329 - Tropa de Elite I

 

ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito

 

                    

Nesta terra tupiniquim onde os problemas multiplicam-se, talvez a maior preocupação das pessoas seja a insegurança coletiva diante da criminalidade sem controle, fenômeno de escala mundial, embora desigualmente distribuído. O filme “Tropa de Elite”, cuja continuação está no prelo, ilustra bem a questão.

 

Quem assiste ao filme, rotulando-o de fascista ou reacionário não enxerga o óbvio: a idéia é a de denúncia contra a violência policial, a corrupção miliciana e o “sistema que protege o sistema”. A julgar pelo histórico ideológico geral dos filmes brasileiros, poderia se passar por uma ovelha negra, mas não é.

 

Foi feito com nove milhões de reais de dinheiro público, dirigido por um cineasta cujo filme anterior é uma carta de declaração contra as desigualdades sociais, co-distribuído pelo magnata esquerdista Harvey Weinstein, baseado no livro de um célebre sociólogo esquerdista, ex-secretário de segurança pública e colega do MV Bill, escrito a partir de depoimentos de ex-policiais que saíram do BOPE exatamente para fazer carreira como civis denunciando os questionáveis abusos dos ex-colegas.

 

Há duas ou três décadas, a criminalidade era relativamente discreta, tanto em países ordeiros e ricos, quanto em partes da miserável África. Para alguns estudiosos, o processo de globalização (cujo matiz cultural é notoriamente americano) tem coincidido com a aceleração desse fenômeno, porque traz consigo um culto desenfreado do individualismo e da ausência de limites morais e um progressivo desenraizamento, com a perda do significado pessoal do trabalho. Nestes tristes trópicos, onde paira o subdesenvolvimento, tal alienação é exponenciada pela urbanização explosiva e sem controle, somada com o início da industrialização, estopim da migração rural, e o populismo político.

 

Vivemos uma época de erosão de valores e de estruturas (sobretudo das instituições). Chamado de pós-modernismo pelos entendidos, poderia ser apelidado de “pós-decadentismo”, típico das sociedades tradicionais em transição. Mas o facilitário de explicações composto pelas abstrações “sociedade” e “injustiça social”, bem nítidas no filme (sala de aula da faculdade x becos do morro da Babilônia), não justificam as aberrações de comportamento esperado das pessoas.

 

A “Sociologia Crítica” e a “Nova Criminologia” (que conferiam igual valor axiológico ao mundo do criminoso e ao mundo do cidadão ordeiro e cumpridor da lei, bem retratada no filme pelo episódio da aula de sociologia do professor Gusmão – “aqueles que, por sua condição, são compelidos a cometer delitos”) ajudaram a debilitação das defesas sociais.

 

Recordo-me que o esquerdista Tony Blair, em 1993, chutou o balde dessa retórica neolombrosiana ao reduzir a inimputabilidade penal da época (até dez anos de idade), para alcançar os dois garotos de dez anos que seqüestraram e mataram um outro de dois anos de idade. O ex-prefeito de Nova Iorque, Rudolf Giuliani, implantou o célebre sistema “tolerância zero” para os crimes e contravenções e o primeiro efeito foi a redução, em progressão geométrica, do número de crimes graves.

 

No ambiente do filme, consigo destacar a mensagem subliminar de que só há gente de bem nas ONGs (representada por Maria), mas não no seio da corporação policial: os policiais, como diz o Capitão Nascimento, omitem-se (Tenente-Coronel Estevão), corrompem-se (Capitão Oliveira), acovardam-se (Capitão Fábio) ou vão à luta (Matias e Neto) e quando o fazem, neste último caso, são assassinos em série, espancadores e torturadores, ainda que jejunos, a julgar pelos prosaicos petrechos de trabalho (sacos plásticos e cabo de vassoura), bem longe da tecnologia comunista no assunto.

 

O filme é insipidamente crítico quanto ao papel das organizações sociais e sua relação com criminosos, talvez porque seu foco não seja esse: a meu ver, o tiro de “sniper” certeiro de “Tropa de Elite” visa fazer a “caveira” da classe média-alta. A cena da passeata pela faculdade é bem significativa.

 

Usuária de entorpecentes, a classe média-alta traz para si o papel de mecenato do tráfico, pois adquire e aproveita-se dos serviços da mão-de-obra de favelados e de meninos de rua, estes compondo os “fogueteiros” dos morros. E uma pequena parcela dos pobres, mais uma vez, fica predisposta criminalmente pelas circunstâncias e cumprindo as ordens do sistema pervertido formado pelo oficialato da polícia militar (beneficiário dos “arregos” e “merendas”) e pelos traficantes.

 

Creio que um aggiornamento do sistema repressivo estatal poderá dificultar os desvios éticos retratados no filme. Acredito que nem uma polícia violenta nem legalização das drogas resolverão o problema. No entanto, penso que o resgate do mínimo ético de valores poderá ser o início do fim do problema, ao menos na magnitude verificada.

 

Afinal, não dá mais para ficar assistindo o asno multiforme representado pela corrupção policial e pela grande massa de usuários formada pela classe média-alta chocando o ovo da serpente do tráfico. Essa anomia representa um mau presságio para liberdade e, enquanto persiste, cria um estado de medo e pede, como remédio, um estado tirânico, o que ninguém quer.

 

 

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br).


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