347 - Ética indolor
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
Hoje, nossa cultura tem sido influenciada por dois extremos que, ao meu ver, não ajudam a bem compreendê-la: de um lado, o discurso social alarmista que lamenta o fim da moral e, de outro, a manifestação festiva e cínica deste fato. A cultura da autodeterminação narcisista não submeteu a esfera da moral às forças de um egoísmo impetuoso, mas a deslocou para uma variante muito sutil, a de uma moral sem deveres. Em voga, estão a caridade sem obrigação, o altruísmo indolor e a ética mínima da solidariedade compatíveis, é claro, com a primazia do eu. A dúvida reside na sustentabilidade dessa versão light da moral.
Não faz muito tempo, a sociedade buscava incessantemente sua libertação de tudo que representasse um passado moralista, porquanto se tratava de puro farisaísmo, efeito colateral da repressão burguesa reinante. De repente, por toda parte, assiste-se a uma louvável onda de imperativos éticos: luta contra a corrupção, proteção ao meio ambiente, ações humanitárias, códigos de linguagem não discriminatórios, chamamentos à responsabilidade e ética corporativa. Os cantores de música oferecem seus decibéis ao mais necessitados e os artistas partem para ações de generosidade. Tal efervescência ética é tão plural que permitiu a restauração de antigos deveres, porque “já não é obrigatório ser liberal em tudo”.
No entanto, causa-me a impressão de que a noção de dever absoluto e toda construção teórica que a cortejava desapareceu completamente. Ninguém quer mudar as coisas substancialmente, mas todos estão dispostos a corrigir a superfície. Do mesmo modo que a sociedade moderna erradicou os matizes arbitrários do poder político, também desqualificou de vez a imposição de normas austeras e disciplinadoras sobre o comportamento dos indivíduos. A era pós moralista não é transgressiva nem acanhada, é apenas “correta”.
A nova moral é uma ocupação privada justificada desde o momento em que não existam causas públicas que demandem algum holocausto pessoal. Cuida-se de um cosmético que ao menos torna mais gratificante sua apresentação externa, de sorte que todos os novos imperativos categóricos devem ter tal caráter embelezador. Aí está o berço da nova moral doméstica, do hedonismo ecológico, da obsessão pelo visual estético. No lugar de uma teia de relações e dependências inerentes às sociedades tradicionais ou até mesmo revolucionárias, existe, hoje, uma justaposição de indivíduos soberanos ocupados diuturnamente com a administração de sua qualidade de vida, com a otimização da gestão do eu.
Nessa ótica, é importante não depender do outro, a fim de se construir um ethos de autosuficiência e de autotutela, típico de uma época em que o próximo é muito mais um perigo ou uma moléstia do que um elo de atração. Por isso, o preservativo tem um caráter emblemático e, porque não dizer, paradoxal e transcendental. Trata-se de um envoltório que protege o indivíduo que não quer se comprometer com nada, porém deseja relacionar-se com o todo. É um dos símbolos de uma cultura que, sobre o manto de uma simpatia universal, esconde uma sensação de incômodo ante a presença ameaçadora dos outros. Equivale a uma situação de guerra de todos contra todos onde os combatentes foram privados de uma arma mortífera e só podem agir defensivamente.
Essa é a imagem do outro que fica no subconsciente das pessoas. Como exemplo, tome-se o bombardeio de propaganda contra a indústria do tabaco e a transmissão da AIDS, ainda que, de per se, a ação seja positiva. Quem é o próximo? O próximo reduz-se a um ser fumante e contagioso. O que é a sociedade? Um mero sistema de compartimentos estanques que permite somente o trato e a comunicação impessoais.
E o outro? Fica relegado ao ostracismo? O outro merece a devida atenção sempre e quando não se pretenda ir mais além de um altruísmo indolor. Não é a toa que nunca se exibiram tantas realidades inadmissíveis, numa espécie de convocação à solidariedade, acompanhada de uma linguagem de reprovação. Entretanto, tal êxtase de alteridade é epidérmica e pontual, pois é somente uma identificação superficial com o outro, devido à repugnância do espetáculo do sofrimento alheio. Um compromisso moderado e distante, sendo suficiente um gesto de indignação para que a consciência não fique dolorida.
Se todo um discurso moral limita-se à ótica narcisista, não há como se justificar o menor sacrifício. O problema do sacrifício (decorrente do dever) é um dos temas centrais da ética. O sacrifício é razoável, ainda que soe como um profundo mistério. É uma ingenuidade pensar que se pode amar alguém, repartir os recursos escassos, tolerar as idéias contrárias ou proteger o meio ambiente sem carregar sobre si toda uma série de inconvenientes presentes e futuros, leia-se, sem algum gênero de sacrifício.
Os homens ouvem as vozes dos seres que o rodeiam e é próprio do ser humano sentir-se obrigado por essas vozes. Elas são ouvidas, porque o homem é dotado de inteligência, a qual rompe o cerco da psicologia instintiva. Surge o dever de respeito por tais vozes e descobre-se que elas não existem apenas em função das necessidades do outro, mas existem por si mesmas e também têm necessidades profundas (e não superficiais). Eis o sentido do dever.
A ética indolor exige do homem muito e, ao mesmo tempo, muito pouco. Muito pouco, porque não o obriga a encarar as contingências da vida, nem o exorta ao dever e à responsabilidade. Muito, pois o abandona em seus medos e o deixa sozinho ante a necessidade de orientação, desconhecendo a debilidade de sua natureza.
O ser humano tem o particular atributo de ser incapaz de viver sem deveres, os quais são, por sua vez, necessárias limitações de sua liberdade e protetores de sua fragilidade. Por isso, a apoteose do eu não causa uma eliminação da moral, mas apenas sua modificação. Como a energia, os deveres não se eliminam, transformam-se. Motivo pelo qual o assento dos deveres nunca está vacante. Mas nem sempre está ocupado pelos mais razoáveis.
André Gonçalves Fernandes é juiz de direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br).