341 - A inviolabilidade do advogado e as buscas em escritórios de advocacia

 

MARCO ANTONIO MARQUES DA SILVA - Desembargador

 

 

A inviolabilidade do advogado, que deveria ser absoluta, até para garantia e respeito ao Estado Democrático de Direito, foi por vezes desprezada de várias formas

 

A dignidade da pessoa humana é o reconhecimento constitucional dos limites da esfera de intervenção do Estado na vida do cidadão, e por esta razão os direitos fundamentais, no âmbito do poder de punir do Estado, dela decorrem.

 

Assim, o acesso à Justiça, como direito fundamental, para ser pleno e eficaz, deve ter assegurada a defesa técnica por operadores de direito habilitados para esses mister.

 

A Constituição Federal Brasileira, no artigo 133, dispõe que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos termos da lei”.

 

Alem disso, na legislação ordinária brasileira está explícito que o advogado deve “ter respeitada, em nome da liberdade de defesa e do sigilo profissional, a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, de seus arquivos e dados, de sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas ou afins, salvo caso de busca e apreensão determinada por magistrado e acompanhada de representante da OAB” (artigo 7º, inciso II, da Lei 8906/94).

 

Entretanto, essa inviolabilidade por vezes é questionada por órgãos policiais, inclusive por membros do Ministério Público, que atribuem aos advogados privilégios ilegais; sugerem alguns afronta ao princípio da isonomia, podendo ser um impedimento às investigações.

 

A mencionada inviolabilidade que deveria ser absoluta, até para garantia e respeito ao Estado Democrático de Direito, acabou sendo desprezada em certas ocasiões.

 

Primeiro, através de interceptações telefônicas e utilização das conversas privadas entre advogado-cliente como meio de prova desfavorável ao averiguado. Segundo, por intermédio de invasões de escritórios de advocacia, colocando em risco a privacidade que deveria nortear a relação com os contratantes.

 

Esses acontecimentos geraram uma revolta da classe dos advogados, pois ações desnecessárias de polícia judiciária puseram em risco o exercício da profissão; colocaram uma infundada suspeita sobres os advogados, que passaram a ser considerados criminosos.

No Estado Democrático de Direito não se pode admitir tamanho abuso. As instituições públicas devem ser fortes o suficiente para compreender que podem desenvolver com eficiência a sua missão de investigar, processar e julgar condutas criminosas sem ferir a ética, sem desrespeitar as leis e sem aniquilar o direito de defesa, em especial a livre atuação do advogado.

 

O ponto básico do reconhecimento do direito à liberdade, no sentido apresentado, decorre do fundamento da dignidade humana, sendo qualquer excesso por parte do poder público odioso.

 

Muitos dos advogados que tiveram seus escritórios invadidos não cometeram crimes: raramente estavam envolvidos nos fatos criminosos apurados. Apenas patrocinavam os interesses, de forma profissional, de algum investigado.

 

A contrario sensu, aqueles advogados que estiverem envolvidos em crimes não possuem o direito de inviolabilidade absoluta, porque não se pode confundir atuação com qualificação profissional. Esta qualificação, de per si, não é significado de isenção de responsabilidade ou impunidade.

 

Em face dessas ocorrências, houve uma mobilização da Ordem dos Advogados do Brasil, sendo editada a Lei 11.767/2008, que alterou o artigo 7º do Estatuto da Advocacia, com o intuito de fazer se respeitar a inviolabilidade do local e dos instrumentos de trabalho do advogado, não importando se em escritório próprio e/ou em departamento jurídico interno de empresa, já que a lei não fez qualquer distinção.

 

Além desta inviolabilidade específica, atualmente declarada por Lei Ordinária, a Constituição Federal Brasileira já dispunha no seu artigo 5º, incisos X e XI, a garantia da inviolabilidade e intimidade do domicílio dos cidadãos.

 

Para fins dessa inviolabilidade, os escritórios de advocacia hão de ser acobertados e considerados locais não abertos ao público, onde se exerce lícita profissão (Código Penal Brasileiro, artigo 150, § 4º, III).

 

Em boa hora foi promulgada a nova legislação, impondo a “inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercícios da advocacia”.

 

A única hipótese para a relativização da inviolabilidade é, no caso do advogado, ser autor de crime. Não há possibilidade de extensão in malan partem, como o que genericamente se praticara.

 

Especificamente, diga-se que o § 6º e o inciso II do artigo 7º da Lei 8906/1994 – que são normas válidas e vigentes no ordenamento jurídico brasileiro – não violam o princípio da isonomia consagrado pelo caput do artigo 5º da Constituição Brasileira.

 

A norma sob enfoque abrange uma categoria de pessoas: os advogados. Além disso, adota como critério discriminador o exercício da profissão de advogado, que é tido pela Constituição Federal como função essencial à Justiça (artigo 133).

 

Assim, a busca e apreensão efetivada em desacordo com a lei passa a ser tida como prova proibida, indevida e de uso vedado (Supremo Tribunal Federal Brasileiro, Habeas Corpus nº 90376, relator ministro Celso de Mello).

 

Inviável qualquer tentativa de mitigação da inviolabilidade e do sigilo profissional do advogado, porque afrontaria diretamente o princípio da legalidade.

 

A esse respeito já escrevemos que o princípio da legalidade é, no Estado Democrático de Direito, consequência direta do fundamento da dignidade da pessoa humana, pois remonta à ideia de proteção e desenvolvimento da pessoa, que o tem como referencial.

 

Não nos esqueçamos que o uso do poder é lícito. Seu abuso é que é ilícito. Todo o ato resultante de abuso é intolerável e não pode e nem deve ser admitido, por excesso ou desvio de poder.

 

Portanto, caso seja realizada alguma diligência, uma busca e apreensão sem os requisitos exigidos pela lei, a prova colhida será considerada como obtida por meios ilícitos, em violação a regra constitucional.

 

A Carta Magna Brasileira é taxativa (artigo 5º, inciso LVI): qualquer violação, inobstante a fonte e a forma, é qualificada como ilícita. É o que também se vê implementado pelo artigo 11 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que hoje integra o ordenamento jurídico brasileiro.

 

À guisa de conclusão, anotamos que a inviolabilidade do advogado deve ser sempre preservada e prestigiada, sob pena de se colocar em risco o Estado Democrático de Direito e a própria essência da Justiça.

 


Marco Antonio Marques da Silva
é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor titular de Processo Penal da PUC/SP.


(Artigo originariamente publicado no Boletim da Ordem dos Advogados de Portugal  nº 65 - Abril de 2010).


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