375 - Ética diet


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


A cultura da autodeterminação narcisista, efeito atual de um processo de individualismo que culminou com o niilismo existencialista, não submeteu a esfera da moral às forças de um egoísmo impetuoso, mas a deslocou para uma variante muito sutil, a de uma moral sem deveres. Em voga, estão a caridade sem obrigação, o altruísmo brando e a ética mínima da solidariedade compatíveis, é claro, com a primazia do eu.  

Nessa ótica, é importante não estar preso ao outro, sobretudo numa época em que o próximo é fonte de desejos inconfessados, mas também de receio ou de perigo. Por isso, o preservativo tem um valor simbólico muito grande e, porque não dizer, paradoxal. 

 Trata-se de um envoltório que protege o indivíduo que não quer se comprometer com nada, porém deseja relacionar-se com o todo. É um dos símbolos de uma cultura que, sob o manto de uma simpatia universal, esconde uma sensação de incômodo ante a presença ameaçadora dos outros. Equivale a uma situação de guerra de todos contra todos onde os combatentes foram privados de uma arma mortífera e só podem agir defensivamente. 

Essa é a imagem do outro que fica no subconsciente das pessoas. Como exemplo, tome-se o bombardeio de propaganda contra a indústria do tabaco e do combate à AIDS, ações que, por si só, são louváveis. Quem é o próximo? O próximo reduz-se a um ser fumante e contagioso. O que é a sociedade? Um mero sistema de compartimentos estanques que permite somente o trato e a comunicação impessoais.  

E o outro? Fica relegado ao ostracismo? O outro merece a devida atenção sempre e quando não se pretenda ir mais além de um altruísmo indolor, num altruísmo que não muda as pessoas substancialmente. Aliás, substância lembra robustez e, certamente, hoje, é o que menos se vê na aparência física das pessoas, principalmente no mundo da moda.  

Assim, pode-se afirmar que esse afã estético acaba por refletir no agir ético de cada um: surge uma ética diet, uma ética sem robustez. Sem substância. Não é à toa que nunca se exibiram tantas realidades inadmissíveis, numa espécie de convocação à solidariedade, acompanhada de uma linguagem de reprovação. 

Entretanto, tal êxtase de alteridade é epidérmico e pontual, pois é somente uma identificação superficial com o outro, devido à repugnância do espetáculo do sofrimento alheio. Um compromisso moderado e distante, sendo suficiente um gesto de indignação para que a consciência não fique dolorida. 

Se todo um discurso moral limita-se à ótica narcisista, não há como se justificar o menor sacrifício. O problema do sacrifício (decorrente do dever) é um dos temas centrais da ética. O sacrifício é razoável, ainda que soe como um profundo mistério.  

É uma ingenuidade pensar que se pode amar alguém, repartir os recursos escassos, tolerar as idéias contrárias ou proteger o meio ambiente sem carregar sobre si toda uma série de inconvenientes presentes e futuros, entenda-se, sem algum gênero de sacrifício. 

Os homens ouvem as vozes dos seres que o rodeiam e é próprio do ser humano sentir-se obrigado por essas vozes. Elas são ouvidas, porque o homem é dotado de inteligência, a qual rompe o cerco da psicologia instintiva.  

Surge o dever de respeito por tais vozes e descobre-se que elas não existem apenas em função das necessidades do outro, mas subsistem por si mesmas e também têm necessidades profundas e não meramente superficiais. Eis o sentido do dever. 

A ética diet exige muito do homem e, ao mesmo tempo, muito pouco. Muito pouco, porque não o obriga a encarar as contingências da vida, nem o exorta ao dever e à responsabilidade. Muito, pois o abandona em seus medos e o deixa sozinho ante a necessidade de orientação, desconhecendo a debilidade de sua natureza. 

O ser humano tem o particular atributo de ser incapaz de viver sem deveres, os quais são, por sua vez, necessárias limitações de sua liberdade e protetores de sua fragilidade. Por isso, a apoteose do eu não causa uma eliminação da moral, mas apenas sua modificação. Como a energia, os deveres não se eliminam, transformam-se. Motivo pelo qual o assento dos deveres nunca está vacante. Mas nem sempre está ocupado pelos mais razoáveis, principalmente quando o homem converte-se num ser unidimensional. 


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br)


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