349 - Questões filosóficas e dogmáticas sobre Biossegurança e Genética
GLÁUCIO ROBERTO BRITTES DE ARAÚJO – Juiz de Direito
A dignidade da pessoa humana pressupõe o homem como pessoa e não apenas como cidadão, com uma esfera de ação que delimita o poder estatal. Trata-se de um valor único e incondicionado de todo indivíduo, independentemente de qualquer qualidade acessória, que se manifesta na autodeterminação consciente e responsável da própria vida. Não se cuida de criação do legislador, mas de dado anterior, segundo princípio de justiça material, cujo respeito condiciona a legitimidade da intervenção penal, assim como os princípios da exclusiva proteção de bens, da intervenção mínima e da proporcionalidade das penas. A dignidade da pessoa humana não é apenas um bem jurídico a ser tutelado, no tocante às manipulações genéticas, mas fundamento da ordem jurídica e valor de transcendência filosófico-jurídica a orientar uma ponderação de interesses. Conclui-se que tal dignidade não é um interesse a mais no conflito, mas fundamento do Estado de Direito e valor supremo que oferece substrato aos direitos fundamentais, servindo de guia da funcionalidade do sistema. Como marco axiológico da CF de 88, legitima a tutela penal de interesses emergentes, como a identidade genética e a inalterabilidade do patrimônio genético humano perante o uso abusivo da engenharia genética.
Analisadas as posições divergentes, ousamos comungar da idéia de que quanto mais se desenvolve o ser humano, mais elevado deve ser o nível de proteção, pois maior importância terá a vida (aspecto valorativo) para dar lugar a uma pessoa (ontológico). Tais diretrizes justificariam penas maiores para o homicídio do que para o aborto. O embrião e o feto seriam considerados pessoa, mas a nova etapa da vida (independente), por força do nascimento, exigiria proteção mais efetiva, pois passaria a ter significado especial, qual seja, a dignidade.
Reputamos mais apropriada tal teoria genético-desenvolvimentista do que a concepcista (vida humana existente desde a concepção) para responder aos dilemas oriundos da engenharia genética, viabilizando a compreensão do pré-embrião (ser humano em formação entre a concepção e o décimo quarto dia), à luz da idéia de progresso qualitativo, para distinção axiológica que repercutirá na elaboração e aplicação de normas. Nessa linha de pensamento, a nidação (fixação na parede do útero materno, iniciando a gestação) supõe incremento da condição humana, com alterações tão relevantes como aquelas ocorridas no parto. A nidação distinguirá este pré-embrião daquele que permaneceria anos no laboratório, sem jamais se converter em pessoa. Desponta evidente, portanto, a importância de tal fenômeno para delimitar legalmente a manipulação genética.
Na fase de embrião pré-implantatório, ainda não existe pessoa moral, a qual dependerá da unicidade definitiva da etapa da nidação, quando não se tratará mais de um conglomerado de células, mas de um ser singular e indivisível. Desde a concepção existe uma forma de vida pela própria natureza das coisas, mas não uma pessoa com dignidade inerente. Então, seria admissível a manipulação para fins terapêuticos, sem violação à dignidade da pessoa humana, à pluralidade e ao patrimônio genético da humanidade. Nessa ordem de idéias, o emprego de células-tronco de origem embrionária, extraídas de embriões sobrantes da reprodução assistida, para investigar cura de enfermidades não atentaria contra a vida humana. Entendemos que justamente a ausência de tratamento eficaz violaria aquela dignidade. Consoante tal orientação, o uso de células-tronco para tratar o mal de Parkinson e diabetes, por exemplo, estaria autorizado pela Lei de Biossegurança, sem atentar contra a Carta Magna.
A opção pelos fins terapêuticos, em conformidade com o direito à vida e à saúde, em detrimento do mero congelamento inútil ou da destruição dos embriões sobrantes da reprodução assistida, condiz com os princípios constitucionais e demais normas do ordenamento pátrio. Para coibir abusos, no entanto, são necessários requisitos, como investigação cabalmente justificada, exaurimento de métodos alternativos e observância de número menor possível de embriões. Por tais razões, ao rechaçar a tese de inconstitucionalidade do art. 5, da Lei de Biossegurança, o Supremo Tribunal Federal zelou pela efetividade dos preceitos constitucionais, não se divorciou da realidade dinâmica, do interesse social e do equilíbrio no enfrentamento de questões tão complexas e relevantes.
Alguns estudiosos ousam defender até mesmo a licitude da criação de pré-embriões com código genético idêntico ao do doador para transplante de órgãos e tecidos na cura de enfermidades graves e disfunções, sem risco de rejeição. Sustenta-se que não haveria razões lógico-jurídicas para valorações distintas das duas situações, impondo-se a admissão tanto do uso de embriões sobrantes para fins terapêuticos, como da criação com o mesmo desiderato. A tutela da vida e da dignidade dos pacientes refutaria a idéia de instrumentalização do ser humano, mais precisamente do embrião.
Quanto às infrações penais, é forçoso interpretar o art. 24, da Lei 11.105/2005, que tipificou a utilização de embrião humano em desacordo com seu art. 5, à luz das premissas acima expostas. Nesse diapasão, devemos entender também que, se a conduta estiver de acordo com este preceito, será atípica e não simplesmente lícita. Não haveria, propriamente, excludente de antijuricidade. Ao aproveitar os citados pré-embriões, segundo a noção de que ainda não haveria ser humano tutelado, o agente não estaria praticando crime e não apenas realizando ato típico, mas jurídico.
A técnica legislativa peculiar adotada por nosso legislador, remetendo a compreensão exata do tipo à aplicação de outro dispositivo, requer cautela e exegese restritiva. Não estão expressamente descritos no art. 24, da Lei de Biossegurança, todos os atos típicos, como seria auspicioso para observar, com rigor, a legalidade, a taxatividade e a segurança jurídica. Isto ocorre, contudo, em razão da natureza, da complexidade e dos aspectos dinâmicos da matéria tratada.
O art. 5, da Lei de Biossegurança, cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo STF, permite a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no procedimento, desde que inviáveis ou congelados há três anos ou mais da data da publicação da lei ou, já estando congelados, depois de completarem três anos mediante consentimento dos genitores e submissão dos projetos à aprovação dos comitês de ética em pesquisa. Os viáveis também devem ser sobrantes. Não deveriam ter sido estipulados prazos, quando não há sequer definição de outro destino mais apropriado aos embriões. De qualquer modo, nestas condições, o aproveitamento de embriões não caracterizaria crime e não atentaria contra o direito à vida.
Percebe-se, então, a já aludida graduação na proteção jurídica, mais intensa para pré-embriões in útero para procriação do que para os congelados. Na ponderação dos interesses em conflito, optou-se pela saúde do indivíduo em detrimento da crioconservação por tempo indefinido ou da mera destruição dos embriões. Entendemos, inclusive, inconvenientes as limitações ao uso dos embriões viáveis consistentes nos prazos estipulados, que, no futuro, comprometerão o aproveitamento e não propiciarão solução razoável para sua destinação. A par de sua utilidade provisória, a disposição não encontra fundamento científico ou jurídico, por não haver diferença ontológica entre os embriões congelados por mais de três anos e os demais.
De outro giro, divergimos dos adeptos desta corrente no tocante à opinião de que o uso irregular de pré-embriões não deveria ter sido tipificado como delito, a fim de se observar o princípio da intervenção mínima. A despeito do inconveniente de se classificar uma manipulação como fiel a todas as condições estabelecidas na lei ou como crime, entendemos que a intervenção penal é indispensável, diante do desconhecimento de todos os riscos da atividade, que devem ser assumidos, ademais, por seus condutores. Não obstante convincentes as ponderações de Figueiredo Dias sobre a insuficiência do Direito Penal clássico e as desvantagens de sua ampliação, na sociedade de riscos, com antecipação da incriminação, criação de tipos de perigo abstrato e recurso a normas penas em branco, não vislumbramos outro tratamento dogmático proposto, com eficácia testada, para lidar com os sérios desafios impostos pelos avanços da biotecnologia.
O artigo 25, da Lei de Biossegurança, por sua vez, tipifica a engenharia genética em célula germinal, zigoto ou embrião humano. O bem jurídico tem dupla perspectiva: individual, referente à integridade genética do genótipo (embrião, feto ou nascido), e coletiva, consistente na inalterabilidade do patrimônio genético da espécie humana. O crime é comum e os sujeitos passivos são ser e coletividade. A conduta vedada é a intervenção direta em genes humanos, com alteração na estrutura genética dos cromossomos. Engloba a terapia gênica e as modificações experimentais. A expressão “germinais” é relevante, pois as alterações nas células somáticas não se transmitem às gerações posteriores. Elogia-se a inclusão do embrião humano no tipo, pois a manipulação deste implicaria a das células totipotentes. Estão excluídas, então, as técnicas de reprodução assistida, por não compreenderem alteração da carga genética, mas apenas sua fusão. O tipo subjetivo é o dolo. O delito é de mera atividade e de perigo abstrato, descabendo a tentativa. A competência é da Justiça Estadual, a ação é pública condicionada e cabe a suspensão condicional do processo.
A terceira infração penal é a clonagem humana do artigo 26, da Lei de Biossegurança. Tutela-se a identidade e a irrepetibilidade do ser humano, além da proteção indireta da inalterabilidade do patrimônio genético da humanidade. O crime é comum. Os sujeitos passivos são o clone e a coletividade. O objeto material são os gametas e embriões. O elemento normativo do tipo de injusto é um processo de reprodução assexuada, baseada em um único patrimônio genético, com ou sem as técnicas da engenharia genética. Clonagem é a transferência nuclear celular para criar um ser com o mesmo código genético de outro, vivo ou morto.
Neste ponto, a lei deveria ter especificado o tipo de clonagem vedado, pois ela pode ser reprodutiva ou terapêutica. Impõe-se, nesse contexto, a interpretação restritiva no sentido de que o tipo se refere à clonagem reprodutiva. Ela não deve ser confundida, ademais, com a manipulação genética, pois trabalha desde o início com quarenta e seis cromossomos já combinados e não com a soma dos vinte e três de cada progenitor.
As três objeções principais à clonagem reprodutiva são: a negação da alteridade do clone, a instrumentalização negativa da pessoa e o determinismo negativo da autonomia. Vale dizer, o problema não é apenas a coincidência do genoma, mas a criação do ser humano para fim estranho a ele mesmo e com imposição de uma identidade genética, além dos riscos de eugenia e de dano irreversível à espécie humana. Outrossim, o método atenta contra o direito a pais biológicos e a uma dotação genética única. O tipo subjetivo é o dolo direto ou eventual. É delito de resultado, comportando a tentativa. A pena não observa a princípio da proporcionalidade, ante a gravidade da infração, sobretudo à luz das reprimendas cominadas às demais. A competência é estadual e a ação é penal pública incondicionada.
Em suma, andou bem o legislador pátrio, ao tipificar a clonagem humana, sem ambigüidades da lei anterior, pressupondo-a como duplicação de material genético, que pode decorrer de engenharia molecular, mediante duplicação de genes provenientes das moléculas de DNA, através de bactérias, ou da engenharia não molecular, que parte de celular germinal feminina e pré-embrião para a criação de seres com genótipo idêntico. A clonagem reprodutiva é proibida, pois afronta a irrepetibilidade do genótipo pessoal e, coletivamente, a diversidade genética da humanidade, que a preserva contra enfermidades contagiosas e outros agentes aos quais viesse a existir vulnerabilidade geral em razão da identidade de código genético. Todavia, se se conceber típica também a clonagem terapêutica, cuja sanção teria a mesma intensidade da reprodutiva, seria forçoso concluir pela inobservância do princípio da proporcionalidade, pois tais ataques ao bem jurídico são, substancialmente, diferentes, merecendo tratamento peculiar sob o prisma axiológico.
Relevante ainda a distinção entre criação para experimentação e com propósitos terapêuticos, justificando-se um tipo penal próprio apenas para as atividades da primeira espécie. No tocante à colidência entre a vida do pré-embrião clonado para fins terapêuticos e a do ser humano nascido vigora a premissa de que, independentemente de elevar o primeiro à condição de pessoa, o ser recebe tutela jurídica desde a fecundação, tanto que o aborto é tipificado, na legislação pátria, embora com exceções. Por conseguinte, a clonagem humana terapêutica, se considerada conduta típica, poderia ter a ilicitude excluída ao menos por estado de necessidade, na hipótese de aproveitamento e transplante de células-tronco para tratamento e cura do respectivo paciente, sugestão que exigiria, em contrapartida, controle rígido das autoridades em todas etapas do procedimento.
O artigo 28, da Lei de Biossegurança, estabelece o crime de liberar ou descartar OGM no meio ambiente, em desacordo com as normas da CNTBio e órgãos de registro e fiscalização. A proteção é conferida ao meio ambiente e, cumulativamente ou alternativamente, à vida e à saúde dos seres humanos. O crime é comum e o sujeito passivo é a coletividade. A liberação pressupõe a utilização confinada em laboratório, com fins não comerciais. O descarte, por sua vez, não contém o escopo de interação com o ambiente. São crimes de mera atividade e de perigo abstrato. Não admitem a tentativa. O tipo é misto cumulativo. O crime pode ser comissivo, como, por exemplo, na ausência de controle pelo responsável da fonte de perigo, ou seja, o garante não adota as medidas para contenção de OGMs, estando em condição de fazê-lo.
Seria atípica, de outro giro, a liberação de derivados de OGMs, que não possuem capacidade autônoma de replicação e não geram riscos para a biodiversidade. Outrossim, trata-se lei penal em branco, cuja complementação depende de outros órgãos. Incide o princípio da coordenação, no sentido de que os estatutos penal e administrativo devem estar coordenados para evitar o cruzamento de competências e facilitar a aplicação de ambas, não se cogitando de inconstitucionalidade das exigências das CNTBio por contarem com expressa referencia no tipo penal. O tipo subjetivo é o dolo, admitindo-se causa justificante.
As hipóteses de dano à propriedade alheia ou ao meio ambiente e de lesão corporal de natureza grave ou morte constituem causa de aumento de pena. As formas qualificadas são pluriofensivas (atingem mais de um bem jurídico) e reclamam dano, merecendo críticas, todavia, a ausência de descrição taxativa de todas suas possibilidades. Seriam convenientes, ademais, sanções mais rigorosas para as condutas dolosas com resultado grave. O Ministério Público tem legitimidade ativa. A competência é estadual. O sursis processual é possível somente para a conduta do caput.
Veda-se, ainda, utilização, comercialização, registro, patente ou licença de tecnologias genéticas de restrição do uso. A par do risco da biosservidão, que compeliria agricultores ao uso de OGMs e à compra de sementes do detentor da licença, aumentando custos e eliminando os pequenos profissionais, poderia surgir a dependência química das sementes, com a redução da diversidade genética. O tipo penal tutela o meio ambiente. O crime é comum e o sujeito passivo é a coletividade. As tecnologias referidas são processos de intervenção humana para geração ou multiplicação de plantas geneticamente modificadas para produzir estruturas reprodutivas estéreis, bem como qualquer forma de manipulação que vise à ativação ou desativação de genes relacionados à fertilidade das plantas por indutores químicos externos. A tentativa é admissível, salvo para a utilização, pois, segundo alguns autores, seria unissubsistente (o ato de inicio já configura utilização). O tipo poderia se restringir às ações de usar e comercializar, pois as demais, sujeitas ao controle da autoridade, estariam incluídas na proibição genérica do art. 6, da Lei de Biossegurança. O tipo é misto alternativo e não comporta a modalidade culposa.
Nesta seara, desponta evidente a manifestação do princípio da precaução, que enseja medidas preventivas, na hipótese de falta de dados ou de incerteza científica, quando há suspeita de risco, não mais “permitido”. Não se confunde com o princípio da prevenção, pois aquele compreende o risco do risco e este apenas o risco provável (riscos já conhecidos). Neste ponto, surge o problema da compatibilidade com os princípios da lesividade e da intervenção mínima do Direito Penal. Por isso alguns entendem que o princípio da precaução somente poderia ser acolhido por outros ramos do direito, exigindo a previsibilidade para a intervenção penal. O conceito de OGM não inclui a introdução direta de material hereditário, sem utilização de moléculas de ADN / ARN.
Por fim, o artigo 29, da Lei de Biossegurança, tipifica a produção, armazenamento, transporte, comercialização, importação ou exportação de OGM ou seus derivados, sem autorização ou em desacordo com as normas estabelecidas pela CNTBio e pelos órgãos de registro e fiscalização. Tutela-se o meio ambiente, o crime é comum e o sujeito passivo é a coletividade. O OGM é o organismo com nova combinação genética resultante da engenharia genética. Trata-se de elemento normativo jurídico do tipo de injusto. Cuida-se de norma penal em branco. Nas modalidades de “transportar” e “armazenar” o crime é permanente. Nas demais a consumação ocorre com a prática da conduta, admitindo-se a tentativa. Teria sido adequada a inclusão da ação de cultivar, cuja amplitude é diversa da de produzir, como se extrai do art. 1, da própria lei. A pena, infelizmente, é ínfima, ante a possibilidade de produção de microorganismo mortal, como arma biológica. O tipo é misto alternativo. A competência é dos Juizados Especiais Criminais. A ação penal é pública incondicionada e se admite o sursis processual.
Há quem argumente não haver informação necessária para justificar a criminalização das condutas relacionadas ao OGM, pois não houve consolidação necessária no corpo social entre conduta e valor (meio ambiente e saúde). Reconhecemos, contudo, novas e complexas situações de perigo, neste ramo, justificando-se a intervenção penal, embora nem todas atividades com OGM estejam sujeitas às mesmas obrigações, variando conforme o risco.
No tocante à técnica empregada, a precisão dos enunciados dos tipos para observar o princípio da taxatividade, por vezes, compromete do da legalidade em virtude da alta especificidade da matéria. O Biodireito não pode prescindir da referência a fenômenos como ADN/ARN recombinante, clonagem, distanasia, transdução, in vitro, etc. A Lei 8.974/95, com normas de hermenêutica, não obteve o equilíbrio desejado entre taxatividade e clareza. No mesmo sentido a Instrução n º 8 não resolveu tal problema. A Lei 11.105/05, então, além de responder a interesses científicos e econômicos, pretendeu satisfazer exigências de legalidade, taxatividade e clareza. A interpretação da lei comporta duas etapas: a primeira para o conhecimento do fragmento da realidade específico, que implica o domínio da linguagem técnica, e a segunda para compreensão da valoração feita pelo legislador.
Nossa Lei de Biossegurança, no geral, adotou patamares para as sanções incompatíveis com os de outros diplomas, como os do art. 273, par. 1, do CP (venda de cosméticos ou saneantes falsificados), provocando nítida violação do principio da proporcionalidade. O bem jurídico supra-individual de suma e transcendente relevância é, na verdade, desconsiderado axiologicamente pelo legislador. Tal tutela deficiente, aliás, também poderia lastrear a tese de inconstitucionalidade. Não teria sido observado o principio da proporcionalidade, mediante proteção deficiente em relação ao respectivo mandado de criminalização.
A legislação, outrossim, deveria conter disposição, explicita e exaustiva, sobre a reprodução assistida post mortem, a seleção em seres extra e intrauterinos, a gestação em animais e homens, além de coibir a analise genômica, que pode levar a medidas discriminatórias, como a recusa de candidatos, após rastreamento genético. Empresas e companhias de seguro, a propósito, não possuem direito às informações genéticas, em detrimento da privacidade, e as gerações futuras devem nascer livres e iguais em dignidade e em direitos.
Enfim, não obstante o texto da Carta Magna tenha tutelado expressamente apenas patrimônio genético ambiental e não o genoma humano, a irrepetibilidade deste decorre da concepção de Estado de Direito adotada e da dignidade da pessoa humana. Neste ponto, no nosso sentir, a CF contemplou um mandado de criminalização da clonagem humana, que foi parcialmente atendido na criação das Leis 8974/95 e 11105/2005, ainda suscetíveis de controvérsias e modificações, ante o dinamismo, interdisciplinaridade e complexidade das questões suscitadas.
Reconhecemos, a propósito, a autonomia do bem jurídico biossegurança, como anteriormente exposto. A dignidade da pessoa humana a ser protegida, nesse contexto, é individual e supra-individual (espécie homo sapiens).O genoma humano herdado no processo evolutivo natural tem sua identidade, mas também contempla a individualidade (irrepetibilidade por obra da natureza e desenvolvimento na conjunção com fatores ambientais, culturais e outros), expressos na condição “pessoa” superveniente. Portanto, a identidade genética é expressão da dignidade humana e nova dimensão dos direitos da personalidade, sendo valor emergente digno de proteção jurídico-penal.
Ideologias podem surgir para legitimação de manipulações genéticas e penetração no seio social, com a possibilidade de transformação da norma jurídica em técnica, fazendo o Direito perder o caráter principiológico para se resumir a regras do jogo para solução de problemas concretos.
Ao invés de uma estrutura lógico-formal e piramidal, fala-se em uma reunião de microssistemas que se articulam, segundo o modelo dos sistemas autopoiéticos de Luhmann. Nesta ordem de idéias, pressupondo instrumentos de controle social, institucionalizados ou não, sendo a normatividade o mais sofisticado, e a existência de outros conjuntos normativos na sociedade para sua reprodução organizacional, o Direito tenderia a absorver os demais. Assim, a adaptação da sociedade à revolução genética envolve o Direito e sua poiética.
Outro dilema de interesse do biodireito, a propósito, é o patenteamento e comercialização de genes, como já se dá na produção de medicamentos. Os investimentos para pesquisa não podem justificar a garantia inquestionável de lucro significativo e a restrição dos benefícios do resultado a alguns privilegiados, a despeito dos conhecidos subsídios governamentais. O tema, porém, extrapola os limites e propósito deste trabalho.
Por todo exposto, desponta a relevância da teoria da responsabilidade, com vistas às gerações futuras. A ética tecnológica se distingue por tal incerteza acerca dos riscos. Impõe-se a tutela penal, a priori, ante o risco a bens jurídicos de especial relevância, como a biossegurança, a vida, a saúde e o meio ambiente. Impõe-se, na opinião de muitos estudiosos, a reformulação dos princípios do Direito Penal liberal nessa sociedade de risco, surgindo um Direito Penal do risco, como ramo do Direito Penal moderno apropriado ao modo político do Estado de resolver conflitos da dinâmica da sociedade moderna, e intensificando-se o emprego de tipos penais abertos, a criação de crimes de perigo abstrato e de normais penais em branco. Não há que se falar em ofensa ao princípio da intervenção mínima, mas em Direito Penal de “prima ratio” e eficácia por força do status constitucional peculiar conferido à matéria, da relevância dos interesses supra-individuais a tutelar e da repercussão da dignidade da pessoa humana na positivação dos imperativos éticos das ciências, cujo progresso intenso contempla conseqüências imprevisíveis para o homem.
Gláucio Roberto Brittes de Araújo é juiz de Direito em São Paulo e mestrando em Direito Penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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