353 - Drogas: argumento filosófico


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


Atualmente, há uma progressão no pensamento do homem, sobretudo naqueles assuntos que envolvem o tipo de sociedade que queremos: primeiro, o impensável se torna pensável e, subitamente, torna-se uma espécie de ortodoxia, cuja verdade parece tão elementar que, a partir de então, ninguém mais se lembra que já se pensou de forma diferente. 

Eis o estágio em que a idéia de legalização das drogas se depara hoje: uma espécie de emplastro Brás Cubas para o fim da violência gerada pelo tráfico, a redução de danos para a sociedade e o enfrentamento do problema como uma questão de saúde pública. Enfim, o debate entrou no campo da obviedade, sem se sopesar com a devida cautela os inúmeros problemas sociais provenientes do consumo legal, ainda que com restrições sanitárias e médicas. 

O desejo humano de tomar substâncias que alteram a mente é tão velho quanto a própria sociedade, à semelhança das tentativas de regulação de seu consumo. Mas suponho que nenhuma época humana teve de lidar com um duplo dilema: a disponibilidade de inúmeros remédios diferentes que alteram a mente (maconha, cocaína, “crack”, LSD, drogas sintéticas) e a demanda crescente de um conjunto de cidadãos, desejoso do exercício de seu direito de gozar de seus próprios prazeres de sua própria maneira. 

O argumento de fundo para a legalização das drogas é estritamente filosófico. Numa sociedade livre, a lei deve permitir que os adultos possam fazer o que bem quiser, contanto que eles devam assumir as consequências de suas próprias escolhas e que não causem danos diretos aos outros. A ideia remonta a John Stuart Mill, no ensaio “On Liberty”: "o único propósito para o qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro da comunidade, contra a sua vontade, é para evitar danos aos outros”. 

Este individualismo radical impede a sociedade de conceber um código moral. No limite, seria como se não tivéssemos nada em comum, mas nosso “contrato social” de não interferência mútua permanece enquanto nós buscamos nossos prazeres privados. Na prática, é muito difícil obrigar as pessoas a assumir todas as consequências de suas próprias ações. Basta contemplar o horizonte formado a partir das pilhas de processos arrumadas ordenadamente sobre a minha mesa à espera de uma rápida solução...  

Dependência, uso regular ou esporádico de drogas - lícitas ou não - afetam não apenas o dependente ou usuário, mas sempre levam junto o cônjuge, filhos, vizinhos, amigos, parentes. Ninguém, exceto um eremita, é uma ilha. Por isso, a aplicação do princípio de Mill às ações humanas é de pouca utilidade; quanto mais para justificar o consumo de droga. 

Ainda que se pareça desvalorizar o princípio de Mill, eis, precisamente, o ponto: assuntos humanos não podem ser decididos por um apelo a uma regra infalível, expressa em poucas palavras, cuja mera aplicação possa decidir corretamente todos os casos. 

Fundamentalismo filosófico não é preferível ao religioso. São tantos os desejos da vida humana e, muitas vezes, em conflito um com o outro, que a simples inconsistência filosófica no campo da ação política, como permitir o consumo de álcool, enquanto se proíbe o da cocaína, não é argumento suficiente contra isso. 

 Todos valorizamos a liberdade, mas também a ordem; às vezes, sacrificamos a liberdade em favor da ordem e, outras vezes, a ordem em prol da liberdade. Mas retirada a proibição, é difícil de restaurá-la, mesmo quando a liberdade recém descoberta revela ter sido mal concebida e socialmente desastrosa. 

Mill viu as limitações de seu próprio princípio na ação política, sobretudo ao negar que todos os prazeres tinham igual significado para a existência humana: era melhor, disse ele, ser um Sócrates descontente que um tolo satisfeito. Assim, nem todas as liberdades são iguais e nem todas as limitações são impeditivas de seu exercício.  

A liberdade que tanto prezamos não se resume à satisfação de nossos apetites. Quem pensa assim tem uma visão antropológica do homem bem mutilada. Não somos crianças que se irritam com as restrições porque são as restrições, ainda que algumas delas, paradoxalmente, nos tornem mais livres, como a moderação no uso dos bens materiais. Mas homens, em sua acepção integral, que pensam por conta própria e que sabem que nem tudo é relativo, pois, quando tudo é relativo, tudo é permitido. 


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br)


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