629 - Recuperação judicial de empresas transnacionais


ALEXANDRE BUCCI - Juiz de Direito


Introdução

 

Aspectos gerais

 

 

Como sabido, o objetivo de uma empresa, tida enquanto atividade econômica organizada é adquirir e combinar fatores de produção, tais como mão-de-obra, matérias-primas, equipamentos e tecnologia, com a finalidade de obter lucro, sem olvidar de sua função social.

 

Também não se afigura nova a prevalência da interpretação das situações de crise da empresa com base na previsão contida no artigo 47 da Lei no. 11.101/05, a qual no dispositivo retro mencionado prevê que “(...) a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

 

Porém, em tempos de economia globalizada e soberania compartilhada ainda pouco se escreveu a respeito de normas de insolvência transnacional, também chamada por alguns de insolvência transfronteiriça.

 

Não se olvide que a “deslocalização” das empresas permite estruturas leves e migratórias que não dependem mais do Estado, tudo em contexto de clara relativização do conceito clássico de soberania.  

 

Falamos aqui de transconstitucionalismo[1], fenômeno que decorre do crescente entrelaçamento das ordens políticas, cada qual dotada de uma pretensão de autonomia.

 

Nesse contexto, ganham relevância as tentativas levadas a efeito no sentido de desenvolver categorias teóricas capazes de organizar a reflexão sobre a relação entre os diversos sistemas constitucionais, sem que isso seja projetado sobre o pano de fundo de uma unidade pressuposta ou de um projeto de unificação totalizante.

 

Falamos também, em consequência, da teoria dos sistemas[2], com o que se utiliza a categoria da racionalidade transversal para designar o processo de incorporação recíproca de conteúdos realizados por sistemas que buscam agir de modo cooperativo e compatibilizar as suas condutas.

 

Entende-se assim, os motivos pelos quais as pretensões de autonomia não resultam em fechamento autista dos sistemas, especialmente daqueles que lidam com demandas contemporâneas de integração de ordens nacionais.

 

E enquanto mantido no seu conceito mais restrito de cooperação entre sistemas, a categoria transconstitucionalismo é capaz de evidenciar uma série de ocorrências relevantes na atual configuração jurídico-política das nações engajadas na construção de um espaço internacional mais cooperativo, especialmente no caso dos esforços políticos de constituir instituições transnacionais. A aludida cooperação se mostra na necessidade de compatibilizar os critérios próprios com os critérios externos, gerando um acoplamento estrutural entre sistemas que tende a resultar em uma troca recíproca de conteúdos.

 

Entretanto, a maioria dos países ainda não adotou regras de insolvência internacional, sobrevindo com isto, um panorama de falta de previsibilidade e de transparência.

 

A ausência de normas é agravada pelas evidentes diferenças políticas, filosóficas e processuais entre as leis falimentares dos países, tudo, em contexto de preocupação e perplexidade para os devedores, credores, investidores e operadores do Direito que atuam na área.

 

O panorama começa a se alterar, contudo, com a adoção da Lei modelo da UNCITRAL sobre insolvência transfronteiriças, adotado em 1997 e incorporada como legislação interna em diversos países, tais como Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Japão, impulsionando-se algum grau de harmonização falimentar e recuperacional entre os aludidos ordenamentos.

 

Há que se destacar também, o Regulamento (CE) 1346/2000, o qual depois de muita discussão entrou em vigor na União Europeia, salvo na Dinamarca.

 

Postas tais considerações introdutórias, no decorrer do desenvolvimento deste breve estudo, veremos que uma liquidação eficiente e uma recuperação que se mostre capaz de restabelecer a saúde financeira da empresa ostentam um pilar de sustentação comum, qual seja, a necessidade de coordenação de interesses e ações envolvidas nos procedimentos.

 

Por isso se afirmar que necessidades econômicas e também sociais devem guiar a coordenação de sistemas jurídicos de insolvência, com vistas a promover uma colaboração eficiente e organizada entre os diversos países envolvidos, buscando-se equilíbrio, para além das fronteiras nacionais, quando assim preciso for, em verdadeiro exemplo de atuação do Direito que não somente suplanta fronteiras, como também, muitas vezes se afasta da regulação estatal formal para buscar na colaboração e no entendimento, soluções para o caso concreto.

 

Desenvolvimento

 

I. Territorialismo e universalismo em insolvência transfronteiriça

 

Fixada então a premissa no sentido de que temos dois modelos acadêmico-teóricos antagônicos de insolvência transnacional, vale dizer que tais modelos preconizavam o territorialismo e o universalismo.

 

No territorialismo, o juízo de cada Estado teria jurisdição exclusiva sobre os bens do devedor nele localizados, e como resultado, o direito de cada um desses Estados governaria e arrecadação dos ativos e a distribuição dos valores aos credores.

 

Já no universalismo (hoje preponderante) temos um juízo, aquele do Estado no qual o devedor possui seu centro de interesses principais, que teria jurisdição mundial para administrar sua insolvência.

 

E se diz preponderante o universalismo, na medida em que, pese embora certos temperamentos, se mostra ele como sistema teórico mais justo e economicamente eficiente para a arrecadação de bens e distribuição de valores.

 

O purismo de cada modelo, entretanto, se mostra de difícil implementação prática, de modo que têm sido sugeridas, em âmbito acadêmico, soluções intermediárias, propondo-se um modelo que compreenda um processo de insolvência principal no centro da vida ativa do devedor, sem prejuízo de processos de insolvência tidos como satélites, gravitando com o objetivo de auxiliar o processo principal e facilitar a coleta e distribuição de bens.

 

Tais soluções intermediárias nos remetem a um tema conexo de relevante importância em matéria de insolvência transnacional, qual seja, o tema da superação pendular e teoria da divisão equilibrada de ônus em matéria de falências e recuperações.  

 

II. Superação do dualismo pendular

 

Quando se fala em recuperação judicial de empresas, deve-se ter em mente que esse tema se insere no contexto maior da crise empresarial.

 

E a forma pela qual os países tratam essa questão diz muito sobre suas posições sociais, político e econômicas no que diz respeito à atividade empresarial.

 

O paternalismo estatal outrora vivenciado com o regramento extraído do Decreto-Lei no. 7661/45 deixou marcas ruins no decorrer dos tempos, servindo muitas vezes como incentivo para a fraude, a prescrição de crimes falimentares e a aniquilação da possibilidade de recuperação de algumas empresas que mesmo saudáveis esbarravam no formalismo e na letra fria de um diploma legal que atravessou grandes alterações econômicas sem adaptações, tornando-se anacrônico.

 

Sob outro ângulo, o novo sistema de insolvência empresarial brasileiro, inaugurado pela Lei no. 11.101/05, abandonou o movimento pendular das legislações de insolvência até então observadas no cenário mundial que colocavam ênfase na liquidação dos ativos da empresa em crise, ora prestigiando com maior intensidade os interesses dos credores, ora pendendo mais para a proteção dos interesses do devedor, mas quase sempre sem consideração pelos benefícios da manutenção da atividade produtiva como resultado da superação da crise da empresa.

 

Por isso se afirma que o modelo de recuperação judicial brasileiro tem, nos dias atuais, como seu fundamento básico a divisão equilibrada de ônus entre devedor e credores a fim de que se possam obter os benefícios sociais e econômicos que decorrem da recuperação da empresa.

 

Daí que se pode igualmente inferir duas importantíssimas conclusões.

 

A primeira é que a empresa em recuperação deve assumir o ônus que lhe compete no procedimento agindo de forma adequada, tanto do ponto de vista processual, como também no desenvolvimento de sua atividade empresarial.

 

E sob outro prisma, a segunda conclusão relevante é aquela indicativa de que somente tem sentido a recuperação judicial em função da geração dos benefícios sociais e econômicos relevantes que sejam decorrentes da continuidade do desenvolvimento da atividade empresarial, como geração de empregos ou manutenção de postos de trabalho, circulação e geração de riquezas, bens e serviços e recolhimento de tributos.

 

Dito de outro modo, tal qual ensina o Professor Fábio Ulhôa Coelho, a falência não deve ser encarada como um mal em si mesmo, mas sim como instrumento de expurgo do mercado da atividade economicamente inviável.

 

Ainda de acordo com o princípio da distribuição equilibrada de ônus na recuperação judicial da empresa, tanto a devedora, como os credores devem colaborar para que se mantenha em funcionamento a atividade produtiva viável, a fim de que se obtenham os benefícios sociais decorrentes da continuação dessas atividades.

 

Os credores suportam os ônus decorrentes do plano de recuperação judicial da empresa, aceitando deságios, alteração de prazos para pagamentos, alterações nas condições originais dos negócios sujeitos à recuperação judicial.  

 

Devem ainda agir de maneira ética e voltada à preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem do sucesso da recuperação da empresa em crise. É evidente que o objetivo primário (e legítimo) de todo credor será minimizar o seu prejuízo por meio da manutenção da atividade produtiva da devedora.

 

A empresa devedora, por seu turno, também tem de assumir os seus ônus no processo de recuperação judicial. Esses ônus são de duas ordens: empresariais/materiais e processuais. Os ônus empresariais/materiais da recuperanda consistem em preservar os benefícios decorrentes da manutenção da atividade produtiva. Vale dizer, deve a recuperanda continuar a gerar empregos e receitas, a circular riquezas, bens e serviços, bem como a recolher tributos. Não se pode admitir que a empresa em recuperação, usufruindo do benefício estatal para superação da sua crise (blindada por lei contra a cobrança de seus credores pelo prazo de 180 dias, por exemplo), demita funcionários de forma injustificada (sem que haja estreita relação com seu projeto de reestruturação). Igualmente descabido que a empresa deixe de produzir ou de recolher tributos.

 

Como afirma o Dr. Daniel C. Costa em artigo publicado no jornal Carta Forense de 04/11/2013:

 

“O mínimo que se pode exigir da empresa em recuperação é que ela engendre todos os seus esforços para gerar os benefícios que, no final das contas, justificam a atuação estatal de ajuda à superação da crise empresarial. Esse é, portanto, o seu ônus material. O sucesso da recuperação judicial da empresa mede-se pelos benefícios sociais e econômicos decorrentes da continuação de suas atividades. Os ônus processuais da empresa em recuperação judicial consistem na estrita observância dos prazos impostos pela Lei 11.101/05, notadamente no que concerne à apresentação do plano de recuperação judicial e à publicação dos editais de deferimento do processamento (com a relação de credores da devedora), da relação de credores do administrador judicial e de entrega do plano de recuperação. Destaque-se que providenciar a publicação dos editais significa fazer o efetivo recolhimento das custas para publicação no DJE e, ainda, entregar as minutas dos editais já preparadas em mídia digital, a fim de permitir o rápido processamento cartorário dessas fases procedimentais, zelando, portanto, para que a Assembleia Geral de Credores seja realizada no prazo de 180 dias”.

 

Impossível ignorar que também é ônus processual da recuperanda cumprir com exatidão e rapidez as determinações do juiz do feito e do administrador judicial, colaborando para que o processo transcorra de forma transparente e ética.

 

O descumprimento dos ônus empresariais/materiais ou processuais da recuperanda deve ensejar a conversão da recuperação judicial em falência. Já o descumprimento dos ônus impostos aos credores poderá gerar situações bastante diversas como, por exemplo, o reconhecimento do abuso do direito de voto em Assembleia Geral de Credores (no caso em que atue com o exclusivo intuito de prejudicar a devedora, sem preocupar-se com os benefícios sociais decorrentes da recuperação da atividade empresarial).

 

Temos, portanto, que o processo de recuperação judicial de empresas é um instrumento poderoso e essencial para o aprimoramento do sistema econômico e social do país, dada a importância que o desenvolvimento da atividade empresarial representa para Brasil.

 

Esse espírito colaborativo já se nota, inclusive, no sensível tema das recuperações transnacionais, anotando-se, neste sentido, decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro na recuperação do grupo OGX (Agravo de Instrumento no. 0064658-77.2013.8.19.0000).

 

No caso referido, considerou-se ser indiscutível que a OGX PETRÓLEO E GÁS PARTICIPAÇÕES S/A. se tratava de uma sociedade holding e não operacional que controlava a OGX PETRÓLEO E GÁS S/A., exercendo a titularidade de 99,99% do seu capital social, além de também controlar, direta e integralmente, a OGX INTERNATIONAL GMBH e a OGX ÁUSTRIA GMBH HSBC CTVM S/A., conforme demonstravam os inúmeros documentos que integravam o Agravo de Instrumento.

 

Por outro lado, as duas empresas estrangeiras subsidiárias, excluídas do procedimento de recuperação judicial, apenas operavam em função da controladora, servindo como veículos das sociedades brasileiras para a emissão de dívidas e recebimento de receitas no exterior, com vistas ao financiamento das atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural no Brasil.

 

De tal sorte, não se ignorou que as sociedades empresárias estrangeiras que constituíam a estrutura de financiamento de sua controladora nacional, formavam um grupo econômico único, em prol de uma única atividade empresarial, sendo certo que a dívida decorrente das 02 (duas) emissões de bonds, que seria objeto da recuperação judicial, estava, na realidade, assegurada pela OGX PETRÓLEO E GÁS PARTICIPAÇÕES S/A., que é formada por um corpo de executivos, todos brasileiros e domiciliados no Brasil, e que aqui concentra seus negócios, o que tonava necessária a observância do art. 3º, da Lei n.º 11.101/2005, assim redigido:

 

“É competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial da empresa que tenha sede fora do Brasil”.  

 

Foi então tida pelo E. Tribunal como viável a submissão dos credores nacionais e internacionais a um plano comum de recuperação do GRUPO OGX, evitando-se assim, eventual constrição de ativos no exterior, imposta a requerimento de administrador judicial das sociedades austríacas, bem como a visceral impossibilidade de realização de operações no âmbito internacional, com o que ficaria definitivamente frustrada toda e qualquer possibilidade de soerguimento das recorrentes.

Houve destaque ao fato de que a legislação austríaca sobre insolvência admitia o reconhecimento dos efeitos do processo de insolvência estrangeiro, quando o centro de principal interesse do devedor estivesse localizado em outro Estado.  

 

Em reforço do até aqui exposto, importante anotar mais, que o E. TJRJ considerou que não se tratava de “ativismo” na espécie.

 

Ocorre que a ausência de previsão normativa quanto à aplicação do instituto da recuperação judicial além dos limites territoriais, se não o autorizava, por outro lado, não o vedava.

 

Em determinada passagem o V. Acórdão menciona que:


“Lacunas legislativas são decididas de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, conforme prevê o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, de aplicação cautelosa e excepcional, em situações que demandem cautela e sejam, por igual, excepcionais. É na equidade que deve predominar a finalidade do instituto sobre sua letra, buscando adequar a lei às novas circunstâncias, a fim de que o órgão jurisdicional acompanhe as vicissitudes da realidade concreta, que, como já asseverava Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça”, em seu “Curso de Direito das Obrigações”, caminha sempre à frente da lei, que capta a vontade jurídica da nação (legalidade)”.

 

Conclusão

 

Não obstante as louváveis iniciativas verificadas no mundo acadêmico nas últimas décadas, fato é que mesmo com a entrada em vigor de diversas normas em países distintos, a insolvência transnacional se desenvolve no âmbito dos casos concretos, adotando-se soluções ad hoc muitas vezes sem previsibilidade jurídica.

 

O processamento conjunto, no Brasil, de recuperações judiciais  sociedades empresárias integrantes de grupo econômico, mas sediadas em países distintos, é nos dias atuais, realidade que não se pode ignorar, sob pena de completo desprestígio ao fato de que a empresa não interessa apenas ao seu titular (empresário), mas, ao contrário, interessa sim, a diversos outros atores do palco econômico, tais como os trabalhadores, investidores, fornecedores, instituições de crédito, e em última análise, também ao Estado.

 

A eficiência econômica perseguida com o escopo de preservação nas liquidações e nas recuperações de empresas indica que a colaboração mútua tem superado a ausência de regramento legal específico, convergindo-se para o modelo do universalismo mitigado.

 

A superação do dualismo pendular outrora verificado e consequente redistribuição equilibrada de ônus em matéria falimentar e recuperacional igualmente sinalizam na construção de um Direito transnacional das insolvências internacionais, baseado tal regramento, na flexibilidade capaz de adequadamente enfrentar os desafios impostos pela quebra de empresas dispersas por um mundo imprevisível, multifacetado e globalizado.

  



[1] A respeito do tema vide a obra de Marcelo Neves: Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

[2] Quanto à teoria dos sistemas, importante a leitura de Niklas Luhmann: Legitimation durch Verfahren. Frankfurt, 1969. Trad. bras.: Legitimação pelo  procedimento. Brasilia: UnB, 1980.

 


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