372 - Menos laicismo e mais laicidade


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


Nos dias atuais, promove-se um conceito de relação institucional entre Estado e Igreja que vai além de uma ideia de neutralidade e autonomia do poder temporal acerca de assuntos que disponham sobre os princípios últimos e as razões primeiras do homem. Como se veicula este conceito? Como se define? Quais seus efeitos sociais? 

Sustenta-se que toda religião traz consigo uma espécie de crença e de prática que deve ser inteiramente relegada ao âmbito da vida privada dos cidadãos, porque, enquanto tal, faria concorrência e entraria em contradição com uma cultura política laica.  Nessa perspectiva, a liberdade religiosa, mais do significar o direito do cidadão a exercitar sua religião conforme os ditames de sua consciência, equivaleria à liberdade que o Estado concederia à religião fora da esfera pública. 

A recente discussão sobre a retirada de crucifixos em repartições públicas é o primeiro ato desta ópera. Só espero que, no interlúdio, não revoguem o Natal e a Páscoa depois de uma revisão do calendário (que, aliás, chama-se gregoriano, em homenagem ao seu criador, o Papa Gregório VIII) e, no último ato, não resolvam mandar derrubar o Cristo Redentor e colocar, em seu lugar, alguma estátua alegórica em homenagem às glórias do ateísmo, se é que existem... 

Frente a esta concepção radical das relações entre o Estado e a Igreja, que se pode denominar de laicismo, estimo útil empregar o conceito de laicidade, a fim de singularizar o ingrediente aceitável e justificável do laicismo, fato reconhecido também pela Igreja. Assim, a laicidade consistiria na exclusão, da esfera política e jurídica públicas, de todo um conjunto de normas que faça referência a uma verdade religiosa, justamente enquanto tal. 

Ao contrário, quando um Estado deixa de ser laico, ao privilegiar uma certa verdade religiosa, acaba por se submeter também à exclusiva competência interpretativa da respectiva autoridade religiosa, assim como às implicações públicas e civis de tal verdade. É o caso do Irã que, baseado na mesma verdade religiosa, é capaz de perseguir homossexuais, matar jornalistas que exerçam sua liberdade de expressão e professar, publicamente, a destruição do estado de Israel. 

Em matéria religiosa, um Estado laico não se vale de critérios de verdade, mas trata todas as religiões segundo critérios de justiça política, a saber, a imparcialidade e a neutralidade. Esta conduta é conciliável com o reconhecimento, nos planos educativos, da importância da dimensão religiosa como frente de cultura, de orientação moral para os cidadãos e de estímulo do compromisso social. 

Esta noção não atribui ao Estado a condição de confessional, até porque a vida pública de uma nação é o reflexo da vida de cada cidadão: se o homem, individualmente considerado, tem uma natural dimensão religiosa, a vida pública no âmbito do Estado não pode ser diversa.  

Tal dimensão nunca é um fato abstrato. Tem sólidas raízes na história de uma nação (como Portugal) ou de uma civilização (como a grega). Na vida de um povo, a dimensão religiosa da existência humana pode estar presente na forma de uma determinada religião (como na América Latina) ou de várias, no caso de uma sociedade pluralista no ponto de vista religioso (como os EUA). 

O laicismo, ao negar a relevância pública da religião ou de qualquer referência religiosa, representa uma posição política anti-histórica, rígida e abstrata, acompanhada de um projeto revolucionário nos campos da cultura e da educação: não tem nada de um projeto neutro, no sentido etimológico do termo. 

A laicidade proposta garante ao Estado um ideal de cidadania e de bem comum. Separa os direitos do cidadão e o exercício de sua confissão religiosa. Fomenta um modo de ser público consequente com a paz, a liberdade e a igualdade, conceitos inerentes à ideia de Estado constitucional, com uma legitimidade própria e independente de qualquer credo religioso.  

O banimento da religião junto à esfera pública, pretendido pelo laicismo, não solucionará qualquer suposto problema. Nem os mais prosaicos, pois, certamente, os pedintes continuarão a se concentrar na frente das igrejas e não diante do prédio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br)


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