326 - O sistema Cross Examination na Reforma Processual
JAYME WALMER DE FREITAS - Juiz de Direito
1. Introdução. Tem o presente a finalidade de analisar com a imprescindível profundidade os dispositivos atinentes à prova testemunhal e demonstrar quais fundamentos justificam a não-assunção pelo Código de Processo Penal brasileiro do sistema cross examination em sua inteireza após a reforma introduzida pela Lei 11.689/08.
2. Os dispositivos legais. Como se sabe o sistema anglo-americano foi adotado na nova redação do art. 212 ao dispor que “As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.”. Cumpre anotar, desde já, que o dispositivo alterado é um entre no mínimo seis outros que tratam do depoimento judicial da testemunha e que, embora o intento do legislador fosse a adoção do mecanismo comentado, não conseguiu. Diferentemente de outros países, como a Itália, em que o sistema de pergunta direta e cruzada foi adotado em sua plenitude, no Brasil a alteração limitou-se às partes, mantendo o contexto anterior.
3. A testemunha e seus deveres. A testemunha tem o dever de comparecer ao ser intimada para a audiência de instrução. Na dicção do art. 203 (“A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente e em que grau, de alguma das partes, ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se sua credibilidade”). Em seguida, será identificada, prestará o compromisso e advertida do dever de falar a verdade. O compromisso consiste na promessa de prestar o seu depoimento, sob palavra de honra, de dizer a verdade sobre o que souber e lhe for indagado.
De cunho doutrinário, enfatize-se que o compromisso não integra as elementares do crime de falso testemunho, que somente incidirá quando do depoimento propriamente dito. As testemunhas têm o dever de dizer a verdade e o juiz deve adverti-las das penas do perjúrio. Ressalva há de ser feita em face das testemunhas que não prestam juramento, denominadas de informantes, como o deficiente mental, os menores de 14 anos (a lei deveria dizer menor de 18 anos, porque estes são inimputáveis), os doentes e também os familiares do acusado.
No Brasil não existe o juramento promissório, anterior ao depoimento, nem o juramento confirmatório, prestado depois, forma solene e de caráter religioso pela qual Deus é invocado como fiador da testemunha.
4. O depoimento. É o último ato da cadeia. Identificada, compromissada e advertida, a testemunha, por fim, prestará o depoimento, que é dividido em perguntas e reperguntas. A doutrina ao interpretar a redação do art. 212 é praticamente unânime em sustentar que foi afastado o sistema presidencialista de condução das audiências e adotado, exclusivamente, o sistema anglo-americano, denominado cross examination, em que os questionamentos das partes são feitos diretamente às testemunhas, ficando para o juiz os esclarecimentos remanescentes e o poder de fiscalização. No sistema presidencialista as perguntas e reperguntas são centralizadas na pessoa do juiz. Ele faz suas perguntas e as partes reperguntam através dele. Para citar alguns nomes que defendem esta interpretação: Damásio E. de Jesus, Fernando da Costa Tourinho Filho, René Ariel Dotti, Eugênio Pacelli de Oliveira, Fernando Capez, Antonio Magalhães Gomes Filho dentre outros. Filiamo-nos ao entendimento de Guilherme de Souza Nucci e Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto que pensam como nós.
5. A falsa aparência. Veremos que a modificação quanto às reperguntas não tem o condão de abranger as perguntas judiciais.
Pergunta 01 - Se o art. 212, histórica e tradicionalmente, cuidou exclusivamente das perguntas das partes (reperguntas ou reinquirição), qual o fundamento para concluir que o depoimento, por completo, foi atingido? Para nós, há equívoco nessa interpretação. O que a nova redação do art. 212 trouxe de inovador diz respeito às reperguntas, não mais do que isso. Pela análise detida dos dispositivos que compõem o capítulo “VI – Das Testemunhas”, esta conclusão é inevitável. E dois fundamentos sistêmicos a impõem. São os seguintes: a) a sequência lógica dos dispositivos dentro do microssistema do capítulo permaneceu inalterada; b) a reforma processual buscou identidade entre o procedimento comum e o do tribunal do júri, na fase de formação da culpa.
Detalhando:
a) Interpretação lógica e sistemática. A interpretação lógica ou racional pesquisa o espírito da disposição, dessume-se de fatores racionais, da gênese histórica, da conexão com outra norma e com o inteiro sistema. Já, na interpretação sistemática, o trabalho de comparação do intérprete vai mais longe, buscando a fixação de princípios norteadores do sistema, para, de seu confronto com a norma, dela extrair o significado que com eles se compatibilidade, segundo a lição do eminente desembargador Luiz Roldão de Freitas Gomes, no artigo “Norma Jurídica. Interpretação e Aplicação”, publicado pela Revista Dir. Procuradoria-Geral de Justiça RJ nº 31 – 1990.
O capítulo “VI – Das Testemunhas” com a disciplina, organização e estrutura inalteradas manteve a distinção no depoimento entre perguntas e reperguntas, pois a alteração não extrapolou as lindes do dispositivo alterado. Ao contrário, as perguntas judiciais restaram intocadas, incólumes, imodificadas. Manteve-se a sequência consistente em qualificação, compromisso, advertência e inquirição judicial. Após esta, as perguntas das partes dentro do sistema cross examination representam o próximo passo. Aqui a alteração, i.e., pela disciplina incorporada, as partes reperguntarão diretamente à testemunha (direct e cross examination – pergunta direta por quem arrolou e cruzada pela parte contrária), sem intermediação judicial, mas sob sua fiscalização, facultando-se ao juiz, na dúvida sobre algum ponto obscuro ou a ser esclarecido, formular outras perguntas, como último passo.
E por que esta conclusão? Os dispositivos do capítulo dão a resposta. No art. 203 o juiz cuida da qualificação, do compromisso e da advertência à testemunha; no art. 204 a oralidade deve ser o meio de execução do ato; e no art. 205 se dá a iniciação do depoimento (com ou sem dúvida sobre a identidade da testemunha). O art. 205 dispõe que: “Se ocorrer dúvida sobre a identidade da testemunha, o juiz procederá à verificação pelos meios ao seu alcance, podendo, entretanto, tomar-lhe o depoimento desde logo. (g.n.)”. Na dúvida sobre a identidade da testemunha, caberá ao juiz a verificação, determinando que lhe seja apresentado documento adequado. Sanada ou não a dúvida sobre a identificação da testemunha, o juiz tomará o depoimento desde logo. Pois bem, se persistir a dúvida sobre a identidade da testemunha, o juiz a inquire, com muito mais razão passará à sua inquirição estando certo de sua identidade.
Atente-se que no art. 205, a lei não utiliza a terminologia pergunta abraçada pelo art. 212, mas “tomada de depoimento”. Portanto, com a devida vênia, não houve exclusão do sistema presidencialista. A reforma processual penal afastou o presidencialismo, sim, mas para adotar um sistema misto ou eclético (presidencial quanto às perguntas do juiz e de pergunta direta ou cross examination para as partes), conhecido há muito nos debates dos julgamentos pelo tribunal do júri. Até porque a testemunha tem o dever de depor (art. 206).
Pergunta 02 – Reforçando e questionando: será que o art. 212 refere-se unicamente a perguntas das partes, doutrinariamente chamadas de reperguntas ou reinquirição? A resposta é afirmativa, sem permitir outras ilações. Não é outra a lição de Espínola Filho que, ao dissertar sobre o art. 212, ensina que “as partes teem, também, o direito de submeter perguntas às testemunhas. Por isso é que após a inquirição direta do juiz, êste lhes dá a palavra para as suas perguntas; chama-se, aliás impròpriamente, de reinquirição” (Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, vol. 3, p. 103). Frederico Marques, na mesma toada, leciona que após a qualificação e advertência “o próprio juiz fará indagações ao depoente, a que se seguirão as perguntas das partes ‘requeridas ao juiz’, o qual também é que as formulará à testemunha (artigo 212). Reinquire, em primeiro lugar, a parte que arrolou a testemunha, vindo depois as reperguntas da outra parte” (Elementos, vol. II, p. 312). Pela nova sistemática, a reinquirição será com perguntas diretas (da parte que arrolou – direct examination) e depois cruzadas (quando a parte contrária repergunta – cross examination).
Pergunta 03 - Mais uma indagação: se a novidade atingiu somente um de dois itens que compõem o depoimento – perguntas das partes –, por quê defender o fim do sistema presidencialista? Ora, a alteração de parte de um instituto não pode se estender ao todo, salvo se a norma expressamente consignar. E não é o que se extrai da redação do art. 212. Partindo de um exemplo, podemos compreender a melhor conclusão: na posse de um veículo antigo, seu proprietário decide trocar o motor por um de última geração. A mudança de motor afeta o restante do veículo, tais como rodas, direção, pneus e outros componentes? Logicamente, não. O automóvel permanecerá o mesmo, porém com performance muito superior. É o que ocorreu com a inovação legislativa no tocante às perguntas das partes que passaram a ser pelo sistema anglo-americano.
Ressalte-se que o novo método, misto, é muito superior ao anterior, propiciando maior agilidade e celeridade na produção da audiência de instrução e julgamento.
b) Uniformidade de procedimentos. A reforma processual alterou profundamente o rito atinente ao júri. E, como apontado acima, durante a fase do sumário da culpa as vítimas e testemunhas são inquiridas pelo sistema misto. A redação do art. 411 é clara: “Na audiência de instrução, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, se possível, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado e procedendo-se o debate”.
Questão: se o rito do júri adota o sistema misto, por quê não se supor que a voluntas legis teve em mira harmonizar os procedimentos em todas as perspectivas? O intuito do legislador foi o de uniformizar a coleta dos depoimentos nos distintos procedimentos, criando identidade única e facilitando o desempenho de todos os protagonistas na audiência de instrução.
6. O juiz e sua capacidade profissional. Um último argumento para reflexão. O juiz é preparado para os questionamentos, cioso na tomada dos depoimentos e da busca da verdade. A transferência de tamanha responsabilidade para a parte pode enfraquecer a colheita da prova. A preponderância de maior habilidade tenderá a beneficiar uma parte em detrimento da outra. E, visando a um tratamento igualitário e equilibrado das partes, estamos convencidos que a adoção do sistema misto é o melhor caminho.
Ainda que se interprete que o sistema cross examination foi adotado por completo, inexistirá nulidade na tomada dos depoimentos pelo sistema misto. É que não há nulidade sem prejuízo, em especial porque o juiz é pessoa talhada para tal desiderato.
Para ilustrar este convencimento sobre o sistema eclético, em nossa rotina diária de audiências, salvo uma única exceção, todos que militam nas Varas de Sorocaba, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, de forma unânime, pleitearam pela manutenção do sistema presidencialista, iniciando o juiz a inquirição da testemunha para, depois, passar-se à inquirição direta pelas partes.
Malgrado o entendimento ora esposado, o STJ em recente decisão, declarou nula audiência realizada sem observância ao sistema cross examination. O teor da decisão foi o seguinte:
HABEAS CORPUS. NULIDADE. RECLAMAÇÃO AJUIZADA NO TRIBUNAL IMPETRADO. JULGAMENTO IMPROCEDENTE. RECURSO INTERPOSTO EM RAZÃO DO RITO ADOTADO EM AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO. INVERSÃO NA ORDEM DE FORMULAÇÃO DAS PERGUNTAS. EXEGESE DO ART. 212 DO CPP, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI 11.690/2008. OFENSA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO.
1. A nova redação dada ao art. 212 do CPP, em vigor a partir de agosto de 2008, determina que as vítimas, testemunhas e o interrogado sejam perquiridos direta e primeiramente pela acusação e na sequência pela defesa, possibilitando ao magistrado complementar a inquirição quando entender necessários esclarecimentos.
2. Se o Tribunal admite que houve a inversão no mencionado ato, consignando que o Juízo Singular incorreu em error in procedendo, caracteriza constrangimento, por ofensa ao devido processo legal, sanável pela via do habeas corpus, o não acolhimento de reclamação referente à apontada nulidade.
3. A abolição do sistema presidencial, com a adoção do método acusatório, permite que a produção da prova oral seja realizada de maneira mais eficaz, diante da possibilidade do efetivo exame direto e cruzado do contexto das declarações colhidas, bem delineando as atividades de acusar, defender e julgar, razão pela qual é evidente o prejuízo quando o ato não é procedido da respectiva forma.
4. Ordem concedida para, confirmando a medida liminar, anular a audiência de instrução e julgamento reclamada e os demais atos subsequentes, determinando-se que outra seja realizada, nos moldes do contido no art. 212 do CPP. (HC 121216/DF, Relator Ministro Jorge Mussi, 5ª T., j. 19/05/2009, DJ 01/06/2009).
Esperamos, sinceramente, que seja repensado o decidido pelos integrantes daquela Corte e pelos demais Tribunais, eis que, s.m.j., esta decisão vulnera o microssistema contido no capítulo “VI – Das testemunhas”.
7. Esquema comparativo do sistema presidencialista para o de pergunta direta e cruzada e misto.
Sistema adotado |
Perguntas |
Reperguntas |
Respostas |
Fiscalização/ Complementação das perguntas |
Presidencialista CPP 1941 |
Pelo juiz (arts. 203 a 205) |
Através do juiz (antigo art. 212) |
Dirigidas ao juiz (antigo art. 212) |
Pelo juiz (antigo art. 212) |
Cross examination posição dominante Lei 11.690/08 |
Diretas pela parte que arrolou – sistema direct examination |
Diretas pela parte ex adversa – sistema cross examination |
Dirigidas à parte que pergunta |
Pelo juiz (art. 212) |
Sobre pontos a esclarecer |
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Misto Posição do autor Lei 11.690/08 |
Perguntas pelo juiz (arts. 203 a 205) |
Diretamente à testemunha, primeiro por quem arrolou - cross examination (art. 212) |
Respostas dirigidas ao juiz (art. 212) |
Pelo juiz (art. 212) |
Sobre pontos a esclarecer |
8. Conclusão. Compreendemos e aceitamos o entendimento exarado pela majoritária doutrina nacional, no entanto pedimos vênia para que sejam analisados os tópicos alvitrados neste trabalho como a contribuição de um pensamento diverso, mas que encontra na praxe forense, na interpretação lógico-sistemática dos dispositivos que compõem o microssistema do capítulo e na finalidade da Lei 11.689/08 elementos relevantes em sentido contrário.