374 - Ética light


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


Hoje, nossa cultura tem sido influenciada por dois extremos que, a meu ver, não ajudam a bem compreendê-la: de um lado, o discurso social alarmista que lamenta o fim da moral e, de outro, a manifestação festiva e cínica deste fato. 

 Não faz muito tempo, a sociedade buscava incessantemente sua libertação de tudo que representasse um passado moralista, porquanto se tratava de puro farisaísmo, efeito colateral da repressão burguesa reinante.  

De repente, por toda parte, assiste-se a uma louvável onda de imperativos éticos: luta contra a corrupção, proteção ao meio ambiente, ações humanitárias, códigos de linguagem não discriminatórios, chamamentos à responsabilidade e ética corporativa. Os cantores de música oferecem seus decibéis aos mais necessitados e os artistas partem para ações de generosidade. Tal efervescência ética é tão plural que permitiu a restauração de antigos deveres, porque “já não é obrigatório ser liberal em tudo”. 

No entanto, causa-me a impressão de que a noção de dever absoluto e toda construção teórica que a cortejava desapareceu completamente. Ninguém quer mudar as coisas substancialmente, mas todos estão dispostos a corrigir a superfície. 

Do mesmo modo que a sociedade moderna erradicou os matizes arbitrários do poder político, também desqualificou de vez a imposição de normas austeras e disciplinadoras sobre o comportamento dos indivíduos. A era pós-moralista não é transgressiva nem acanhada, é apenas “correta”. Ou melhor, politicamente “correta”. 

A nova moral é uma ocupação privada justificada desde o momento em que não existam causas públicas que demandem algum holocausto pessoal. Cuida-se de um cosmético que ao menos torna mais gratificante sua apresentação externa, de sorte que todos os novos imperativos categóricos morais devem ter o mesmo padrão estético. A dúvida reside na sustentabilidade dessa versão light da moral. 

Aí está o berço da nova moral doméstica, do hedonismo ecológico, da obsessão pelo visual externo. No lugar de uma teia de relações e dependências inerentes às sociedades tradicionais ou até mesmo revolucionárias, existe, hoje, uma justaposição de indivíduos soberanos ocupados diuturnamente com a administração de sua qualidade de vida, com a otimização da gestão do eu. 

Nessa ótica, é importante não depender do outro, a fim de se construir um ethos de autossuficiência e de autotutela, típico de uma época em que o próximo é muito mais um perigo ou uma moléstia do que um elo de atração. E o próximo se tornou uma ameaça, porque, quando se perde a noção de transcendência vertical, fundamento último dos valores, o esfacelamento da transcendência horizontal é só uma questão de tempo. 

Na era moderna, de várias maneiras procedeu-se à redução da ideia de Deus e do alcance desta, até sua eliminação implícita ou explícita. De várias formas, as inúmeras correntes filosóficas indicaram valores objetivos determinados, na maioria das vezes, desligando-os de um vínculo divino. O Iluminismo, pai de todos os racionalismos, é um exemplo significativo desse eclipse transcendental, em razão do princípio de que os valores podem provir unicamente da razão humana. 

De lá para cá, todos os valores proclamados pelo Iluminismo foram se minguando aos poucos, justamente por estarem desvinculados daquele vínculo capaz de sustentá-los e de lhes conferir consistência ontológica. Hoje, como nenhum deles restou de pé, vivemos sob o império do niilismo, da completa ausência de juízos de valor e a máxima nietzschiana “Deus está morto” é uma expressão teórica extremamente lúcida, pois significa exatamente a separação dos valores de seu fundamento ontológico. 

Privada de uma âncora de valores, a barca da humanidade está à deriva no oceano da realidade. Buscar uma tábua de salvação na ética light não resolverá a situação, porque os valores desta ética são como castelos de areia, que não têm solidez, desmoronam-se e, logo em seguida, a primazia do eu é restabelecida. A ética light é uma filosofia romântica e vaga: filosofia que serve de pouco quando nos deparamos com a inexorável realidade do outro. 


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br)


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