370 - Estado x Igreja: aspectos históricos


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


O debate que gira em torno da atuação da Igreja no âmbito político e social, em suma, naquelas questões afetas ao Estado, costuma acirrar os ânimos de todos os lados: a Igreja, que chama para si um espaço vital de influência pública numa série de assuntos que envolvem relações delicadas entre Estado e sociedade, como o aborto, a eutanásia, pena de morte e o homossexualismo e, por outro lado, os opositores desta ideia, espalhados em várias linhas político-ideológicas, cujo principal argumento está na natureza laical do Estado. Historicamente, a relação entre estes dois entes sempre foi pacífica? E, nos dias atuais, como estes atores se comportam no palco social? 

 A história contemplou o desenvolvimento de uma dialética entre separação e mútua intromissão entre as duas esferas, espiritual e temporal: uma dialética entre laicidade e sacralidade do poder temporal, entre dualismo e monismo político-religioso. Nem a Idade Média foi capaz de construir uma solução duradoura e compatível com o carisma fundacional do Cristianismo. 

No decorrer dos séculos, sempre influenciada por alguns condicionamentos determinados e algumas contingências históricas, a Igreja pôs em prática formas de atuação pastoral em claro contraste com aquilo que ela mesmo reconhece, hoje, como uma sã laicidade do Estado. 

Depois de séculos de uma relação intrincada, ora pendendo para a prevalência de um, ora de outro, numa espécie de ópera para dois tenores, com vários atos, em que cada um rivalizou sobre o outro alternadamente, penso que a grande contribuição do Cristianismo foi a introdução da ideia, no seio da história do pensamento ocidental, de forma inovadora, de uma clara e saudável separação entre política e religião. 

Ao mesmo tempo, o Cristianismo propôs a relativização do poder político, ou seja, a subordinação deste poder a critérios superiores e independentes de justiça, de verdade moral e de direito natural, já que este poder é exercido por homens para regular a vida de outros homens. 

Em suma, um poder do homem sobre o homem. E o mesmo homem que é capaz de agir à luz de tais critérios, é igualmente capaz de omiti-los: não sem razão já foi dito que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente. Para que isso fosse evitado, uma cultura política laica seria a condição de possibilidade daquela subordinação e, hoje, esta cultura é o fiador daquela condição, por mais paradoxal que pareça. 

Esta saudável cultura, que foi buscar seu elixir nas tradições da civilização greco-romana, posteriormente transformada pelo Cristianismo a partir da elevação ao transcendente daquelas nobres realidades terrenas, tem um conjunto de valores e de instituições jurídicas, educativas, sociais e econômicas que compõem a alma e o coração vital da civilização ocidental. 

Graças à atuação destas instituições, a civilização ocidental tende a se universalizar em vários fenômenos de significativa importância como, por exemplo, os direitos humanos, as intervenções cada vez mais comuns de organismos internacionais, a expansão crescente da democracia constitucional e do liberalismo econômico. 

Atualmente, a Igreja tem se esforçado por reencontrar suas raízes originais, fincadas numa evidente separação entre política e religião, ao mesmo tempo em que tem se empenhado em conciliar o reconhecimento do dualismo política-religião com sua perene e irrenunciável tarefa de ser testemunha de um conjunto de verdades transcendentes e eternas, aptas a iluminar o exercício do poder político do ponto de vista ético. 

Com efeito, por laico, hoje, compreendem-se duas concepções: uma de cunho político, congruente com a ação da Igreja, nos moldes acima propostos; outra, essencialmente anti-religiosa, podendo ser chamada de totalitarista, que concebe a religião e toda influência de qualquer instância religiosa como um perigo para a liberdade e uma subversão da democracia.  

No primeiro sentido, a laicidade constitui um valor adquirido e reconhecido pela Igreja e que pertence ao patrimônio de nossa civilização. Ainda que a custa de muitos erros. Do Estado e de Igreja.


André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br)


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