401 - A competência recursal na Lei nº 11.340/06 e uma interpretação conforme a duração razoável do processo e o princípio da igualdade
ÉRICA MARCELINA CRUZ - Juíza de Direito
1. Introdução
Fala-se muito em interpretação teleológica ou finalística quando se pretende descobrir qual foi a intenção do legislador ao editar um texto normativo. No caso da Lei nº 11.340 de 07 de agosto de 2006, o que parecia, inicialmente, transparecer de forma inconteste, ou seja, que o objetivo do legislador era a proteção da mulher, que viveu, e ainda vive, em uma sociedade patriarcal, tornou-se escopo questionável.
Com alguns anos de vigência da lei, muitos questionamentos surgiram, dentre eles: O diploma legislativo é constitucional? Há ofensa ao princípio da igualdade? É possível ao julgador aplicar a, como ficou conhecida, Lei Maria da Penha, em favor do sexo masculino? A proteção legislativa abarca todas as situações em que figurar, no pólo passivo da relação jurídica de direito penal, uma mulher, ou seja, sempre que a vítima for mulher deve-se suscitar o âmbito de proteção da Lei nº 11.340/06 ou apenas ela terá aplicação nos casos em que a violência ou ato delitivo estiverem fundados na motivação de gênero, ou seja, no “ataque em decorrência do gênero”, no caso, gênero feminino, ou ainda, na denominada “violência de gênero”?
Estas e outras indagações constituem pontos cruciais que serão sedimentados ao longo do tempo, mas fica a dúvida: será que os operadores do direito estão preparados para operar o diploma legislativo, isto é, será que o juiz, o promotor de justiça, o delegado de polícia, o advogado conhecem as discussões ou têm a compreensão do conceito de “violência de gênero”? A busca de respostas para estas e outras indagações é o que se pretende ao longo do presente estudo, principalmente para que se possa entender por qual razão os Tribunais de Justiça dos Estados, em um primeiro momento, passaram a fixar a competência dos Colégios Recursais para apreciar os recursos contra sentenças nas quais se discutia a prática de crimes de ameaça e lesões corporais do agressor em face da vítima mulher, sua cônjuge, companheira, ex-companheira, namorada, etc.
A divergência a respeito da competência para apreciar tais recursos, isto é, se dos Tribunais de Justiça ou dos Colégios Recursais, ganhou tamanho vulto a ponto de surgirem inúmeros conflitos negativos de competência para apreciação do Colendo Superior Tribunal de Justiça, como adiante se verá.
Diante da celeuma, principalmente tendo em vista o disposto no artigo 41[1] da Lei nº 11.340/06 é que a Magistrada que subscreve o presente ensaio, representando a Associação Paulista de Magistrados-Apamagis, juntamente com o Magistrado do Estado do Rio de Janeiro, Dr. Marcelo Castro Anátocles, formularam e defenderam, no II – FONAVID – Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, realizado em João Pessoa-PB, de 24 a 26 de novembro de 2010, a proposta do enunciado criminal, posteriormente, aprovada, em plenário, em votação por maioria qualificada, do seguinte teor: “A competência para apreciar os recursos contra as decisões proferidas pelos juizados de violência doméstica contra mulher é dos Tribunais de Justiça, independentemente da pena”.
As razões pelas quais os recursos devem ser encaminhados ao Tribunal de Justiça dos Estados, bem como os prejuízos que a divergência acerca da competência podem ocasionar para a prestação da tutela jurisdicional célere, efetiva e em proteção à mulher é o que se pretende desenvolver com o presente ensaio.
2. Desenvolvimento
A divergência para saber se eram os Colégios Recursais ou os Tribunais de Justiça dos Estados e Tribunais Regionais Federais o órgão competente para apreciar o recurso contra sentença proferida, sob o manto da lei nº 11.340/2006 surgiu em virtude do texto normativo, em vários dispositivos se referir à Vara competente para processar a lide em primeiro grau como sendo “Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher”. Vejamos, os mais significativos destes dispositivos.
O artigo 1º do diploma legal em análise preceitua que a lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra mulher e, ainda, “dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher”. (g.n.)
Na sequência, cumpre citar o disposto no artigo 14 da Lei Maria da Penha que dispõe que os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher são órgãos da Justiça Ordinária, com competência mista, ou seja, cível e criminal. Ressalte-se que, ao tratar da composição da justiça ordinária e da competência acumulativa (cível e criminal), o legislador utilizou, novamente, o termo “Juizados”.
Entretanto, cumpre perquirir qual o sentido que se deve atribuir ao termo “Juizado”. Seriam os juizados especiais criminais tais como previstos na Lei nº 9.099/95? A resposta só pode ser negativa, como adiante se demonstrará.
Primeiramente, diga-se que o objetivo do legislador ao utilizar ao termo “Juizados” foi imprimir ao feito a celeridade e a informalidade no atendimento à mulher, com auxílio da equipe multidisciplinar sem as formalidades do rito ordinário processual penal, porém, não se pretendeu que os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher fossem “uma outra modalidade de juizado especial criminal”, independentemente da pena cominada ao crime objeto de investigação.
O primeiro argumento a favor desta constatação está no próprio diploma legal, mais especificamente no seu artigo 33 ao estatuir que: “enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal”. Ora, se o legislador quisesse ter equiparado os juizados de violência doméstica aos juizados especiais criminais e, consequentemente, abrir a possibilidade de se utilizar todo a sua estrutura (isto é, a possibilidade de apreciação de recursos pelas Turmas ou Colégios Recursais), certamente, a previsão do artigo em comento seria diversa, ou seja, o legislador teria dito que enquanto não instalados os juizados de violência doméstica, o processamento dos crimes dar-se-ia pelo Jecrim (Juizado Especial Criminal).
Ao revés, o diploma legal fixou a competência das Varas Criminais para apreciação dos feitos, de natureza cível ou criminal, envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, com o intuito clarividente de não classificar tais delitos como crimes de menor potencial ofensivo.
Frise-se, de outra banda, que, quando o artigo 41 da lei nº 11.340/06 vedou a aplicação da lei nº 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, não se proibiu apenas a aplicação de institutos benéficos ao réu que comete a infração, mas sim, vedou-se, também, a aplicação do procedimento menos gravoso dos juizados especiais criminais, tal como o exame do recurso pelos colégios recursais, na medida em que os delitos sob a égide da lei nº 11.340/06 nunca serão classificados como infrações de menor potencial ofensivo.
Interpretação diversa afrontaria o próprio artigo 4º da lei nº 11.340/06 que determina que a interpretação dos dispositivos da lei Maria da Penha deve considerar os fins sociais e especialmente as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Ora, dentre os fins sociais podemos citar a necessidade de aplicação do direito ao caso concreto de forma a transformar a sociedade atual, ainda com ranços patriarcais, em uma sociedade mais justa e igualitária, tal como determina o artigo da 3º incisos I e III da Constituição Federal.
Nesta toada, fato é que, não obstante os esforços dos mais diversificados setores da sociedade civil, ainda existe um desequilíbrio na posição do homem e da mulher na sociedade hodierna. Se hoje caminhamos para a igualdade material concretizada, fato é que ainda não atingimos o seu ápice e há muito a fazer. Entretanto, a aplicação do rito processual da lei nº 9.099/95 ainda que em grau recursal, ou seja, o permissivo para que os recursos oriundos dos ditos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher sejam examinados pelo Colégio Recursal traduz uma postura de tratar os crimes contra a mulher, fundados na violência de gênero como algo que não merece punição mais severa, prejudicando a efetiva prevenção de delitos de tal jaez. Esta postura contraria todo o sistema de proteção criado, pois justamente o que buscou o legislador, com a lei nº 11.340/06, é a assistência protetiva à mulher, com postura pró-ativa das autoridades policiais e judiciárias, especialmente, para o combate e prevenção aos delitos, assim como para aplicação de sanções mais severas e efetivas para erradicar a violência de gênero em prol da sociedade mais justa, igualitária e equitativa.
Recordo-me do momento em que, como magistrada atuante no Colégio Recursal da 23ª Circunscrição da Comarca de Botucatu - Estado de São Paulo, fui sorteada para ser relatora da Apelação nº 251/2010. No caso em exame, o réu, D.A.S. fora condenado à pena privativa de liberdade de um mês e cinco dias de detenção, a ser cumprida em regime aberto, pela prática do crime previsto no artigo 147 “caput” do CP. Foi beneficiado com o sursis, por preencher os requisitos do artigo 77 do CP. Isto porque ameaçara sua ex-amásia, J.A.A., por palavras, de causar-lhe mal injusto e grave. No dia dos fatos, o réu (recorrente) telefonara para a vítima e proferira contra ela as seguintes ameaças de morte: “de hoje você não passa”, “se você sair de casa hoje eu vou te matar”. Após, o recorrente se dirigiu à residência da vítima e, na presença de seu filho menor, disse que a mataria. Nas razões recursais, o réu sustentava, basicamente, a ausência de provas para condenação e formação de um juízo de certeza quanto à autoria e materialidade do crime. Alegava que as palavras teriam sido proferidas no calor da discussão. Em um primeiro momento, os autos foram encaminhados ao Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, porém, foi determinada a remessa do feito ao Colégio Recursal da 23ª Circunscrição, por, segundo entendimento sufragado no voto proferido, ser o referido colégio, o órgão competente para apreciar o recurso. O Desembargador Relator considerou o delito como infração de menor potencial ofensivo e, portanto, de competência do juizado criminal, nos termos do artigo 61 da Lei 9099/95.
Naquela época, ao ser sorteada como relatora, no Colégio Recursal, já esbocei entendimento diverso, afirmando que a infração que caracteriza violência doméstica e que, portanto, está sob a regência da lei nº 11.340/2006 não pode ser considerada infração de menor potencial ofensivo nos moldes da lei nº 9.099/95. Como argumentos, elenquei o disposto no artigo 14 do referido, afirmando que a lei específica criou os juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, órgãos da justiça comum, com competência cumulativa, a saber: cível e criminal. Evitando-se, assim, a dissociação da justiça, que antes da lei obrigava a mulher a percorrer tanto o juízo criminal quanto o cível, para resolver seu problema com o agressor. A lei uniu as competências em um só magistrado que deve estar apto para desempenhar este mister.
A idéia é a de que, no mesmo processo, puna-se o agressor na órbita criminal, tomando-se as medidas de natureza cível como a separação do casal. Há a punição do agressor e a homologação do acordo ou a fixação de alimentos, guarda de filhos, divisão de bens etc.
A respeito, mencionei o Comunicado nº 85/2006 do TJ/SP, no seguinte sentido: Ocorre que o art. 41 da Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha dispõe que “aos crimes de violência contra a mulher não se aplica a lei 9099/95”. Acrescentei, por fim, que a prolação da sentença que condenou o recorrente pela prática de crime de ameaça contra sua ex-amásia se dera por Magistrada investida nas funções de Juiz da 2º Vara da Comarca de Conchas-SP e não no cargo de Magistrado atuante no Juizado Especial Criminal. Na sequência, suscitei conflito negativo de competência junto ao Colendo Superior Tribunal de Justiça.
Assim, em virtude do caso emblemático acima narrado, pude constar os inúmeros conflitos negativos de competência suscitados ao referido Tribunal Superior.
Nesta quadra, não se pode olvidar o Conflito de Competência nº 89.002-SP (2007/0195003-2), STJ, de relatoria da Eminente Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG), tratando-se de ação penal na qual figurou como autora a Justiça Pública e como réu Carlos Eduardo de Souza, Suscitante: Colégio Recursal de Jundiaí-SP, Suscitado: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e que ficou estabelecido que o Colendo Superior Tribunal de Justiça é o órgão jurisdicional competente para dirimir conflito de competência envolvendo os Tribunais de Justiças do Estados e os Colégios Recursais respectivos.
No v. acórdão, estabeleceu-se a competência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para apreciar recurso de sentença proferida por Magistrado atuante na Vara Criminal Comum. Para aclarar a questão, cumpre transcrever trechos do v. aresto em comento: “(...) O Juízo suscitado remeteu o processo ao Colégio Recursal por se tratar de apelação contra sentença que desclassificou a conduta do réu para crime de menor potencial ofensivo (fl. 109). Porém, o Juízo suscitante entendeu ser incompetente para julgar o recurso, eis que a sentença atacada fora proferida por Juiz de Direito da Vara Criminal Comum, cujo órgão jurisdicional hierarquicamente superior seria o Juízo suscitado (fl. 125/128). Examinei os autos e entendo que a competência para julgar o presente feito é do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Como sabido, é o Tribunal de Justiça o órgão competente para julgar eventual recurso contra decisão de Juiz de Direito de 1ª Instância a ele vinculado. Os Colégios Recursais dos Juizados Especiais apenas possuem competência para apreciar os recursos aviados contra decisões prolatadas no âmbito dos próprios Juizados, não podendo ir além disso”. (g.n.).
Acerca do tema, tem-se, também, o Conflito de Competência nº 100.654 – MG - STJ, em que foi suscitante o Juízo de Direito do Juizado Especial Criminal de Conselheiro Lafaiete – MG e Suscitado o Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete. Com o brilhantismo que lhe é peculiar em todos os seu votos, a Douta Ministra Laurita Vaz decidiu em caso no qual o réu era suspeito de ameaçar a sua ex-namorada que a competência para apreciar a fato criminoso estava afeta do Juízo de Direito da 1.ª Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete/MG, justamente por não se tratar de infração de menor potencial ofensivo que ensejava a atuação do Juízo do Juizado Especial e consequentemente do Colégio Recursal respectivo. É mister trazer à colação os ensinamentos da Consagrada Corte Superior, nos termos do voto da culta Relatora: “(...) Eg. Terceira Seção, em consonância com o Plenário da Suprema Corte, consolidou o entendimento de que, por não haver vinculação jurisdicional entre Juízes das Turmas Recursais e os Tribunais de Justiça, porque a despeito da inegável hierarquia administrativo-funcional, as decisões proferidas pelo segundo grau de jurisdição da Justiça Especializada não se submetem à revisão por parte do respectivo Tribunal - deverá o conflito de competência ser decidido por esta Corte Superior de Justiça, a teor do art. 105, inciso I, alínea d, da Constituição Federal, que dispõe ser da competência deste Tribunal processar e julgar, originariamente, "os conflitos de competência entre quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no art. 102, I, o, bem como entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais diversos." Noutra vertente, cabe esclarecer que a Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006, a denominada Lei Maria da Penha, objetivou criar formas de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, conforme o art. 226, § 8.º, da Constituição Federal e Convenções Internacionais. Cabe transcrever os arts. 5.º e 7.º da mencionada legislação, in verbis: "Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual." "Art. 7.º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria." Depreende-se que a legislação teve o intuito de proteger a mulher da violência doméstica e familiar que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, mas o crime deve ser cometido no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto. Frise-se que a legislação determina que qualquer relação íntima de afeto, na qual o agente conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Contudo, é necessário salientar que as relações íntimas de afeto como o namoro, o noivado ou outros relacionamentos devem ser analisados em face do caso concreto para se verificar a aplicação da Lei Maria da Penha. Por exemplo, não se pode ampliar o termo relação íntima de afeto para abarcar um relacionamento passageiro, fugaz ou esporádico. Segundo Maria Berenice Dias, pode-se incluir em relação íntima de afeto "vínculos afetivos que fogem ao conceito de família e de entidade familiar nem por isso deixam de ser marcados pela violência. Assim, namorados e noivos, mesmo que não vivam sob o mesmo teto, mas resultando a situação de violência do relacionamento, faz com que a mulher mereça o abrigo da Lei Maria da Penha. Para a configuração de violência doméstica é necessário um nexo entre a agressão e a situação que a gerou, ou seja, a relação íntima de afeto deve ser a causa da violência" (in A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo, RT, 2007, p. 45). Já o autor Sérgio Ricardo de Souza, entende que o "inciso III se encaixa como uma luva em relação àquelas situações em que a mulher tenha mantido relacionamento que caracterize casamento, convivência (relação heterossexual ou homoafetiva) ou mesmo namoro, com algum homem (ou mulher) e que, findo o relacionamento, esteja sofrendo algum constrangimento físico ou psicológico decorrente do inconformismo do (a) ex-parceiro (a), situação esta em que o legislador ultrapassou a formalidade do vínculo de natureza doméstica e familiar, contentando-se apenas com a presença da 'relação íntima de afeto [...] independentemente de coabitação" (in Comentário à Lei de Combate à Violência contra a Mulher. Juruá, 2007, p. 47). Na hipótese, cinge-se a questão em definir a competência para processar e julgar a possível conduta perpetrada por Anderson José Geraldo, in verbis: "Que quanto aos fatos esclarece: QUE comparece a esta Unidade Policial espontaneamente e quanto aos fatos noticiados no BOPM 9193 (27/07/08), esclarece QUE namorou ANDERSON durante 1 anos e 10 meses, porém não coabitaram neste período, bem como não nasceram filhos desta união; QUE o relacionamento encerrou-se em março do corrente ano, contudo ANDERSON não aceita o fim do namoro, e passou a perturbar a declarante, QUE ANDERSON, após ter tomado conhecimento de que a declarante estaria namorando outra pessoa, passou ameaçá-la de morte [...] QUE a declarante ressalta que constantemente é ameaçada por ANDERSON, dizendo que se a declarante não ficar com ele, não ficará com mais ninguém." (fl. 02) Como se vê, vislumbra-se elementos aptos a indicar que as supostas ameaças decorreram do término unilateral do namoro - relação íntima de afeto -, que durou 01 ano e 10 meses. Observa-se, ainda, que foram ameaças reiteradas, existindo até ameaça de morte. Diante dessas considerações, a possível conduta praticada configura-se como violência doméstica contra a mulher por estar vinculada à relação íntima de afeto, que existiu entre agressor e ofendida, inserindo-se no inciso III do art. 5.º da Lei Maria da Penha, ensejando, portanto, a competência da Justiça Comum Estadual ou Juizado Especializado. Nesse diapasão: "CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA. RELAÇÃO DE NAMORO. DECISÃO DA 3ª SEÇÃO DO STJ. AFETO E CONVIVÊNCIA INDEPENDENTE DE COABITAÇÃO. CARACTERIZAÇÃO DE ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR. LEI Nº 11.340/2006. APLICAÇÃO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA CRIMINAL. 1. Caracteriza violência doméstica, para os efeitos da Lei 11.340/2006, quaisquer agressões físicas, sexuais ou psicológicas causadas por homem em uma mulher com quem tenha convivido em qualquer relação íntima de afeto, independente de coabitação. 2. O namoro é uma relação íntima de afeto que independe de coabitação; portanto, a agressão do namorado contra a namorada, ainda que tenha cessado o relacionamento, mas que ocorra em decorrência dele, caracteriza violência doméstica. 3. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao decidir os conflitos nºs. 91980 e 94447, não se posicionou no sentido de que o namoro não foi alcançado pela Lei Maria da Penha, ela decidiu, por maioria, que naqueles casos concretos, a agressão não decorria do namoro. 4. A Lei Maria da Penha é um exemplo de implementação para a tutela do gênero feminino, devendo ser aplicada aos casos em que se encontram as mulheres vítimas da violência doméstica e familiar. 5. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete -MG." (CC 90767/MG, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe 19/12/2008) Ante o exposto, CONHEÇO do conflito para DECLARAR competente o Juízo de Direito da 1.ª Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete/MG, consoante o art. 33 da Lei n.º 11.340/06”.
Constata-se, do julgado acima elencado que, para caracterizar a aplicação da Lei n.º 11.340/2006, é necessário existir um nexo de causalidade entre a conduta criminosa praticada e a relação de intimidade existente entre autor e vítima. Na inexistência de vínculo afetivo ou relação íntima de afeto entre o agente e a vítima deve-se ater as regras previstas no Código Penal ou outra legislação extravagante.
Por outro lado, comprovado o nexo de causalidade entre a conduta e a relação afetiva entre autor e réu, fundada aquela na violência de gênero, não se aplicará no processamento inquisitivo ou judicial do feito a lei nº 9.099/95. Neste sentido, cumpre colacionar o entendimento doutrinário:
“Na realidade, em outras palavras, firmou o entendimento de que os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher não são de menor potencial ofensivo, pouco importando o quantum da pena, motivo pelo qual não se submetem ao disposto na Lei 9099/95. Embora severa, a disposição do art. 41 em comento, é constitucional. Em primeiro plano, porque o art. 98, I, da Constituição Federal, delegou à lei a conceituação de infração de menor potencial ofensivo e as hipóteses em que se admite a transação. Em segundo lugar, pelo fato de se valer do princípio da isonomia e não da igualdade literal, ou seja, deve-se tratar desigualmente os desiguais”[2]. (g.n.)
“Previu expressamente o art. 41 da Lei nº 11.340/2006 a impossibilidade de aplicação da Lei nº 9.099/95, em sua integralidade, aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, estabelecendo, por conseqüência, que os crimes que a envolvem não são de menor potencial ofensivo. Essa previsão é absolutamente constitucional, à vista do disposto no art. 98, I, da Constituição Federal, que reservou à lei ordinária prerrogativa de definir quais os crimes de menor potencial ofensivo. Portanto, descabem, em crime de lesão corporal, ainda que leve, ou outro delito que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher, a transação e a suspensão condicional do processo. O rito processual será o ordinário ou o sumário, previstos pelos arts. 394 e s. do Código de Processo Penal, com as alterações introduzidas pela Lei n. 11.719, de 20 de junho de 2008, inclusive podendo ser decretada a prisão preventiva do agressor, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência (art. 313, IV, do CPP, com na nova redação dada pelo art. 72 da Lei nº 11.340/2006)”[3].
Enfatize-se que o próprio Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação 990090147075, TJ/SP, Relator Dr. Eduardo Braga, data do julgamento: 24/09/2009, já havia afastado a competência dos colégios recursais para apreciar recursos contra sentença condenatória por crime de ameaça contra a mulher, cometido no âmbito doméstico, tanto que o próprio Tribunal deu-se por competente e apreciou o recurso, mantendo a condenação, a saber:
“VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – Lei n. 11.430/06 - conhecida como Lei Maria da Penha. AMEAÇA - artigo 147 do CP. Materialidade e autoria comprovadas. Manutenção da r. sentença recorrida. Apelação não provida. Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação n° 990.09.014707-5, da Comarca de Itápolis, em que é apelante JOÃO MARIA FILHO DOS SANTOS sendo apelado MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. ACORDAM, em 8ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "POR VOTAÇÃO UNÂNIME, NEGARAM PROVIMENTO AO APELO", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão. “Cuida-se de ação penal promovida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO contra JOÃO MARIA FILHO DOS SANTOS, qualificado nos autos, porque este, segundo a denúncia, no dia 23.8.2007, por volta das 23h00min, na residência localizada na Rua João Pessoa, n. 85, Jardim Redenção, na cidade de Itápolis, mediante palavras e atos, ameaçou sua ex-mulher, Zilda Terezinha de Araújo, de causar-lhe mal injusto e grave, consistente na destruição de seu imóvel, bem como em lesionar sua integridade corporal. Satisfeita a condição de procedibilidade (representação a fls. 5), foi denunciado, por isso, como incurso no artigo 147, "caput", do CP. A r. sentença de fls. 87/89, cujo relatório se adota, JULGOU PROCEDENTE A AÇÃO PENAL para condenar o acusado ao pagamento de 10 (dez) dias-multa, no valor mínimo, como incurso no artigo 147 do CP. Inconformado, o acusado APELOU do julgado (fls. 99). Nas razões apresentadas, busca a absolvição por insuficiência. Vieram as contrarrazões (fls. 104/105). Não merece provimento o apelo, como se verá. Segundo a tese acusatória, o acusado e a vítima foram conviventes por 5 anos, sendo que vieram a se separar em 2005, dado ao gemo irascível do primeiro. Ocorre que mesmo tendo se separado há mais de 2 anos, JOÃO constantemente procura pela ofendida visando reatarem o relacionamento, sendo que constantemente a ameaça quando de sua negativa. No dia do fato, ele novamente foi até a residência da ofendida, sendo que diante da recusa desta em atendê-lo, JOÃO passou a desferir pontapés no portão, ameaçando ingressar no local e destruir o imóvel, dizendo, ainda, que lesionaria a ofendida, tudo no sentido de constrangê-la a voltar consigo. Inicialmente, e apenas a título de lembrança, anota-se ser inaplicável a Lei n. 9.099/95 aos crimes abrangidos pela Lei Maria da Penha (artigo 41 da mencionada lei). A materialidade do delito está comprovada nos autos pelo boletim de ocorrência (fls. 3), bem como pela prova oral produzida. A autoria, da mesma forma, é incontestável. De fato, nas duas oportunidades em que foi ouvido, na fase inquisitorial e na judicial, o acusado negou que tivesse ameaçado a vítima (fls. 11 e 50/51). Tal negativa, entrementes, vai de encontro com a prova oral amealhada. A vítima Zilda Terezinha de Araújo, após ser advertida das penas do crime de denunciação caluniosa, deixou claro que o apelante lhe ameaçou, afirmando que derrubaria o portão e ingressaria na casa de qualquer forma (fls. 90). E não se pode duvidar da palavra da vítima, que não teria porque incriminar falsamente o apelante, eis que admitiu "não ter mais interesse no prosseguimento do processo"(d. fls. 90verso). A testemunha Luciana Pinheiro dos Santos Mazzo informou ter sido procurada pelo apelante e que este lhe disse que invadiria a casa da vítima. Contou que, logo em seguida, recebeu um telefonema da vítima pedindo-lhe socorro, sendo que esta aparentava estar desesperada (fls. 91). Diante do exposto, tem-se que ficou provada a prática do crime em questão pelo acusado. A ameaça foi séria e idônea à intimidação, causando real temor à vítima. A alegação de que o acusado não sabia que a vítima estava no interior da residência não lhe exime de culpa, já que a vítima tomou conhecimento do mal prenunciado. Ademais, o acusado repetiu as ameaças à testemunha Luciana, deste modo executando o crime por interposta pessoa. A esse respeito, assim já se manifestou a jurisprudência: "Para a caracterização do crime previsto no art. 147 do CP, não é necessário que a ameaça seja feita na presença do ameaçado, sendo suficiente que chegue a seu conhecimento"'(RT 752/605) A condenação, portanto, era mesmo de rigor. No que diz respeito à aplicação da pena, também nada há para ser alterado. A MM. Juíza "a quo" optou pela pena de multa em seu patamar mínimo (10 dias-multa, no valor unitário mínimo),observando-se que o artigo 17 da Lei Maria da Penha veda a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa e não a imposição direta da pena de multa. Impõe-se, em face do expendido, a manutenção da r. sentença. ISTO POSTO, NEGA-SE PROVIMENTO AO APELO”. (g.n.)
Desta animosidade processual no que diz respeito à competência recursal em se tratando de sentença condenatória fundada na violência de gênero feminino é que surgiu a proposta que resultou no enunciado aprovado no II FONAVID, qual seja: “A competência para apreciar os recursos contra as decisões proferidas pelos juizados de violência doméstica contra mulher é dos Tribunais de Justiça, independentemente da pena”.
Ressalte-se que a importância de uniformizar o referido entendimento tocante à competência em grau recursal impedirá discussões prolongadas sobre competência para análise do mérito recursal, gerando uma prestação jurisdicional mais justa, eficaz e efetiva, contribuindo para o afastamento da impunidade do agressor.
Ora, o tempo que de despende com a remessa dos autos dos Tribunais de Justiça para as Turmas Recursais e com a suscitação do conflito de competência, inicialmente, no caminhar da jurisprudência para o STJ, pode levar à ocorrência de prescrição dos delitos, protelando o trânsito em julgado das decisões, e deixando, novamente, a mulher em posição vulnerável, contribuindo para o descrédito do Poder Judiciário e para a tão malfadada idéia aposta na mente de alguns agressores no sentido de que “agredir sua cônjuge, companheira, namorada compensa” diante da inefetividade da prestação jurisdicional célere e imediata.
Com o aludido enunciado quer-se crer que a questão acerca da competência caminhará para a pacificação e uniformidade, acabando com remessas de feitos entre os órgãos jurisdicionais, que impede a rápida ocorrência do trânsito em julgado e a resposta jurisdicional precisa e subseqüente ao crime acerca da punição exigida pela relevância da matéria.
Por fim, cumpre apenas mencionar que o Colendo Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do RE 590.409/RJ, em 26 de agosto de 2009, cuja relatoria coube ao Ministro Ricardo Lewandowski, entendeu ser compete o Tribunal Regional Federal para o julgamento de conflito de competência estabelecido entre Juizado Especial Federal e Juiz de primeiro grau da Justiça Federal da mesma Seção Judiciária. O aresto foi assim ementado: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUIZADO ESPECIAL E JUÍZO FEDERAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA, PERTENCENTES À MESMA SEÇÃO JUDICIÁRIA. JULGAMENTO AFETO AO RESPECTIVO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. JULGAMENTO PELO STJ. INADMISSIBILIDADE. RE CONHECIDO E PROVIDO. I. A questão central do presente recurso extraordinário consiste em saber a que órgão jurisdicional cabe dirimir conflitos de competência entre um Juizado Especial e um Juízo de primeiro grau, se ao respectivo Tribunal Regional Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça. II - A competência STJ para julgar conflitos dessa natureza circunscreve-se àqueles em que estão envolvidos tribunais distintos ou juízes vinculados a tribunais diversos (art. 105, I, d, da CF). III - Os juízes de primeira instância, tal como aqueles que integram os Juizados Especiais estão vinculados ao respectivo Tribunal Regional Federal, ao qual cabe dirimir os conflitos de competência que surjam entre eles. IV - Recurso extraordinário conhecido e provido. Do voto condutor do acórdão, colhe-se as seguintes passagens: Observo, ainda, por oportuno, que a Constituição não arrola as Turmas Recusais dentre os órgãos do Poder Judiciário, os quais são por ela discriminados, em numerus clausus, no art. 92. Apenas lhes outorga, no art. 98, I, a incumbência de julgar os recursos provenientes dos Juizados Especiais Vê-se, assim, que a Carta Magna não conferiu às Turmas Recursais, sabidamente integradas por juízes de primeiro grau, a natureza de órgãos autárquicos do Poder Judiciário, e nem tampouco a qualidade de tribunais , como também não lhes outorgou qualquer autonomia com relação aos Tribunais Regionais Federais. É por essa razão que, contra suas decisões, não cabe recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça, a teor da Súmula 203 daquela Corte, mas tão somente recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal, nos temos de sua Súmula 640. Isso ocorre, insisto, porque elas constituem órgãos recursais ordinários de última instância relativamente às decisões dos Juizados Especiais, mas não tribunais, requisito essencial para que se instaure a competência especial do STJ. Por tais argumentos, concluo que não cabe ao Superior Tribunal de Justiça julgar conflitos de competência entre Juizados Especiais e juízes de primeiro grau da Justiça Federal de uma mesma Seção Judiciária”. (g.n.).
A partir deste julgamento pelo STF, o STJ passou a não conhecer dos conflitos negativos de competência envolvendo Turmas Recursais e Tribunais de Justiça dos Estados, assentando que cabe aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais dirimir tais conflitos, porém, no corpo de alguns acórdãos resta patente a posição dos ilustres ministros do STJ no sentido de que é competente para apreciar os recursos contra as decisões proferidas pelos juizados de violência doméstica contra mulher, os Tribunais de Justiça, independentemente da pena, e não, portanto, os Colégios ou Turmas Recursais.
Neste sentido, colacionam-se os seguintes julgados:
“PROCESSO PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CASO DE NÃO CONHECIMENTO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DE APELAÇÃO. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 1. Não compete a esta Corte conhecer do conflito de competência instaurado entre Tribunal de Justiça e Turma Recursal de Juizado Especial Criminal no âmbito do mesmo Estado, tendo em vista que este não se qualifica como Tribunal. 2. Compete ao Tribunal de Justiça, e não à Turma Recursal, julgar recurso de apelação aviado contra decisão do Juizado de Violência Doméstica. 2. Conflito não conhecido e concedida a ordem de habeas corpus, de ofício, para declarar competente o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o suscitado”.(CC 111905/RJ CONFLITO DE COMPETENCIA 2010/0076884-3, Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (1131) S3 - TERCEIRA SEÇÃO 23/06/2010).
“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA ENTRE TRIBUNAL DE JUSTIÇA E TURMA RECURSAL DO MESMO ESTADO. HIPÓTESE DE NÃO CONHECIMENTO. CONFLITO DE COMPETÊNCIA ENTRE JUIZADOS ESPECIAIS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER DO MESMO TRIBUNAL. COMPETÊNCIA DO RESPECTIVO TRIBUNAL DE JUSTIÇA PARA SUA APRECIAÇÃO. DECISÃO DO TRIBUNAL QUE AFASTA A SUA COMPETÊNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. 1. Inexiste conflito de competência entre Tribunal de Justiça e Turma Recursal de Juizado Especial Criminal no âmbito do mesmo Estado, tendo em vista que este não se qualifica como Tribunal. 2. No caso, conquanto não haja conflito, configura-se constrangimento ilegal a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que declina de sua competência para processar e julgar conflito de competência instaurado entre Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher, do mesmo Estado, determinando a remessa à Turma Recursal. 3. Conflito de competência não conhecido. Habeas corpus concedido de ofício para determinar que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro aprecie o conflito negativo de competência instaurado entre o Primeiro e o Terceiro Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher”. (CC 110530 / RJ, CONFLITO DE COMPETENCIA 2010/0024258-2, Ministro OG FERNANDES (1139) T6 - SEXTA TURMA 26/05/2010).
Diante do exposto, pode-se dizer que enunciado do II Fonavid, realizado em João Pessoa-PB, fixando a competência dos Tribunais de Justiça para apreciação dos recursos fundados na aplicação da Lei nº 11.340/06 veio em boa hora, na medida em que não se pode impor à mulher, vítima de violência doméstica e familiar, que prolatada a sentença condenatória de seu agressor, pendente de recurso, aguarde, a remessa dos autos aos tribunais estaduais, a declinação de competência para as turmas recursais, a suscitação do conflito negativo de competência ao STJ, a declinação de competência para que os Tribunais de Justiça dos Estados ou os Tribunais Regionais Federais apreciem o conflito suscitado, na medida em que colégios recursais não constituem tribunais e, portanto, a questão refoge à competência do TJ, a conseqüente devolução dos autos para os TJs ou TRFs para que, tão somente após esta longa e exaustiva ‘caminhada processual’ o recurso seja apreciado, ocorrendo o trânsito em julgado.
Evidente que a situação narrada pode acabar “premiando” o agressor com a prescrição da pretensão punitiva, sem falar na afronta ao disposto no artigo 5º, inciso LXXVIII da CF[4], ou seja, ao direito e garantia individual, cláusula pétrea, portanto, à duração razoável do processo.
3. Conclusão
Por todo o exposto, conclui-se que privilegiar o princípio da igualdade, tal como consagrado pelo artigo 5º “caput” da CF é compreender, em um primeiro momento, que existe, ainda hoje, a desigualdade entre os gêneros masculino e feminino. Se referida desigualdade é fruto da sociedade eminentemente patriarcal, o processo de mudança somente obterá resultados com a consciência dos operadores do direito de que é preciso a construção deste direito.
É justamente em virtude da necessidade de se igualar os que são diferenciados sem um discrímen razoável, ou seja, sem qualquer fundamentação justa e constitucional, mais sim por motivos veementemente discriminatórios, que surge a legislação protetiva à mulher, para que, com a concretização da igualdade material e com a aplicação adequada, eficaz e precisa deste diploma legislativo, se possa, um dia, em um futuro ainda longínquo, revogar esta própria legislação protetiva, quando então se tenha atingido, na sua plenitude, a dita igualdade entre homens e mulheres.
Entretanto, hodiernamente, a Lei nº 11.340/06 não é inconstitucional e, ao revés, se faz necessária e somente é aplicável ao gênero feminino. Diriam alguns acerca da inconstitucionalidade, principalmente citando o tão desgastado exemplo: o genitor que agride a filha terá punição maior do que se a sua agressão estivesse voltada contra o filho. Ora, o exemplo suscitado, fora de qualquer contexto, pode levar, os mais incautos, a erros. Explico.
O que a Lei nº 11.340/06 visa coibir com maior severidade é a violência doméstica fundada no gênero, ou seja, a conduta do infrator que tenha sido motivada pela intenção de agredir a vítima (mulher) em razão de ela pertencer ao sexo feminino. A agressão, em um primeiro momento, ocorre por motivação de discriminação em face do gênero.
É preciso reconhecer que nós juízes, os promotores de justiça, os advogados e os demais atuantes na seara do direito, não estamos acostumados a tratar, no estudo da legislação penal e processual penal, a questão do gênero. Estuda-se o dolo e a culpa como elementos subjetivos do crime como teoria geral para todos os delitos.
Ao revés, em se tratando da violência doméstica prevista na lei 11.340/06, faz-se necessário um olhar mais cuidadoso na prova da autoria e materialidade, bem como nos elementos indiciários que compõem a formação do inquérito. Isto porque, se deve perquirir a motivação do agente infrator fundada na violência de gênero, pois é ela que fundamenta todo o sistema criado pela Lei Maria da Penha, inclusive a intenção do legislador de afastar o procedimento mais benefício da Lei nº 9.099/95.
Desta feita, pode-se dizer que, condenado o autor da infração que teve por motivação de sua conduta a violência contra o gênero feminino, eventual recurso por ele interposto contra a sentença condenatória será apreciado pelos Tribunais de Justiça dos Estados e não pelos Colégios Recursais, independentemente da pena cominada ao crime.
Assim, é preciso trabalhar com duas hipóteses, v.g., tratando-se do crime de ameaça em que não haja motivação de gênero, ou seja, a conduta de João em ameaçar Pedro de ceifar-lhe a vida, o processamento dar-se-á com base na Lei nº 9099/95, ou seja, pelo juizado especial criminal e o recurso será apreciado pelo Colégio Recursal. Situação diversa é aquela em que João ameaça causar a morte de sua cônjuge; conduta esta efetivamente motivada na agressão contra o gênero feminino. Nesta hipótese, o procedimento tramitará pelo Juizado de Violência Doméstica contra a Mulher e, no caso de eventual recurso contra sentença condenatório, este será objeto de apreciação pelos Tribunais de Justiça dos Estados ou Tribunais Regionais Federais.
Por tais motivos, é que o enunciado aprovado no II Fonavid, com a seguinte redação: “A competência para apreciar os recursos contra as decisões proferidas pelos juizados de violência doméstica contra mulher é dos Tribunais de Justiça, independentemente da pena” é congruente com o direito fundamental à duração razoável do processo, evitando-se incidentes processuais que somente contribuirão para o advento da prescrição da pretensão punitiva do Estado, gerando a sensação de impunidade no seio social e principalmente na mente de do agressor do sexo masculino.
Chega-se a conclusão, deveras, que somente esta postura pró-ativa dos juízes, buscando evitar incidentes processuais e com o foco de conscientizar os infratores de que a sociedade está em constante transformação e que o Poder Judiciário desempenha, por meio de suas decisões, um papel de construtor desta sociedade mais justa e igualitária, é que se poderá exterminar as frequentes agressões à mulher, fundadas na violência de gênero, fazendo com que a evolução do ser humano caminhe de acordo com o respeito e a concretização dos ditames constitucionais.
Érica Marcelina Cruz é juíza de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo. Ex- Procuradora do Estado de São Paulo. Ex-Delegada de Polícia do Estado de São Paulo. Integrante do II Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – FONAVID.
[1] “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”.
[2] Nucci, Guilherme de Souza, Leis penais e processuais penais comentadas, RT, p. 884, 1ª edição
[3] ANDREUCCI, Ricardo Antonio, Legislação Penal Especial, Editora Saraiva, 7ª edição, 2010, p. 627.
[4] “A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.