tão fortalecido como o existente no peculiar presidencialismo brasileiro. Deixou, outrossim, de considerar o enfraquecido Legislativo, cuja iniciativa de funções encontra-se à mercê da boa vontade do Presidente da República na expedição das medidas provisórias.

 

A nomeação dos membros da mais alta Corte do país, destarte, vem a se concentrar nas mãos do Executivo.

 

Sendo assim, a prevalência do controle concentrado de constitucionalidade poderá não gerar o equilíbrio entre poderes igualmente fortalecidos. Pelo contrário, poderá ensejar a maior atribuição de funções ao já robusto Executivo, que, além de controlar a pauta do Parlamento, controlará a pauta da discussão da constitucionalidade dos atos normativos, colocando em xeque a própria autonomia do Judiciário.


A sensibilidade política que se espera dos Ministros do Supremo Tribunal Federal poderá, portanto, confundir-se com a sensibilidade política do Presidente da República. O pluralismo que se espera na mais alta Corte do país poderá dar lugar ao monopólio da ideologia adotada pelo Executivo. O modelo inspirado em Kelsen poderá, em suma, converter-se no sistema de Schimdt.

 

8 – A adoção concomitante dos sistemas difuso e concentrado pela vigente Constituição

 

As observações realizadas no item anterior podem gerar séria dúvida a respeito do controle de constitucionalidade no Brasil. É que, da mesma forma que foi dito que o controle concentrado decorre da necessidade de solução urgente e uniforme para demandas em que se discutem relevantes matérias para o país, também foi dito que a prevalência desta espécie de controle pode gerar o enfraquecimento do Judiciário.

 

A solução à aludida dúvida só pode se dar pela constatação da manutenção da adoção concomitante – sem qualquer prevalência – dos modelos europeu e norte – americano de controle de constitucionalidade.

 

O fortalecimento do primeiro modelo, com a promulgação da Constituição de 1988, é inegável.  A ampliação da legitimidade para propor a ação direta de inconstitucionalidade e a criação da ação declaratória de constitucionalidade não deixam dúvidas de que, realmente, pretendeu-se tornar efetivo o controle concentrado de constitucionalidade.

 

Por outro lado, neutralizando o robusto Executivo, prestigiou o constituinte, igualmente, o modelo norte-americano. É o caso do mandado de injunção que, embora tenha tido eficácia restringida pelo STF[18], consiste em importante remédio individual apto a, na falta de norma regulamentadora, realizar o direito, liberdade ou prerrogativa do impetrante;[19] é o caso ainda do mandado de segurança, fortificado pela criação da figura do mandamus coletivo, revelando que o controle difuso de constitucionalidade contra violações a direitos líquidos e certos pode alcançar a tutela de direitos metaindividuais; é também o caso da previsão do habeas data, que visa coibir o abuso de dados pessoais constantes em entidades governamentais ou públicas.

 

O constituinte derivado, da mesma forma, procurou robustecer o sistema de controle norte - americano, em especial por intermédio da Emenda Constitucional n. 45 de 2004.  Em primeiro lugar, porque criou a súmula vinculante, instituto que representa uma aproximação do ordenamento jurídico pátrio ao sistema do common law,[20] onde prevalece o controle difuso de constitucionalidade, procurando resolver o inconveniente das divergências jurisprudenciais a ele inerentes.  E, em segundo lugar, pela possibilidade de se não receber recurso extraordinário quando a questão constitucional discutida não tiver repercussão geral, de modo a deixar para os órgãos jurisdicionais de primeira e de segunda instâncias, a exclusiva apreciação destas matérias.

 

Não é de se estranhar, a propósito, a vigência de todos os institutos acima mencionados.  Tal realidade está em absoluta conformidade à sistemática da Constituição de 1988, que, procurando evitar o retorno aos obscuros períodos ditatoriais, deu ênfase aos direitos individuais[21], cuja efetiva proteção exige sua invocação por qualquer cidadão.[22]

 

Por essa razão, igualmente com o modelo concentrado, o controle difuso de constitucionalidade foi prestigiado pela Lei Maior de 1.988.

 

9 – Conclusão

 

É possível, pois, alcançar a ilação de que, se o constituinte não se precaveu acerca do excessivo poder do Executivo ao prever as medidas provisórias, houve, sim, uma especial precaução no controle de constitucionalidade.  Não cabe à doutrina ou à jurisprudência da Suprema Corte tornar sem efeito esta valiosa precaução para fazer valer prevalecer uma modalidade de controle que, se excessivamente prestigiado, poderá enfraquecer o Judiciário da mesma forma que as medidas provisórias enfraqueceram o Legislativo.

 


André Augusto Salvador Bezerra
é Juiz de Direito em São Paulo. Mestrando pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Público.

 

 

10 – Bibliografia


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[1] DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2.002, p. 12.

[2] MONTESQUIEU. O Espírito das Leis - Coleção Os Pensadores­ - Vol. XXI. São Paulo: Abril Cultural, 1.973, p.157.

[3] “Essa conclusão não significa uma superioridade do Judiciário sobre o Legislativo. Apenas supõe que o poder do povo é superior a ambos”. (HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. The Federalist. New York: The Modern Library, 2.000, pp. 498-499).

[4] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. (Trad). Maria Arsênio da Silva. 9ª edição. São Paulo: Nova Stella, 1.990, p. 10.

[5] SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. (Trad.) Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2.007, p. 234.

[6] KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. (Trad.) Alexandre Krug. São Paulo: Martins Fontes, 2.007, p.240.

[7] Cf., a respeito: KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional, cit., pp. 150-154.

[8] Cf. a respeito da distinção entre parlamentarismo e presidencialismo: MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 93.

[9] Cf. a respeito: MOTA, Carlos Guilherme; NOVAIS, Fernando. A Independência Política do Brasil. São Paulo: Moderna, 1.986, pp. 34-35.

[10] Nesse aspecto, não se pode deixar de considerar o fato de que a proclamação da República promoveu mínimas alterações na estrutura da sociedade brasileira, permanecendo o país sob o domínio da mesma oligarquia exportadora de matérias primas que já dominava o período imperial. Por essa razão, costuma-se dizer, que, neste período, o Brasil viveu um momento de ambigüidade entre instituições jurídicas liberais e o domínio oligárquico agrícola. [Cf. a respeito: SOUZA, Maria do Carmo Campello. O Processo Político – Partidário na Primeira República. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Brasil em Perspectiva. 10ª edição. São Paulo: Difel, 1990, pp. 166-167].

[11] SOLA, Lourdes. O Golpe de 37 e o Estado Novo. In: Brasil em Perspectiva, cit., p. 257.

[12] Cf. a respeito: WEFFORT, Francisco. O Populismo na Política Brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1.978, p. 53.

[13] QUIRINO, Célia Galvão; MONTES, Maria Lúcia. Constituições- Série Princípios. São Paulo: Ática, 1.986, p. 68.

[14] Caso da competência do Senado de suspender execução de lei declarada judicialmente inconstitucional dada pela Carta de 1934.

[15] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Constitucionalidade n. 01. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. RTJ n. 159, p. 389.

[16] MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2.007, p. 272.

[17] HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional, 2ª edição. Belo Horizonte: Del Rey, 1.999, p. 578.

[18] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção 107. Distrito Federal. Tribunal Pleno. Rel. Min. Moreira Alves. J. 21.11.1990. DJ 02.08.199.

[19] A respeito do papel dado ao mandado de injunção, anota Celso Antônio Bandeira de Mello: “Até o presente este instituto não conseguiu preencher a finalidade que lhe é própria, pois o STF, certamente por discordar do preceito constitucional que o instituiu, tem conseguido, por via interpretativa esdrúxula, impedir que produza os efeitos para os quais foi concebido” (MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 24ª edição. São Paulo: Malheiros, 2.007, p. 929).

[20] Cf. a respeito: MELLO, Patrícia Perrone Campos. A Ascensão Normativa e Institucional da Jurisprudência: Operando com Súmulas e Precedentes Vinculantes. In: BARROSO, Luis Roberto (Org). A Reconstrução Democrática do Direito Público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2.007, p. 669.

[21] Não se olvide que, em que pese a evolução dos direitos fundamentais ocorrida no decorrer dos séculos, especialmente após a consagração do Welfare State, o individualismo permanece como pressuposto básico para qualquer regime democrático.  Basta lembrar que noções coletivistas de “vontade do povo” e “unidade do Estado”, isoladamente, sempre levaram países a regimes totalitários (Cf. a respeito: BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 6ª tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier, 2.004 pp. 109-110).

[22] Nesse sentido: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21ª edição. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 325.


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