371 - Religião: espaço público


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito 


Desde o Concílio Vaticano II, as relações entre Igreja e Estado passaram a ser marcadas por um indiferentismo institucional, uma clara separação a nível jurídico e político, mas não de um indiferentismo total e asséptico, sobretudo em assuntos de interesse público que envolvam uma análise crítica à luz dos princípios da moralidade humana.  

Com sua doutrina sobre o direito à liberdade religiosa, a Igreja reconhece a laicidade do Estado como separação institucional entre religião e política. Assim, uma vez apartados, restaria um campo político para a ação eclesiástica? Caso positivo, quais seriam suas fronteiras? 

Penso que esta saudável indiferença dos homens do Estado, enquanto políticos corresponsáveis pelo bem comum, assim como de todas as pessoas públicas, como as autoridades civis, a respeito da verdade religiosa, não quer dizer que o Estado não possa ajudar as inúmeras comunidades religiosas, respeitando-se a cultura de uma nação, a criar condições mínimas que lhes permitam viver segundo a crença religiosa assumida, principalmente no que atine à matéria de culto e educação. 

O homem é uma criatura religiosa por excelência. Em todos os tempos, em diversos locais e em diferentes civilizações, este atributo humano sempre foi essencialmente marcante, ainda que matizado por fenômenos históricos. O homem das cavernas, as antigas civilizações do Ocidente e do Oriente, Grécia, Roma, os povos pré-colombianos, cada um, à sua maneira e conforme suas tradições, sempre manifestou seu pendor pelo transcendente: representado pelos fenômenos naturais (fogo ou trovão), entidades antropozoomórficas (misto de animal com homem), seres estelares (sol) e deuses dotados de poderes sobrenaturais e movidos por paixões humanas.  

Na raiz deste “mosaico divino”, a mesma causa: a natural atração da alma humana pelo eterno. Carlos Drummond de Andrade, com a genialidade que lhe é peculiar, sintetizou essa evidência numa sentença lapidar: ”Cansei de ser moderno. Agora, quero ser eterno”. Reconhecido este distintivo da natureza humana, a liberdade religiosa, que o Estado tem o dever de assegurar, a par de sua correspondente neutralidade, não significam anti-religiosidade ou ateísmo público.  

Esta postura não se confunde com neutralidade religiosa, senão um credo negativo, de fúria anticlerical, ainda que abrandada por um discurso atraente e moderado. A contradição e a negação de algo, no caso, da vertente religiosa do homem, nunca são uma atitude neutra.  

Pelo contrário, o ateísmo representa uma atitude parcialmente extremada, porque porta consigo a negação das verdades naturais, do valor e da relevância existencial de toda e qualquer religião e, não raro, para o escândalo dos Saramagos da vida, a afirmação de sua índole substancialmente nociva. Levar adiante esta bandeira seria como trocar um fundamentalismo religioso por um fundamentalismo laico: seis por meia dúzia.  

A neutralidade estatal é aquela que se abstém de qualquer valoração da verdade ou não de uma ou outra postura religiosa que se defenda. É certo que pode haver outras formas concretas de atuação nesse sentido. A questão ainda está aberta e pode ser influenciada pelo caldo cultural de cada país. Em qualquer caso, creio que uma posição neutra não pode fechar os olhos ante esta ou aquela religião que se apresenta como um fenômeno cultural tradicional ou majoritário de um país. 

A liberdade religiosa e a correlata neutralidade estatal são compatíveis com o reconhecimento público, ainda que não confessional, da existência de uma transcendência divina, assim como a assunção de medidas para a facilitação do culto pelos crentes.  

A prática de muitas nações e os inúmeros textos constitucionais que respeitam a laicidade do Estado e a liberdade religiosa de seus cidadãos demonstram que a religião deve ter seu espaço público de influência contra a ditadura de uma ideologia que se apresenta como se fosse a única voz da racionalidade, quando só é expressão de um racionalismo mutilado. 


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br)


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