359 - A importância dos valores na democracia
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
Em 480 a.C., o exército persa de dois milhões de homens, comandado pelo rei Xerxes, ultrapassou o Helesponto para atacar e escravizar a Grécia. A fim de que tal força fosse detida por alguns dias, uma tropa selecionada de trezentos espartanos foi enviada para o desfiladeiro das Termópilas, onde a geografia estreita e rochosa anularia a superioridade do inimigo. A resistência durou sete dias até que os espartanos foram dominados; mas foi tempo suficiente para que os gregos reorganizassem suas defesas até que, na batalha de Salamina, os persas fossem derrotados.
Os valores éticos da democracia grega – o ideal que moveu os bravos espartanos – foram preservados com o desmoronamento do exército persa e transmitidos para as gerações futuras. Todavia, hoje, penso que a democracia em que vivemos carece de alguns valores éticos fundamentais, formando uma sombra de incerteza que põe em cheque a realização do pluralismo e o futuro de nosso regime.
A magnitude do problema é comparável ao exército persa. Veja-se. O Estado democrático - os exemplos estão diariamente nos jornais - apresenta-se como a própria vox Dei ao pretender representar a vox populi e, assim, transforma-se em uma espécie de bezerro de ouro, sobretudo na visão jacobina de democracia, na qual o Estado personifica a “vontade geral” de Rousseau, sem que haja um tribunal de apelação. Sob outro ângulo, tal ponto de vista coloca a sociedade em posição posterior e inferior ao Estado.
Churchill já disse que a democracia é o pior de todos os regimes, excetuados todos os outros. A sabedoria de tal afirmação está no fato de que a política democrática não é a resposta última para os fins últimos do homem. Entretanto, é muito superior às outras formas de política, porque respeita a dignidade da pessoa humana, promove e protege os direitos humanos, a produtividade humana e a justiça, está aberta ao futuro e oferece um grande espaço para o exercício da responsabilidade pessoal e a busca do bem comum.
A intrincada relação entre verdade moral e política democrática é inerente à democracia. As dificuldades não são um produto da má vontade deste ou daquele partido político ou das instituições necessariamente. O moderno Estado democrático tem um apetite insaciável em abarcar toda a realidade social e, inclusive, a religião. Não raro, mesmo com retidão de intenção, cai na tentação de converter-se em uma Igreja (em sentido ecumênico).
Creio que a moralidade não se intromete na política democrática, mas, na verdade, é seu coração, cujo palpitar é dado pela religião professada pelo povo. Basta ver que todas as questões políticas importantes são questões morais (bem comum, justiça social, aborto, eutanásia, clonagem, pena de morte, guerra, paz, família...). Por isso, a democracia é muito mais que o simples império da maioria ou a existência de instituições representativas daquela.
Como conseqüência, nem todas as questões podem ser objeto de votação supressiva, como, por exemplo, a liberdade de expressão, a liberdade de associação e outros direitos subjetivos públicos elementares que tornam a política democrática possível e muito valiosa. Do contrário, a democracia possibilitaria, sem as devidas salvaguardas, sua própria destruição. Lembre-se que Hitler chegou ao poder pelas urnas e, uma vez lá, instalou um regime totalitarista que alterou o curso da história mundial, ainda que III Reich não tenha durado os mil anos a que se propôs.
Também não se quer dizer que Estado possa professar uma fé. Pelo contrário, não deve fazê-lo. Contudo, acaba por praticá-lo quando, em hostilidade com a fé popular, professa o substituto do secularismo militante. Acredito que o perigo antidemocrático não decorre do exercício livre de uma religião tolerante, mas da imposição de crenças seculares por parte de governos que crêem ser o Estado a fonte mais elevada da soberania. O nazismo e o comunismo foram os modelos acabados (e sepultados) de tal experiência.
O perigo também está presente quando se entende que a separação entre Igreja e Estado é uma separação entre a fé popular e a vida pública. Discordo. A aludida separação consiste em uma limitação de governo e não à ação desta ou daquela religião, sobretudo nos assuntos fundamentais da existência humana por ela questionados. A política democrática deve ser a expressão das mais profundas convicções do povo, incluídas as religiosas.
A democracia não é uma máquina que anda solta por aí. Existem freios e contrapesos que devem imprimir uma direção razoavelmente segura na estrada da vida social e que são representados pelos valores da fé popular.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br)