376 - Ética new age


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


Um dos males contemporâneos está na diminuição da estatura ontológica do homem a uma única dimensão, a dimensão física. Trata-se do resultado tardio do materialismo ontológico que, a partir do século XVII, formulou que tudo aquilo que existe é realidade física ou epifenômeno desta e, logo, o ser em todas suas manifestações possíveis é reduzido ao plano físico. 

No âmbito do homem, negada a existência de qualquer outra dimensão que não seja a física, todas as características psicológicas do homem (no sentido etimológico do termo), são apenas epifenômenos do físico. Ou seja, um fenômeno secundário, que acompanha o principal e é por ele causado: em suma, não tem existência própria. 

A imagem do homem será, então, aquela que nos é dada pelas ciências humanas, que têm, como modelo, as ciências da natureza. O homem é, assim, reduzido a uma mera peça da realidade material, subsistente por si mesma e sem referência ao transcendente, um elo da cadeia que se articula na dinâmica social, sobretudo da produção e do consumo, sujeito e objeto ao mesmo tempo de conflitos de natureza vária. 

Um bom exemplo disto está no belo, infectado pelo relativismo decorrente deste vazio transcendente, onde se supunha já haver alcançado um nível abissal: compara-se o concerto nº5 para piano de Beethoven com o batuque do Timbalada, uma poesia de Drummond com uma letra do MV Bill, os afrescos de Michelangelo com grafites de viaduto e “O Pensador” de Rodin com o urinol de Duchamp. Como dizia Leo Strauss, se todos os valores são relativos, o canibalismo é só uma questão de gosto... 

Nessa imagem, a antiga máxima “o homem é um fim” perde todo significado e é substituída por outra “o homem é um meio”, isto é, um instrumento, um objeto, qualificativo atribuído aos escravos nas sociedades da História Antiga. E, na ótica moderna, todos os homens são, principalmente, instrumentos vivos de produção e de consumo, inseridos nas engrenagens de um sistema social cuja lógica lhes escapa. Não é à toa que, acerca da atual crise da razão, sentencia-se a morte do homem, o falecimento de sua dimensão metafísica.  

No fundo, o homem perdeu a fé em seu valor, conforme dizia Nietzsche em seus Fragmentos Póstumos. Engendrado numa teia de relações sociais em que atua mais como objeto do que como sujeito, sem qualquer abertura ao transcendente, o homem só tem um refúgio a buscar, a saber, o próprio homem. E o individualismo que lhe resta nesta situação acaba por influenciar seu agir frente à ordem moral: surge uma nova ética, a ética da nova era, a era da apoteose do eu. 

As notícias da imprensa estão repletas de exemplos que fizeram do amor pelos seus apenas um meio de satisfazer seus próprios desejos. São políticos, empresários, cantores, artistas, atores que sacrificaram a plenitude de sua vida em nome da respectiva carreira, submetendo as necessidades alheias a seus próprios interesses e abraçando a ambição privada. 

Depois, quando vem a fatura – o insucesso, o ostracismo, a doença, a velhice – descobrem-se como estranhos num mundo de estranhos mais excêntricos ainda, mas, ainda, desejosos de uma “nova” vida, algo que provavelmente não sucederá, porque a existência tão esperada se revelará uma trama de fracassos e desilusões latentes na memória. 

Os homens do século XX trocaram o amor de doação, tão bem ilustrado na literatura, na pintura, na escultura, enfim, na história da arte, depositária das experiências mais ricas da humanidade, por um amor de aquisição, verdadeira máscara, bonita por fora, como as de Veneza, mas que, na face interna, a face oculta, representa o individualismo levado ao extremo. 

Tais máscaras, vistas nas tragédias diárias das revistas especializadas, digamos, em retratar as amenidades alheias em pormenores (na falta de uma expressão melhor), escondem o progressivo esquecimento do sentido de doação, de serviço gratuito e de oferta sem pedir nada em troca. As miragens dos interesses individuais provocam um deslumbramento interior que, aos poucos, vai minando o rol cada vez mais diminuto de valores que a pessoa carrega consigo. 

Um autor diagnosticou bem o problema ao ter dito que “(...) as paixões que consomem se consomem velozmente; o amor se enfraquece multiplicando-se, e com o tempo se torna frágil. Os encontros que fazem nascer um novo amor matam o antigo amor. Os casais se desfazem, outros casais se formam e depois novamente se afastam. No amor entre o mal da instabilidade, da pressa, da superficialidade, que reintroduz o mal da civilização esmagado pelo amor”. 

O individualismo exacerbado conduz a sociedade à atomização total dos indivíduos e, consequentemente, à inevitável solidão, seu efeito mais nefasto. E não adianta olhar para trás, pois o tempo cobriu tudo com invisíveis mortalhas. O passado é o porto de onde a nossa embarcação já se afastou há muito. Vemo-lo ao longe, por entre as brumas. Mas, certamente, não há mais chance de regresso.   


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br)


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