330 - Tropa de Elite II
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
O filme retrata bem o universo do tráfico no morro: o “dono”, talvez o mais audacioso, acompanhado por um exército de delinquentes, todos favelados e meninos de rua, atuando como “fogueteiros” ou na linha de frente.
Num exame superficial, poderia ser concluído que tais criminosos seriam vítimas exclusivamente das circunstâncias, movidos por uma mecânica sociológica que exclui o elemento volitivo da ação. Muito pelo contrário, como disse o Capitão Nascimento a respeito de Baiano, o dono do morro, “ele deve ter tido uma infância do (...), mas traficante é traficante.”
Em política criminal, a autodesignada corrente moderna defende tal idéia. Entende que existe uma relação determinística entre as condições socioeconômicas do agente e a infração. Assim, se o crime é mero produto das injunções materiais que cercam o indivíduo, não há espaço para o livre-arbítrio. A culpabilidade deixa a esfera individual e migra para a coletividade, responsável pelas injustiças sociais, já que, na essência, o homem seria naturalmente bom.
Penso que, no fundo, o homem se parece bem mais com a noção de Kant que com a de Rousseau. O homem não é naturalmente bom. Não é a sociedade que o estraga e corrompe. É exatamente o contrário: o homem é naturalmente capaz de ser mau e é a sociedade que, às vezes, consegue corrigir, por intermédio das leis e instituições, essa permanente possibilidade de mal absoluto que existe no homem.
Embora o esnobismo intelectual sustente a inexistência de um mal absoluto e considere politicamente correto enxergar em todas as coisas uma coexistência do Bem e do Mal, a história já deu seus exemplos de perversidade total. Não é possível ver no Holocausto, nos Gulags stalinistas, nos massacres do Khmer Vermelho, nas guerras fratricidas africanas, na limpeza étnica na Bósnia e na obsessão sanguinária do terrorismo islâmico algo de malignamente relativo.
A propósito, Hannah Arendt escreveu que se é verdade que, nos estágios finais do totalitarismo, surge um mal absoluto (absoluto, porque já não pode ser atribuído a motivos humanamente compreensíveis), também é verdade que, sem ele, poderíamos nunca ter conhecido a natureza realmente radical do Mal (in Origens do Totalitarismo; São Paulo; Companhia das Artes; p.12).
Há espaço para o elemento volitivo na promiscuidade de um barraco, na angústia da fome, no desespero da orfandade, no ocaso do analfabetismo, na visão de um porvir sem redenção. Tais fatores condicionam a liberdade volitiva e não a arregimentam por completo, até porque a soberania da vontade também não é pura.
Por evidente que as condições limitam a vontade e conformam seu exercício, não é menos veraz que de nenhum modo substituem a própria vontade no conteúdo nuclear da ação. As condicionantes têm o poder de dizer à vontade como ela pode se manifestar, mas não têm o poder de determinar o que ela deve ser.
Qualquer teoria que ponha as adversidades materiais além do limite de meras condições predisponentes não tem substrato estatístico. Uma observação isenta da realidade mostra que não são raros os casos de rapinantes e extorsionários procedentes de equilibrada atmosfera socioeconômica. Em Brasília, há um monte deles...
O equívoco de tal corrente não passa de um mal assimilado materialismo-dialético, pois o próprio Marx, criticando a filosofia de direito de Hegel, afirma que não é a história que faz acontecer, mas o homem real e vivo que persegue seus próprios fins. Ou seja, o homem não é um fruto das resultantes das forças econômicas que acorrentam seu espírito.
A prevalecer a lógica determinante, o socioeconomicamente inferiorizado, por não ser dotado de liberdade primária de consciência, não tem, logo, genuína liberdade de pensamento, de opção religiosa ou política.
Esta desarrazoada teoria empresta justificação, por outro lado, ao dogma nuclear da concepção aristocrática de governo, pois, reduzida pela miséria à incapacidade de diferenciar entre o avesso e o direito e o certo e o errado, a massa deve ser colocada sob curatela. A intelligentsia refletirá, decidirá e falará por ela. E o povo não sofrerá com isso, porque quem não tem liberdade de consciência, não tem consciência da liberdade.
A miséria predispõe ao crime, mas não o engendra mecanicamente. O livre-arbítrio é o fator determinante. Para a grande maioria das pessoas, é o fator de sublimação da predisposição negativa (em linguagem psicanalítica). Para uma inexpressiva minoria, é o fator de rendição às tentações do meio socioeconômico. Afinal, como sentenciou o Capitão Nascimento, traficante é traficante, porque quis ser traficante.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br)