355 - Drogas: argumento ingênuo
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
O narcotráfico já não é mais um fenômeno característico das periferias das cidades, dos morros cariocas ou das áreas de exclusão social. Ele ultrapassou suas fronteiras e atinge as portarias dos condomínios de classe média e os altos muros das mansões dos bairros de elite. Em todos os casos, a despeito do nível de renda verificado, a reação familiar é comum: desestabilização da paz no seio do lar, diante do abatimento frente ao drama da delinquência insuspeitada.
A nova geografia do tráfico nada mais é que uma reação ao sinal dos tempos: crise da instituição familiar, aposta na roleta russa da impunidade legal, lucro fácil e alto, além de um mercado de consumo garantido. Hipnotizados pelo canto da sereia, como Ulisses, do poema épico de Homero, os jovens deixam-se levar facilmente, ao contrário do nosso herói grego, que fora preso ao mastro do navio a seu pedido, como símbolo da prudência que deve nortear o agir humano frente às adversidades e do amor ao que lhe era caro: Penélope, sua apaixonada e fiel esposa.
O fato é que a juventude não só não tem mais mastros que valham a pena se amarrar, quanto mais ignora o que seja prudência ou mesmo amor, sinônimo de sexo, já entendido depreciadamente como um ato fisio-biológico despojado que qualquer afetividade. E, ainda assim, os defensores da legalização agem com uma ingenuidade ímpar, fincados em três argumentos principais: a guerra contra as drogas causa mais danos à sociedade que o abuso no uso de entorpecentes, a violência diminuirá com a legalização, em razão da queda do preço e as drogas se resumem a um problema da saúde pública.
O primeiro argumento é o mantra preferido pelo movimento libertário. Diante de seu laconismo, deve se perguntar a parcela da sociedade que sofreu os danos: os usuários, os traficantes, os atravessadores, os produtores ou as pessoas que moram nos bolsões dominados pelo narcotráfico? E qual a magnitude do dano supostamente sofrido? E, se houve o dano, não se trata de uma questão localizada? Será que, apesar do aumento da oferta, decorrente da legalização, não se manteriam os mesmos níveis de “danos”, pois ainda haveria muita droga ilícita, produzida para burlar os inevitáveis controles fiscais e sanitários que a legalização traria?
E os custos financeiros envolvidos para o Estado, porquanto a liberação não poderia ser implementada sem uma paralela promessa de tratamento pelo sistema público de saúde, sobretudo para os mais pobres, ou seja, numa relação de oferta gerando demanda inelástica?
O segundo argumento porta uma mensagem subliminar: a legalização torna o Estado um parceiro do narconegócio, responsável não só pelo tratamento médico dos usuários, mas pela escolha do fornecedor, pela oferta da droga, a qual deverá se submeter a rígidos controles sanitários e tributários, pela educação do usuário para uma “correta” utilização do entorpecente e pelo combate às pragas nas plantações, a fim de assegurar a qualidade do produto final.
Quem sabe o Estado ainda se incumbirá pela compra e armazenamento de drogas para a criação de estoques reguladores, a serem despejados no mercado quando o preço da droga estiver em alta, sem prejuízo da reformulação de toda legislação (cível, criminal, educacional, sanitária) que pressupõe justamente a ilicitude da droga. Ou poderá estabelecer parcerias público-privadas para novas fronteiras de plantio ou criar uma linha de crédito rural no Banco do Brasil, a juros módicos...
Prefiro crer que o Estado não teria condições de “competir” ou atuar como parceiro, em qualquer grau, num hipotético mercado, cuja “commodity” seria a droga in natura, pois este mercado é imenso e opera com lucros de maneira excepcional. Não é a toa que se trata da segunda economia mais lucrativa do mundo, abaixo de seu irmão siamês, o tráfico de armas. Além disso, penso que o narcotráfico não esteja lá muito disposto a compartilhar o lucro, ao contrário dos custos...
O terceiro argumento tem sido o lugar-comum para todos os problemas de saúde eminentemente individuais: cigarro, álcool, obesidade, doenças sexualmente transmissíveis, aborto e, agora, drogas. A premissa está na idéia de uma sociedade enferma, tal o número de incidência de casos verificados. Lembro que, em regra, essas consequências são fruto de escolhas pessoais, livremente feitas, cujo ônus passa a ser suportado pelo sistema público de saúde, já saturado por outras demandas.
As drogas são um problema individual, decorrentes da procura de um alívio fugaz para o vazio existencial que cerca a pessoa. De volta à realidade, o dependente vai buscar sua cura na grande bacia de salvação prometida pelo Estado, a quem se pretende, na ótica libertária, a incumbência da fiscalização e do controle do mercado de drogas. Dois erros somados não resultam num acerto...
O laxismo social nos costumes provoca os resultados que estampam diariamente os jornais. Cada vez que algum intelectual ou uma celebridade aparecer glamourizando a droga, como se tivesse algumas verdades eternas a dizer, no fundo, valoriza-se o universo subjetivo da droga, de que o tráfico é a manifestação mais objetiva e cruel.
A questão da legalização da droga, que deve ser vista com mais seriedade do que ingenuidade, fará com que o Estado suba a novos patamares de delírio e, juntamente com as seringas que já são hoje oferecidas, deveria aproveitar a ocasião para distribuir também algumas doses como bônus. Para captação de clientela.
André Gonçalves Fernandes é juiz de direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br)