388 - Justiça e Direito – o que é justiça?
SANDRO LUCIO BARBOSA PITASSI - Juiz de Direito
Resumo: Dentro do enfoque das relações entre justiça e direito, da própria teoria da justiça, pretende-se a investigação acerca da possibilidade da justiça ser concebida com certa racionalidade, percorrendo-se alguns dos principais pensadores acerca da matéria. [1]
Palavras-chave: justiça, direito e racionalidade.
1. Introdução
Sabe-se que o direito revela uma natureza prática, revelando-se a razão como elemento de retificação e correção, diante da variedade e complexidade das circunstâncias, o que deixa transparecer a provisoriedade das conclusões. O próprio Aristóteles já havia preconizado que no campo do direito é inapropriada aquela precisão própria dos matemáticos.
Diante de tal cenário, a acentuada relativização da justiça, comprometendo a própria segurança jurídica, carrega evidentes e trágicos resultados, daí a presente proposição no sentido da investigação da possibilidade de se imprimir certa racionalidade no discurso sobre a justiça, contemplando-se, consoante já ressaltado, a variabilidade e complexidade das circunstâncias da vida.
Seria, assim, a justiça um elemento seguro, dados às limitações culturais e históricas verificadas no mundo e a própria imperfeição humana? Lança-se, ainda, outra indagação: poderia a justiça assegurar uma sociedade justa?
A extrema riqueza da realidade tem como conseqüência evidente a impossibilidade do legislador prever todas as soluções reclamadas pelo plano fático. Partindo-se de tais premissas, passa-se a explorar o tema da justiça à luz de alguns dos principais pensadores.
São embates que se travarão nesse estudo, percorrendo-se, frisam-se mais uma vez, de forma panorâmica e despretensiosa, ao menos alguns dos principais pensadores da história, na tentativa tímida de se buscar alguma resposta.
2. A justiça: uma questão de opinião ou um parâmetro objetivo - problema do justo e da sociedade justa
O homem é um ser social, se relaciona com outros homens, com ele mesmo, com a natureza e a própria transcendência (Deus). A justiça, em ação, por sua vez supõe a liberdade, como um poder-ser.
A justiça sob a ótica dos Salmos afirma que Deus é justo e que nos fará sermos justos, sendo a Justiça obras de suas mãos (de Deus), caminhando na teologia da Justiça.
Ela aparece como virtude aparece em Platão e Aristóteles (2001), como a capacidade ou excelência traduzida como virtude, cujo lugar está na alma ou na cidade. Sabe-se que a obra “A República”, de Platão, é o primeiro escrito que faz da justiça um termo, em que pesem as implicações metafísicas e certa ambigüidade.
Em São Tomás de Aquino colhe-se a idéia de que aquilo que é dado ao todo é devido à parte, ou seja, sem a distribuição do comum a comunidade perderia sua razão de ser, vigorando até o Renascimento a justiça Comutativa, dar e receber entre indivíduos.
Com o advento do capitalismo, tudo é reduzido em mera comutatividade, sendo a lei positiva baseada no contrato social. O filósofo Jeremy Bentham, ao encarar o “problema da justiça”, salienta:
Esse pode ser chamado de “o problema da justiça” para Bentham. Parece que certas circunstâncias da visão utilitarista entram em conflito com nossas intuições acerca do que é justo ou pelo menos do que é certo. O contra exemplo pode nos conduzir em duas direções. Pode-se concluir que o utilitarismo não pode ser a maneira correta de se pensar sobre a moralidade, ou pode-se concluir que as intuições acerca da justiça estão erradas.
O próprio problema pode ser enunciado de modo mais geral: às vezes a única maneira de produzir um saldo maior de prazer em relação à dor é fazendo com que um ou mais de nós sofram pelos outros. Obviamente, isso não equivale a afirmar que os pobres devem sofrem pelo bem dos ricos, mas exatamente o contrário. Isso equivale a se aproximar de uma verdade acerca da conexão entre colocar de lado os desejos de alguém pelo bem dos de outra pessoa e a natureza da moralidade. O utilitarismo captura algo acerca daquilo que muitos consideram um fato sobre qualquer sistema moral digno do nome: sua natureza impessoal. A moralidade exige que seus interesses às vezes fiquem no lugar dos meus – e a seguir vem a parte importante – não importando quem você seja. Talvez a visão de Bentham capture esse fato de modo completo e nosso problema com ela reflita não uma falha do utilitarismo, mas o fato de que ser moral não é fácil.deparar com o relativismo axiológico de Kelsen (2009) tem que a justiça absoluta é uma ilusão, visto que, do conhecimento racional, não existem mais do que interesses humanos e, portanto, conflitos de interesses, colocando-se Kelsen como partidário, em última análise, da justiça e da democracia liberal, consignando em suas afirmações o fato de que cada um terá uma concepção de justiça, colocando-se a tolerância como princípio moral específico de uma filosofia relativista de justiça, surgindo a idéia da justiça, da liberdade, da paz, da democracia e da tolerância, acrescentando Kelsen que A CIÊNCIA NÃO SE MOSTRA CAPAZ DE RESOLVER A QUESTÃO DO COMPORTAMENTO JUSTO.
Ao enfrentar a noção de justiça, Hans Kelsen salienta:
A justiça é, portanto, a qualidade de uma específica conduta humana, de uma conduta que consiste no tratamento dado a outros homens. O juízo segundo o qual uma tal conduta é justa ou injusta representa uma apreciação, uma valoração da conduta. A conduta, que é um fato da ordem do ser existente no tempo e no espaço, é confrontada com uma norma de justiça, que estatui um dever-ser. O resultado é um juízo exprimindo que a conduta é tal como – segundo a norma de justiça – deve ser, isto é, que a conduta é valiosa, tem um valor de justiça positivo, ou que a conduta não é como – segundo a norma de justiça – deverá ser, porque é o contrário do que deverá ser, isto é: que a conduta é desvaliosa, tem um valor de justiça negativo. Objeto da apreciação ou valoração é um fato da ordem do ser. Somente um fato da ordem do ser pode, quando confrontado com uma norma ser julgado como valioso ou desvalioso, pode ter um valor positivo ou negativo. Por outras palavras: o que é avaliado, o que pode ser valioso ou desvalioso, ter um valor positivo ou negativo, é a realidade”. (2009, p.42).
Quando Hans Kelsen enfrenta a idéia de justiça em Platão, representante clássico do tipo das normas de justiça de ordem metafísica, afirma:
A justiça é o problema central de toda a sua filosofia. É para solucionar este problema que ele desenvolve a famosa Teoria das Idéias. As idéias são essências transcendentes que existem num outro mundo, num mundo diferente do perceptível pelos nossos sentidos e, por isso, são inacessíveis ao homem, prisioneiro dos mesmos sentidos. Elas representam no essencial valores que devem, na verdade, ser realizados no mundo dos sentidos, mas que jamais podem ser aí plenamente realizados. A idéia principal, aquela à qual todas as outras idéias se subordinam e da qual todas retiram a sua validade, é idéia do Bem absoluto; e esta idéia desempenha na filosofia de Platão o mesmo papel que a idéia de Deus na teologia de qualquer religião.
A idéia de bem contém em si a de justiça – aquela justiça cujo conhecimento visam quase todos os diálogos de Platão. A questão: <<O que é a justiça?>> Identifica-se, portanto, com a questão: <<O que é bem ou o que é o Bem?>>Nos seus diálogos, Platão faz numerosas tentativas para responder a esta pergunta por uma via racional. Todavia, nenhuma dessas tentativas conduz a um resultado definitivo. Quando uma qualquer definição parece ter sido alcançada, Platão logo declara pela boca de Sócrates que são necessárias novas indagações. Platão remete repetidas vezes para um específico método de pensamento abstrato liberto de todas as representações sensíveis, a chamada dialética que – segundo ele afirma – dá àquele que o domina a capacidade de apreender a Idéia. Todavia, ele próprio não emprega este método nos seus diálogos nem tão pouco nos comunica os resultados desta dialética.[2]
Ao caminhar na justiça e o amor de Deus, ou seja, a justiça divina, Hans Kelsen assim discorre:
Ela equivale à justiça que exige que os homens devem ser tratados tal como for conforme à vontade divina, à humanamente incognoscível vontade de Deus, o qual preceitua o bem mas também permite o mal. É absolutamente bom e, ao mesmo tempo, onipotente-pelo qual é autor não só do Bem como também do Mal. Ela equivale, especialmente, à justiça que ensina o Grande Santo. Jesus, depois de ter energicamente rejeitado o princípio <<olho por olho, dente por dente>>, o princípio da retribuição anuncia como sendo a nova, a verdadeira justiça a que se contém no princípio do amor: não retribuir o mal com o mau, mas com o bem, não opor resistência ao mal que nos fazem mas amar quem nos faz mal, sim, amar até os inimigos.
Essa justiça situa-se para além de toda ordem possível numa realidade social; e o amor, que é esta justiça, não pode ser a emoção humana a que nós chamamos amor. Isto não só porque é contra a natureza humana amar os inimigos mas ainda porque Jesus expressamente rejeita o amor humano que liga o homem à mulher, os pais aos filhos. Quem quer seguir Jesus e alcançar o Reino de Deus deve deixar a casa e a fazenda, os pais, os irmãos, a mulher e os filhos. Sim, quem não odeia o seu pai, mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a sua própria vida, não pode ser discípulo de Jesus. O amor que Jesus ensina não é o amor do homem. É o amor através do qual o homem deve tornar-se tão perfeito como o Seu Pai no céu, o qual manda o sol levantar-se sobre os maus e sobre os bons e manda chover sobre justos e injustos. É o amor de Deus – e como tal, completamente diferente do amor do próximo, que é inteiramente humano. O mais estranho nesse amor de Deus é que o temos de aceitar como compatível com a pena cruel, eterna mesmo, que será aplicada ao pecador no Juízo Final; e, portanto, como conciliável como o temor mais profundo de que o homem é capaz, o temor de Deus.
Esta e muitas outras contradições não procurou Jesus esclarecê-las. Pois que, com efeito, ela apenas é contradição para a razão humana limitada, não para a razão absoluta de Deus, que é inacessível ao homem. Por isso ensina Paulo, o primeiro teólogo da religião cristã, que a sabedoria deste mundo é insensatez em face de Deus, que a filosofia, que é conhecimento lógico racional, não é via de acesso à justiça divina, que está encerrada na insondável sabedoria de Deus, que esta justiça apenas nos é revelada por Deus através da fé, que atua através do amor. Paulo conserva-se fiel à doutrina de Jesus da nova justiça, do amor de Deus. Mas reconhece que o amor que Jesus ensina está para além do conhecimento da razão. Ele é um segredo, um dos muitos mistérios da fé.[3]
Sobre justiça e felicidade, o mestre Hans Kelsen tece:
Platão ensina que o justo, e apenas o justo, é feliz; ou que temos de conduzir os homens a crer em tal. E, de fato, o problema da justiça tem uma importância tão fundamental para a vida social dos homens, a aspiração à justiça está tão profundamente enraizada em seus corações porque, no fundo, emana da sua indestrutível aspiração à felicidade.
Nenhuma justiça simplesmente relativa, apreensível pela razão humana, pode atingir este fim. Uma tal justiça relativa apenas conduz a uma satisfação muito parcial. A justiça pela qual o mundo clama, <<a>>justiça por excelência é, pois, a justiça absoluta. Esta é um ideal irracional. Com efeito, ela só pode emanar de uma autoridade transcendente, só pode emanar de Deus. Por isso, a fonte da justiça e, juntamente com ela, também a realização da justiça, têm de ser relegadas do Aquém para o Além – temos que nos contentar na terra com uma justiça simplesmente relativa, que pode ser vislumbrada em cada ordem jurídica positiva e na situação de paz e segurança por esta mais ou menos assegurada. Em vez da felicidade terrena por amor da qual a justiça é tão apaixonadamente exigida, mas que qualquer justiça terrena relativa não pode garantir, surge a bem- aventurança supraterrena que promete a justiça absoluta de Deus àqueles que nele crêem e que, consequentemente, acreditam nela. Tal é o engodo desta eterna ilusão.[4]
Hoje há consenso geral sobre a possibilidade de conhecimentos racionais não estritamente científicos.
Norberto Bobbio (2007) encara o problema da justiça no âmbito do estudo de filosofia do direito.
Na modernidade se potencializaram elementos judaicos e helenísticos. A redução da racionalidade à ciência, vinculando-se a idéia da justiça a de Direito, a do Direito à Lei. Hoje se vive um mundo sem idéia do próprio mundo, até porque o pensar e a prática da totalidade estão em crise, deparando-se com época de transição histórica, sem falar na própria revolução moral. Não há um discurso moral único, por mais que se participe do relativismo.
A crise do direito é uma crise de fundamentação, verdadeiro vazio legal de situações não previstas pelo legislador, sem falar na busca de uma fundamentação ética em pleno quadro, chegando-se a se falar em tecnociência, nova racionalidade; ao invés de se falar apenas em ciência.
Três âmbitos se apresentam para uma Teoria da Justiça, consistentes na distributiva, comutativa e legal. Não há dúvidas de que a justiça supõe o Direito.
Tércio Sampaio Ferraz Junior leciona:
O conceito de justiça, como todas as categorias fundamentais dentro da Filosofia, é um dos mais disputados. O termo costuma caracterizar, de modo geral, aquilo que é justo no sentido de equitativo, congruente, igual. Mas, especificamente refere-se à congruência relativa ao homem, às coisas na sua relatividade face ao homem e aos homens entre si. É nesse sentido, sentido humano, que o termo justiça ganha foros jurídico-filosóficos, convertendo-se em pedra angular de todo edifício jurídico.
Nas mais antigas manifestações do pensamento grego antigo, a justiça não aparece com denominação própria e específica, mas freqüentemente ligada às outras idéias, cujas conotações são invariavelmente míticas. Como tem sido observado nem Homero nem Hesíodo conhecem o vocábulo, mas, para designarem a justiça, de que por certo, tiveram alguma idéia, valem-se de outros vocábulos, como decisão judicial, bom conselho. Têmis, como toda figura mítica, bastante controvertida, é uma das deusas gregas da justiça.Ela é mãe das Horas que presidem a ordem no universo. Têmis é originariamente a conselheira de Zeus, identificada mesmo com sua vontade. Mais tarde, ela já surge como a divindade dos oráculos, promovendo reuniões públicas e propiciando o aparecimento e elaboração das ordenações civis. A outra imagem mítica é Diké, deusa dos julgamentos, filha de Zeus e Têmis. Sua figura liga-se mais tarde não só à decisão, mas também à pena judicial, fazendo-a cruel e vingativa. Importa verificar, no entanto, que na épica grega a justiça não tem a forma da virtude principal, mas é freqüentemente superada pela coragem, a astúcia, virtudes estas cujo caráter dramático é bem mais propício ao desenvolvimento de uma epopéia. Ou, como diz Del Vecchio (1960, p.6), “a própria índole da justiça – virtude equilibradora – a torna menos apta a traduzir-se naqueles movimentos de paixão e contrastes de afetos, de que acima de tudo se alimenta a poesia”. Contudo, mesmo Têmis nem sempre é portadora da concórdia, nos seus conselhos a Zeus, podendo incitar o conflito e a discórdia, o que realmente sucede na ilíada, com a guerra de Tróia. (FERRAZ JR, 2009, p.168)
O mesmo autor, ao encarar a justiça como virtude universal, discorre:
Por outro lado, na linha da virtude universal, é básica uma referência ao pensamento socrático-platônico. A admissão da justiça como virtude primacial já era mais ou menos aceita desde o século VI a.c., consoante as citações, em tom de algo indiscutível e aceito, feitas por Aristóteles, de Theognis, na sua Ética a Nicômaco. Mas é, sem dúvida, no platonismo que esta idéia ganha um estatuto lógico e fundamental, dentro de uma sistemática filosófica. Com efeito, se é verdade que não é o corpo, por perfeito que seja, que torna a alma boa por sua virtude; é a alma boa que, por sua virtude, dá ao corpo toda a perfeição de que ele é capaz, o corpo é, no entretanto, ainda que imagem imperfeita, o instrumento da alma (República, III, 403 d). Pode-se dizer assim que a alma comanda o corpo, para que seu instrumento se torne o mais perfeito possível, pois que a alma está encarregada do que é desprovido da alma e deve ela cuidar de si mesma. Ora, o exercício do poder de mando é assim uma aceitação da lei da necessidade universal, e o homem perfeito deve conformar-se a ela (República, VII, 519 d).
A justiça passa, em Platão, a ser, portanto, o princípio regulador da vida individual, da vida social e de todo o universo. Não lhe cabe, em absoluto, como sucedia aos sofistas, a função específica e limitada de regular uma esfera estrita de aplicação (a sociedade, no caso da sofística) nem encerrá-la na operação de harmonizar as ações individuais (como os pitagóricos e sua reciprocidade), mas sim a função total e sistemática de reger e equilibrar as várias partes num todo orgânico. A justiça torna-se, efetivamente, a virtude universal.[5]
Quando se observa as teorias sobre a justiça, basicamente se agrupam em analíticas (sobre estruturas lógicas e conteúdos lingüísticos do conceito de justiça), empíricas (observação da realidade) e normativas (quais concepções de justiça se pode justificar eticamente).
As teorias processuais se prendem ao desenvolvimento de procedimentos, elencando-se as teorias de argumentação, decisionistas e fundantes da justiça, sendo representantes da Teoria da Argumentação, por exemplo, Perelman e Alexy, sendo representante das Teorias Decisionistas, por exemplo, John Rawls.
A justiça como princípio aparece na seara da Bioética e do Direito. Tomando-se os postulados de John Rawls, este surge como alternativa ao utilitarismo, colocando a justiça como algo inerente ao humano, defendendo os princípios fundamentais do liberalismo, pretende responder quais as condições que a sociedade deveria atingir, tratando da justiça procedimental e da maior liberdade equitativa, da justa igualdade de oportunidades, bem como, do Princípio da Diferença, pois, as desigualdades imerecidas requererem uma compensação.
Esboçando os traços distintivos da Teoria da Justiça, de John Rawls, Roberto Gargarella afirma:
Antes de expor quais são os traços próprios do peculiar contrato hipotético imaginado por Rawls, convém esclarecer algumas questões fundamentais vinculadas a ele. Em primeiro lugar, cabe considerar que o referido contrato tem como objetivo último estabelecer certos princípios básicos de justiça. Esses princípios, no entanto, não visam resolver casos particulares, problemas cotidianos de justiça. Os princípios defendidos por Rawls surgem muito mais como critérios que se destinam a ser aplicados à estrutura básica da sociedade. Como ele mesmo esclarece: “o objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade ou, mais exatamente, o modo como as instituições sociais mais importantes distribuem os direitos e deveres fundamentais, e determinam a divisão das vantagens provenientes da cooperação social. Por instituições mais importantes, entendo a constituição política e as principais disposições econômicas e sociais. Em segundo lugar, convém ressaltar que os princípios resultantes do contrato rawlsiano são aplicáveis a sociedades bem organizadas, nas quais vigoram as circunstâncias de justiça. Uma sociedade bem organizada é aquela direcionada para promover o bem de seus membros. Uma sociedade em que predominam as circunstâncias de justiça é aquela onde não existe nem uma extrema escassez nem uma abundância de bens; onde as pessoas são mais ou menos iguais entre si (quanto a suas capacidades físicas e mentais) e também vulneráveis às agressões dos demais (nesse sentido, por exemplo, uma sociedade hiperprodutiva, como a imaginada na utopia marxista, surgiria anulando, ou melhor, superando as mencionadas circunstâncias de justiça).
Segundo Rawls, para situações como as mencionadas, não existe um critério independente que possa nos dizer o que é justo fazer, embora existam procedimentos que podem ajudar-nos a chegar a resultados equitativos. Para Rawls, isto constitui uma situação de justiça procedimental pura. Por outro lado, seria considerada uma situação de justiça processual imperfeita se existisse um critério independente de justiça, embora não um procedimento capaz de assegurar tal justiça e seria considerada justiça processual perfeita se existisse tanto uma idéia independente e clara do que é um resultado justo como um processo capaz de garantir este resultado. Quanto à escolha dos princípios de justiça, as condições procedimentais imparciais levam, segundo Rawls, ao que ele denomina sistema de justiça como equidade. Nesse sistema, considera-se que os princípios de justiça imparciais são os que resultariam de uma escolha realizada por pessoas livres, racionais e interessadas em si mesmas (não invejosas), colocadas em uma posição de igualdade. Para dar forma a essas condições Rawls recorre à posição original. (1997, p.20)
Aprofundando a questão da justiça sob a ótica do marxismo analítico, Roberto Gargarella prossegue:
A partir da nova preocupação com os microfundamentos, com a averiguação das crenças e motivações dos indivíduos, era quase natural que os marxistas analíticos começassem a se ocupar de temas como o da justiça ou da igualdade, comumente despercebidos (ou menos prezados) pelo marxismo. No entanto, o próprio devenir histórico veio reforçar essas tendências. Sobretudo quando se começou a perceber que o Estado igualitário final, próprio do comunismo, não apareceria como um resultado inevitável da evolução social. Ou quando se observou que, apesar do crescente desenvolvimento produtivo, os problemas da escassez ameaçavam permanecer crônicos. Torno-se imperioso, então, determinar que normas iriam ser usadas para distribuir a escassez presente. Do mesmo modo, tornou-se necessário definir que tipo de igualdade deveria ser buscado como último objetivo social.
Em síntese, nos novos estudos marxistas, o tema da justiça começava a ocupar um primeiro plano. Há pouco tempo, esta questão era praticamente inexistente para a maioria dos marxistas, já que se admitiam a inevitabilidade da revolução proletária, a prática eliminação da escassez e a identificação entre proletários e necessitados.[6]
Citando-se uma das críticas à Teoria da Justiça, de John Rawls, apresenta-se aquela feminista formulada por Catharine MacKinnon, registrada por Roberto Gargarella:
Na literatura feminista, MacKinnon escreveu um dos trabalhos mais originais e mordazes. Suas críticas, em geral, relacionaram-se à teoria liberal como um todo, a partir de uma rejeição à idéia de autonomia, pelo menos tal como esta é apresentada na referida corrente de pensamento. Segundo MacKinnon, a ênfase na autonomia deveria ser deixada de lado, para começar a pensar em um enfoque teórico mais radical que o que domina o enfoque da dominação. De acordo com ela, esse enfoque permitiria descrever e examinar melhor a situação das mulheres no mundo contemporâneo.
O enfoque da dominação apóia-se na idéia de uma distribuição desigual do poder entre homens e mulheres, ao mesmo tempo que objeta a superioridade masculina e a subordinação feminina. De acordo com a mencionada autora, essa subordinação não tem nada a ver com a biologia, ou com a forma diferente como evoluíram os sexos, mas com a política.
(...)
A primeira objeção que MacKinnon apresenta ao liberalismo destina-se a se opor ao individualismo que caracterizaria essa postura teórica.
Em segundo lugar, MacKinnon critica o naturalismo que é atribuído ao liberalismo, e segundo o qual certas características sociais são reduzidas a características naturais. Com essa objeção, a autora pretende assinalar que o liberalismo considera como dadas situações que são, na verdade, produto da política ou, talvez mais especificamente, da dominação masculina (2009, p.86/87)
São embates que se travarão nesse estudo, percorrendo-se, frisam-se mais uma vez, de forma panorâmica e despretensiosa, ao menos alguns dos principais pensadores da história, na tentativa tímida de se buscar alguma resposta.
Retomando Aristóteles, em sua obra “Ética a Nicômaco”, o mesmo, ao analisar o justo e o injusto, assevera:
Uma classe de atos justos se compõe de atos que estão em consonância com alguma virtude e que são prescritos pela lei (por exemplo, a lei não permite expressamente o suicídio e o que a lei não permite expressamente, ela o proíbe). Além disso, quando uma pessoa, violando a lei, causa dano a um outro voluntariamente (excetuados os casos de retaliação), ela age injustamente; e um agente voluntário é aquele que conhece tanto a pessoa a quem atinge com o seu ato como o instrumento que está usando; e que, em um acesso de forte emoção, voluntariamente se apunhala, pratica esse ato contrariando a reta razão da vida e isso a lei não permite; age, portanto, injustamente. Mas contra quem? Certamente contra a cidade, e não contra si mesmo, pois essa pessoa sofre voluntariamente, e ninguém é voluntariamente tratado com injustiça. Por essa razão, a cidade pune o suicida, punindo-o com uma certa perda de direitos civis, pois ele trata a cidade injustamente.
(...)
O justo e o injusto sempre envolvem mais de uma pessoa. Além disso, a ação injusta é voluntária e praticada por escolha e a ela pertence a iniciativa (não se diz que um homem agiu injustamente se, tendo sofrido um mal, retribui com o mesmo mal); mas se alguém pratica um dano a si próprio, sofre e pratica as mesmas coisas a um só tempo.
De um modo geral, a pergunta “pode um homem tratar injustamente a si mesmo?” é respondida também pela distinção que aplicamos a outra pergunta: “pode um homem ser voluntariamente tratado injustamente? (2001, p.126/127).
Após analisar a questão da justiça no plano concreto, relacional, o filósofo ainda acrescenta:
Em sentido metafórico e em razão de uma certa analogia, há uma espécie de justiça no homem, não em relação a ele mesmo, mas entre certas partes suas. Não se trata de uma justiça de qualquer espécie, mas daquela que prevalece entre amo e escravo ou entre pai e filho. Com efeito, as relações que a parte racional da alma guarda com a parte irracional são desse tipo e é tendo em vista essas partes que se pensa que um homem pode ser injusto para consigo mesmo, porque tais partes podem sofrer alguma coisa contrária aos seus desejos, de tal modo que parece haver uma justiça entre elas, como aquela que existe entre governante e governado.
E era o tínhamos a dizer acerca da justiça e das outras virtudes morais. Como dissemos anteriormente, deve-se preferir o meio-termo e não o excesso ou a falta, e o meio termo é determinado pelos ditames da reta razão.[7]
Eminente representante do pensamento do século XX, John Rawls (1997) pensou na justiça numa sociedade bem ordenada, contudo, este é um dos pontos que ensejam críticas à sua teoria.
Ressalta-se, desde já, que a análise não se fará com observância de rígida ordem cronológica de aparecimento de observadores e estudiosos.
A partir do filósofo Kant (2005) aparece um problema, pois, a Europa se depara com o esgotamento da síntese metafísica, realidade que se faz clara através da descoberta científica de que a Terra não é o centro do universo, bem como, a perda pelo catolicismo do monopólio da interpretação da vontade de Deus, conjugando-se, igualmente, o aparecimento da América, surgindo o estranho, o indígena, o outro no cenário mundial.
Tais pontos ensejam o afastamento da metafísica, deixando-a de lado, visto que, incapaz de responder aos novos problemas, transmudando-se em fonte de guerra, violência e até mesmo de conservadorismo, a fim de impedir o surgimento de novos modelos.
Assim, a ciência moderna surge a partir da negação da metafísica, verificando-se no século XIX a possibilidade de percepção da história, do tempo, do espaço, as idéias de progresso e de evolução. E lança-se nova indagação: perante tal realidade qual seria a postura humana?
Justiça e poder são conceitos harmônicos e, em caso positivo, qual seria o respectivo grau?
Maquiavel escreve:
De fato, o modo como vivemos é tão diferente daquele como deveríamos viver, que quem despreza o que se faz e se atém ao que deveria ser feito aprenderá a maneira de se arruinar e não a defender-se. Quem quiser praticar sempre a bondade em tudo o que faz está fadado a sofrer, entre tantos que não são bons.É necessário, portanto, que o príncipe que deseja manter-se aprenda a agir sem bondade, faculdade que usará ou não, em cada caso, conforme seja necessário. Deixando de lado as coisas imaginárias que dizem respeito aos príncipes e falando das que existem realmente, pode-se observar que todos os homens – especialmente os soberanos, pela sua posição mais elevada – têm a reputação de certas qualidades, que lhes valem elogios ou vitupérios. Assim, alguns são tidos como liberais, outros por miseráveis (para usar um termo toscano, misero, que designa o que usa de má vontade o que é seu, enquanto avaro significa entre nós quem deseja possuir, pela rapina); um é considerado generoso, o outro ávido; um, cruel, o outro misericordioso; um, perjuro, o outro fiel; um, efeminado e pusilânime, o outro bravo e corajoso; humanitário ou altaneiro; lascivo ou casto; franco ou astuto; difícil ou fácil; sério ou frívolo; religioso ou incrédulo; e assim por diante.
Reconhecemos todos que seria muito louvável que um príncipe possuísse todas as boas qualidades acima numeradas, mas como isso não é possível, pois as condições humanas não o permitem, é preciso que tenha a prudência necessária para evitar o escândalo provocado pelos vícios que poderiam abalar seu reinado, evitando os outros se for possível; se não for, poderá praticá-los com menores escrúpulos. Contudo, não deverá se importar com a prática escandalosa daqueles vícios sem os quais seria difícil salvar o Estado, isto porque, se se refletir bem, será fácil perceber que certas qualidades que parecem virtudes levam à ruína, e outras que parecem vícios trazem como resultado o aumento da segurança e do bem-estar. (2009, p.82/83)
Com base nos relatos e diante da vivência social, poderia a justiça figurar como critério certo, norteador e justificador da legislação e práticas sociais?
Sobre a criação da sociedade perfeita, Thomas More, escreve:
Um mapa do mundo em que não aparece o país Utopia não merece ser guardado. Esta máxima de Oscar Wilde expressa o anseio permanente de criação de sociedade perfeita. Ideal irrealizável em sua plenitude, a utopia se materializa parcialmente, no entanto, graças ao progresso científico e tecnológico.
Utopia é toda proposta ideal de organização da sociedade em que, por meio de novas condições econômicas, políticas e sociais, se pretende alcançar um estado de satisfação geral.
Nesse sentido, a utopia é a contrapartida para o futuro do mito de uma idade áurea, que teria existido em passado remoto. Comum a essas duas projeções é a oposição teórica às instituições sociais vigentes. Segundo Karl Mannheim, autor de Ideologie und Utopie (1929; Ideologia e utopia), utopias são idéias inspiradoras das classes em rebelião e ascensão, em oposição às ideologias que racionalizam e estratificam o pensamento das classes dominantes.
A palavra “utopia” que em grego significa “em lugar nenhum”, foi usada por Thomas More para designar a ilha imaginária descrita em outra obra. More faz severas críticas à sociedade inglesa e européia, ao mesmo tempo que apresenta a ilha de Utopia como um lugar em que a sabedoria e a felicidade do povo decorrem de um sistema social, legal e político perfeito, guiado pela razão.A Utopia fez muito sucesso na época e tornou-se modelo de todas as concepções posteriores do gênero. (2009, p 121 ).
Jean-Jacques Rousseau, ao tomar em consideração o povo, esclarece:
Assim como o arquiteto, antes de erguer um grande edifício, observa e sonda o chão, e examina se pode sustentar o peso da construção, da mesma forma o sábio instituidor não começa a formar boas leis em si mesmas antes de ter observado se o povo a quem ele as destina é capaz de as suportar. Por esse motivo recusou Platão dar leis aos arcádios e aos cirênios, sabendo que esses dois povos eram ricos e não podiam sofrer a igualdade; por essa razão se viram em Creta boas leis e maus homens, porque Minos disciplinou um povo carregado de vícios. (2002, p.150).
Aliada à percepção do tempo e do espaço, surge a cultura, a verificação de que produzimos nosso meio e de que este nos produz, erguendo-se a valorização do ente, ou por outras palavras, a mirada de que o ser existe, mas tal existência só acontece na medida em que se concretiza no ente.
Kant (2005), a fim de resolver o problema da metafísica, transforma a filosofia numa teoria do conhecimento, revelando-se como fundamental o sentido dado a aquilo que conhecemos. Portanto, o importante não seria definir a justiça, mas sim a descoberta do sentido que é dado à mesma.
Porém, existe igualmente o caminho fenomenológico, originário da Alemanha, reduzindo-se em poucas e apertadas palavras na afirmação de que não se consegue estabelecer um diálogo sobre o ser em si, a justiça, por exemplo, mas, há experiências de como o ser aparece, se manifesta, o que denota a importância do fato histórico.
Prosseguindo-se na investigação inicialmente sugerida, se a justiça puder ser analisada como uma preocupação universal, como se manifestará nas particularidades?
A própria questão da universalidade dos direitos humanos não carregaria algo ligado a uma pretensão hegemônica? E, há lugar para se pensar o mundo a partir da minoria, com a resolução do localizado, do concreto, o que significaria a síntese permanentemente aberta, até porque inacabada?
O que a experiência traz é o conceito de que se trata de espaços onde sínteses históricas resolvem problemas localizados.
Neste aspecto, olhando-se com os elementos de um pensamento localizado hegemônico como foi enfrentada a noção de justiça, tem-se a representação mitológica, ou mesmo Aristóteles, o qual apresenta a justiça como uma virtude, ou o Cristianismo, onde aparece como a vontade de ser justo, lembrando-se, ainda, São Tomás de Aquino, que trata da justiça como amor, ao passo que um retorno a Aristóteles revela a justiça como equidade, até se chegar na época moderna, do Leviatã, do contrato social, ou a idéia de justiça de John Rawls, o qual salienta que na medida em que o recurso irá beneficiar, tem-se uma sociedade mais justa.
Interessante que, recentemente, o tema do amor reaparece na comunicação, o do respeito ao outro, o que torna necessário o diálogo.
Portanto, refaz-se a indagação: existe a possibilidade da concepção da justiça com racionalidade numa sociedade pluralista? Sabe-se que o conceito de desencantamento do mundo aparece em Max Weber, passando o mundo a ser explicado e a própria religião por critérios racionalistas, colocando-se a problemática da racionalização na forma de se justificar as posturas num mundo onde não há consenso de base, uma situação de desencantamento.
Todavia, tal fenômeno é marcado por aspectos negativo e positivo, traduzindo-se o aspecto positivo na retirada do mundo da mentalidade mágica, libertando do obscurantismo, o que abriu espaço para o Direito como elemento fundamental da solidariedade e igualdade entre as pessoas, surgindo a idéia de se resistir a toda forma de violência.
O aspecto negativo emerge do futuro, de como enfrentá-lo, como herdeiros da secularização e do desencantamento. Seria a justiça um valor simplesmente, ou se traduz em um valor que tem que buscar apoio, já que não suficientemente forte, ou poderia se negar a qualidade de valor?
No mundo contemporâneo, firma-se a idéia de que a construção do mundo não poderá ter um rosto somente, colocando-se o desafio de se resistir à negação do outro, constatando-se que o eu se realiza, na pós-modernidade no seu encontro com o outro.
Sabe-se que cada sociedade apresenta um modelo de justo, ao mesmo tempo em que a justiça não é um dado pronto, precisando ser construída. No mundo moderno a justiça é chamada a ser desenhada com racionalidade, sendo à base da fundamentação não o absolutismo, mas sim a argumentação.
A representação mítica que se fazia em Roma da deusa Justiça trazia a balança, contrariamente àquela verificada na Grécia, onde se encontra a espada. Nas representações mais antigas era a figura de uma mulher segurando a balança, encontrando-se, ainda, o cetro, símbolo da majestade e da autoridade, sendo que no correr dos séculos houve a substituição do cetro pela espada.
Não há dúvidas de que a justiça tem a ver com o equilíbrio da balança, mas também se fala que a justiça é cega, tendo os olhos vendados. A romana era assim, ao passo que a grega tinha os olhos bem abertos.
Retomando Aristóteles, tem-se que para o excesso, seja no mais ou no menos, o que se verifica, em última análise, é a injustiça. Os gregos tinham uma noção ligada a tal dualismo, ou seja, justo ou injusto.
O fato de a justiça romana apresentar símbolo com olhos vendados traduz a valorização da audição, possibilitando ouvir os interessados, guardando ligação com a ponderação, pois, a verdade se obtém a partir de um diálogo. A justiça grega, com a presença do cetro, coloca o problema do poder e da verdade tirânica: ou é; ou não é.
A noção de justiça crê-se, surge simultaneamente com a idéia da vingança, até porque na representação mitológica tem-se a presença da espada e do poder, o que é perceptível em sociedades primitivas, contudo, a idéia de vingança é algo que perdura no tempo, trazendo-se os países islâmicos, onde se constata forte elo da justiça com a vingança.
Sendo assim, pode-se concluir que o tema da justiça traz idéias de verdade, ponderação, equilíbrio, mas também está ligada à idéia de vingança, sabendo-se que tais temas não são congruentes, até porque se de um lado surge a pureza, do outro revela-se elemento até mesquinho.
E no campo da justiça, como se tratar a questão da retribuição? Nos povos germânicos até crimes com morte eram retribuídos com pena pecuniária, sendo que na tradição judaico-cristã proíbe-se pena pecuniária em homicídio, delineando-se diferentes formas de se olhar a questão.
Na retribuição hierárquica encara-se a Justiça em termos de poder e hierarquia, onde não se conversa muito, modelo vertical, contraposto ao modelo horizontal, aquele equilíbrio da balança, podendo-se afirmar que no ser humano o modelo vertical tem suas raízes mais arraigadas no lado primata, ao passo que o modelo horizontal sublima o lado mais humano. Ao retribuir ora se usa o modelo horizontal, ora o vertical. Na verdade, ao se encarar a justiça numa perspectiva retributiva, ambos os modelos se imbricam.
Voltando, mais uma vez, a Aristóteles, o qual insere a justiça dentro da Ética, tratando-a como virtude, conclui o mestre, diferentemente de Platão, que a justiça é mais ação, ou seja, ninguém é justo porque tem a capacidade de ser justo, mas sim porque age, faz coisas justas, algo que se percebe como virtude num processo constante, diferentemente de Platão, que encarou o tema como algo que o ser humano possuía traduzida em potencialidade.
A modernidade quis descobrir padrões fixos de comportamento, os quais hoje desapareceram. A injustiça, numa visão aristotélica, abarcaria o excesso para mais ou para menos, figurando a justiça como temperança, colocando-se a figura da equidade como a própria justiça levada no particular, em cada caso, concretamente.
O modelo horizontal, já referido, traduz verdadeira comutação, justiça comutativa, base, por exemplo, de São Tomás de Aquino. Quando se analisa o mundo romano, surge o tema da vontade, o que em Aristóteles e Platão se aproxima do instinto, do apetite.
Já em Roma, começa-se a esboçar a vontade como livre arbítrio, aquela vontade constante de dar a cada um, o que é seu, própria do Direito Justiniano. E a vontade vai alterar o modo como se percebe a própria organização da sociedade, até porque as sociedades gregas e romanas eram estamentais.
O cristianismo marcou a renovação da vontade, sua reinterpretação, contudo, tal ponto não traduz necessário equilíbrio, revelando-se, diversamente, até mesmo desequilíbrio de emoções.
Na filosofia cristã a vontade passa a ser uma faculdade, o livre arbítrio passa a ser possibilidade simultânea de querer e não querer, reolhando-se o homem virtuoso não como aquele que age, mas como aquele que quer, deslocando-se do agir para o querer, diversamente daquela idéia presente em Aristóteles onde não bastava alguém querer ser justo, mas necessariamente deveria agir de forma justa, transmudando-se para o raciocínio de que alguém pode ser justo na intimidade, revelando-se como decisivo aquilo que se apresenta na intimidade, o que faz com que o tema da justiça se interiorize, sem falar no problema de como se lidar com tamanha subjetividade.
Deus seria o único capaz de ver se as intenções corresponderiam aos atos, operando o julgamento total e, enquanto isto não acontece, verificam-se os juízos humanos.
A justiça divina seria um paradigma e a humana figura híbrida, fusão do humano e do externo na medida do possível, verificando-se na era moderna esta percepção da justiça ligada à vontade, do problema de se ligar interno/externo e da própria percepção da justiça nas relações desproporcionais, da justiça como um problema de consciência, onde cada um é sede do que é justo e decide o que revela o problema do radicalismo numa forma total, até porque como resolver tamanha subjetivação se já não se tem a relação homem/Deus para apaziguar, pois no lugar de tal relação surgiu a relação homem/Estado, sem falar nas idéias de razão e ciência.
Sobre razão e ciência, colocam-se mundos diversos: o da consciência ética e o da verdade e a verdade é um problema da ciência, o que enseja uma segunda separação, consubstanciada no caráter vinculativo das normas da justiça, tornando-se um tema restrito à consciência, desvinculando-se o subjetivo daquilo que se mostra objetivo, este realizado pelo Direito, o qual se separa da justiça, ou melhor, em linhas gerais, o Direito seria aquele que vincula objetivamente e a justiça subjetivamente. O Estado burocrático seria sede do Direito, não da justiça.
Na era moderna a justiça vem como a realização de um Estado racional, o que implica numa discussão acerca de uma justiça universal, nova problemática, até porque como se lidar com a questão da vontade das minorias.
Fato é, após a caminhada até aqui feita, que não se duvida da dificuldade de se conceituar a Justiça, todavia, em que pese tal constatação, não se nega que se trata de algo que se vivencia, como, por exemplo, o amor, a verdade e o poder, verdadeiros códigos que nos permitem a prática de certas relações, porém, são códigos móveis, alvo de um processo contínuo de alteração.
Mas, mesmo os códigos mais abstratos possuem uma base vital, algo que inter-relaciona, sua base simbólica. A justiça é um código, código este inicialmente estabelecido como ação, conduta, virtude, ato de vontade, consciência, organização positiva etc., trabalhando com uma infinidade de símbolos, até mesmo revelando em sua base simbiótica a própria inveja, julgando-se o outro como aquele não digno do que possui, sabendo-se que tal afirmação pode causar certo incômodo.
3. Considerações finais
A justiça não é inveja, acreditando-se que na sua base esteja a igualdade, o elemento inter-relacional, aquilo que diz respeito ao outro, à socialização e ao se comunicar o homem usa, dentre vários códigos, o da justiça.
Estas são as considerações objeto do presente estudo, sem a menor pretensão de se esclarecer plenamente assunto tão sujeito a armadilhas.
Sandro Lucio Barbosa Pitassi é titular da 5ª Vara Cível Regional do Méier - Rio de Janeiro, capital.
4. Referências
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ROSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2002.
[1] Artigo apresentado à disciplina de Teoria Geral do Direito – Professor Dr. Eduardo Luis Tinant
[2] Idem
[3] Idem
[4] Idem
[5] Idem
[6] Idem
[7] Idem