623 - Lavagem de dinheiro: alterações dos instrumentos de prevenção e repressão pela lei 12.683/12
GLÁUCIO ROBERTO BRITTES DE ARAÚJO - Juiz de Direito
I - Aspectos processuais peculiares
A lei 12.683/12 não corrige problema que desafiava críticas doutrinárias, consistente na suficiência de meros indícios para recebimento da denúncia. A exegese de que, na verdade, o texto refere-se a provas indiretas da infração antecedente pode auxiliar a sanar a distorção, a fim de que não se abandone a necessidade da certeza da materialidade como requisito, imposto pelo nosso ordenamento, para a instauração de processo crime, com toda a sua carga sancionatória, no seio social. O problema era ainda maior, sob a égide da lei antiga, diante da dificuldade de configuração da organização criminosa do inc. VII, do art. 1, do aludido diploma. De qualquer maneira, a existência material da lavagem continua a exigir a firme convicção da ocorrência da infração prévia, ainda que obtida por provas indiretas e desacompanhada da condenação correspondente ou até mesmo de processo. Basta, então, a apresentação de provas daquela conduta típica e antijurídica. A nova lei, acertadamente, contribuindo para o cumprimento de tal ônus probatório e priorizando a persecução e a repressão da lavagem, com sua aptidão para elucidar os antecedentes, confere ao juiz da causa a decisão sobre a reunião dos processos.
A referida autonomia continua sendo relevante para não dificultar ou retardar a apuração da lavagem, até porque a apuração pode partir da infração antecedente para o destino do produto ou das evidências de ocultação ou dissimulação, por exemplo, para aquela primeira. No tocante à acessoriedade limitada, a lei aduz a extinção de punibilidade, que, assim como o desconhecimento da autoria ou isenção de pena da conduta prévia, não obstam o processo e a condenação pelos crimes de lavagem de capitais. Cumpre ressalvar a abolitio criminis da infração antecedente ou anistia, que afetariam a caracterização da lavagem. De outro giro, até a mesmo a absolvição por falta de provas da autoria do delito prévio, em tese, não impediria a persecução, sendo presumível, contudo, desde já, a subsistência da controvérsia acerca da mesma solução para a absolvição por insuficiência probatória do delito. Deve prevalecer o entendimento de que tal sentença obstaria o processo crime por lavagem. O reconhecimento de que o antecedente foi apenas tentado, por sua vez, não evita a responsabilização pela conduta de lavar, se gerara bens aptos a tanto. No mesmo diapasão, se oriundos do exterior, segundo o princípio da dupla incriminação, basta que o fato produtor esteja tipificado também por aquele ordenamento, ainda que com nome juris diverso ou com alguma circunstância peculiar.
Quanto à competência, em regra, é estadual, salvo quando o crime acarretar prejuízo para a União ou para o sistema econômico e financeiro; a infração antecedente estiver sob a égide da Justiça Federal ou existir conexão entre a lavagem e algum delito da competência desta última, que atrairia sua persecução, nos termos do art. 78, II, do CPP, e da Súmula 122, do STJ. A nova lei, como exposto, confere ao juiz que preside o processo-crime por lavagem o poder de decidir sobre a reunião dos autos, facilitando a solução que atenderia à certeza de harmonia entre as decisões sobre as infrações antecedente e subsequente.
Embora mantida a alusão a indícios para recebimento da denúncia, compreende-se como necessária prova ao menos indireta da infração prévia, como aumento injustificado do patrimônio, movimentação elevada de recursos e uso imediato, transformações anômalas, inexistência de negócio lícito subjacente, vínculo com grupo notoriamente criminoso, envolvimento de sociedades de fachada, procedência ou destinação a paraísos fiscais, evidências de falsidades ou simulações, fracionamento e distribuição de valores ou bens pelo território, previsão ou pagamento de comissões elevadas, saques com cobertura no mesmo dia, transações nas fronteiras do país, uso inexplicável de carros forte, ordem de pagamento não convencional e emprego de meios eletrônicos para impedir contatos pessoais.
Não se trata de inversão do ônus da prova, mas de oferecimento imprescindível pelo órgão acusador de provas indiretas que deverão ser robustecidas sob o crivo do contraditório. Não basta, então, a acusação desprovida de suporte probatório significativo e convincente, mediante transferência do ônus probatório ao denunciado. Dada a inviabilidade de apresentação imediata de prova cabal e inequívoca de todos os elementos objetivos e subjetivos de determinada figura típica de lavagem, as evidências do dolo e da infração antecedente são determinantes para instauração do processo, analisadas, com parcimônia e atenção à realidade pujante, concomitantemente, em cotejo com a experiência empírica obtida no histórico de investigações de delitos de tal jaez e no mapeamento de suas técnicas usuais por órgãos nacionais e internacionais especializados no tratamento da matéria. O juiz não deve olvidar, outrossim, de que a ideia de lavagem remete a de um processo, no qual estará incluída a conduta apurada, sendo úteis na sua compreensão os diagnósticos de suas fases. A despeito de algumas divergências, aquelas mais presentes nos estudos do tema são classificadas como introdução, ocultação/transformação e reintegração.
A nova disciplina da matéria, em contrapartida, perdeu valiosa oportunidade para reverter críticas que recaíram sobre a ressalva à aplicação do art. 366, do CPP, nos respectivos processos, mas melhorou a redação, ao exigir, expressamente, a citação por edital e a nomeação de defensor ao acusado para prosseguimento do feito até o julgamento, com vistas à efetivação dos princípios da ampla defesa e do devido processo legal. A reforma do CPP, além disso, estabeleceu a citação por hora certa, resolvendo o problema da insubmissão do réu ao processo que poderia lhe favorecer com a paralisação da persecução. Assim, a exclusão da incidência do art. 366, do CPP, perdeu muito de seu sentido e escopo.
Por outro lado, a simples necessidade de evitar medidas assecuratórias que fiquem pendentes indefinidamente, vislumbrada por alguns doutrinadores como a justificativa para aquela tramitação à revelia do denunciado não citado pessoalmente ou por hora certa, não convence, assim como a própria preocupação com a infração e sua gravidade reconhecida pelo legislador. A alienação antecipada, regulamentada minuciosamente pela lei 12683/12, permite a suspensão do feito até prescrição ou localização do réu, pois os valores depositados serão corrigidos e poderão ficar à disposição do juízo por quanto tempo fosse preciso. Deste modo, somente a opção de política-criminal pela persecução inexorável das condutas de lavagem explica a manutenção da exclusão da incidência do art. 366, do CPP.
A liberdade provisória, por sua vez, consoante jurisprudência consolidada, deve ser concedida, se ausentes fundamentos de ordem cautelar para a prisão preventiva, prestigiando-se o princípio da não consideração prévia da culpabilidade (ou da inocência). Não prosperou o entendimento de que o art. 5, da CF, não teria esgotado as hipóteses de inafiançabilidade e que a lei que criasse novas mereceria interpretação conforme a Constituição e os princípios da conservação da norma, da segurança jurídica e da presunção de constitucionalidade do dispositivo legal. Preponderou a posição no sentido de que, sem expressa proibição constitucional, as infrações poderiam ser afiançáveis e que mesmo as inafiançáveis admitiram a liberdade provisória, sem fiança, quando ausentes os requisitos da prisão preventiva.
II - Medidas assecuratórias e combate eficaz à lavagem
A atual redação preferiu conceito geral e mais amplo de medidas assecuratórias aos termos sequestro e apreensão, autorizando ainda sua adoção de ofício e para bens, direitos ou valores existentes em nome de interpostas pessoas. Importante apenas não prescindir de prova – ao menos indireta - de que estes agiram como laranjas, sob pena de se convalidar prejuízo a terceiros, sem devido processo legal, e de se violar o direito de propriedade e posse. A medida não está mais condicionada à propositura da ação em 120 dias. A liberação dos bens decorre apenas de outras razões, como a comprovação da licitude da origem, podendo ser parcial ou total.
Exige-se para liberação, no entanto, o comparecimento pessoal do acusado ou do terceiro proprietário. Embora útil para evitar a insubmissão simultânea do suspeito e do patrimônio, é possível contentar-se com a apresentação de procuração, que permite impulsionar o processo e identificar o responsável pelas consequências do pleito. Ainda assim, é cabível a permanência da constrição de bens suficientes, se necessários, para reparação dos danos, pagamento de prestações pecuniárias, custas e multas oriundas da infração. A orientação coaduna-se com a explícita autorização das medidas para reparar prejuízos tanto da lavagem como da infração prévia, não existindo razão jurídica para restringir custas, multa e prestações pecuniárias àquela primeira, se reunida à acusação da antecedente, a despeito de não asseverada expressamente. Na falta de alienação, nomeia-se pessoa física ou jurídica para administração dos bens.
A expressão “inquérito ou da ação penal” foi substituída por “investigado ou acusado”, podendo-se concluir que a respectiva representação do MP pelas medidas seria viável em procedimento investigatório por ele conduzido, sem portaria da autoridade policial. Para que tal opinião não sucumba perante a exigência de inquérito por aqueles que contestam a constitucionalidade dos poderes investigatórios do Parquet, impõe-se ao menos que a apuração seja formalizada e recaia sobre fato determinado, recebendo valor probatório relativo. De qualquer sorte, tais inovações refletem nitidamente a preocupação com o incremento dos mecanismos de combate à lavagem.
A alienação antecipada para preservação dos bens, por sua vez, agora está prevista para qualquer grau de deterioração ou depreciação ou quando houver dificuldade para sua manutenção. A lei estabelece que tenha tramitação em separado e a petição ou determinação seja autuada em apartado, com relação dos bens, descrição e especificação do seu local de depósito para avaliação e eventual homologação, após impugnações dos interessados. Ordenado o leilão ou pregão, preferencialmente eletrônico, por no mínimo 75% do valor estimado, o produto será depositado, deduzidos tributos e eventual multa, em conta judicial remunerada junto à Caixa Econômica Federal, nos processos de competência da Justiça Federal, e em instituição financeira preferencialmente pública, nos da Estadual, sem prejuízo da possibilidade de designação de outra por lei. Com o depósito, os autos são apensados aos principais e os recursos, interpostos com efeito meramente devolutivo.
Inovação bem vinda é também a incorporação ao patrimônio dos Estados, após a condenação editada por suas Justiças, e não apenas em favor da União, como outrora. Em contrapartida, forçosa a devolução na hipótese de absolvição ou extinção da punibilidade. O confisco, ainda denominado perda pelo diploma legal, depende do trânsito em julgado da condenação, podendo alcançar também os bens não reclamados em 90 dias, sem prejuízo dos direitos de terceiro de boa-fé. O confisco pode recair, outrossim, sobre bens relacionados também indiretamente com os crimes da lei, inclusive utilizados para prestar fiança, ou seja, até mesmo sobre bens lícitos, em tese.
Interessante, ademais, é a expressa previsão da emissão de documento de habilitação necessário à circulação ou utilização dos bens custodiados, ressalvada a disciplina específica do tráfico. Desvinculando o bem do histórico de eventuais dívidas e propiciando a entrega a órgãos federais ou locais encarregados do combate, da prevenção, da ação penal e do julgamento das variegadas modalidades de lavagem, a lei acolheu importante avanço pragmático no tratamento do grave fenômeno, sem ofender o direito de propriedade e o devido processo legal. A par de exigir decisão judicial motivada, a referência implícita ao MP e ao Judiciário como destinatários lhes confere a possibilidade de uso, que, contudo, deve manter relação estreita e direta com o exercício daquelas funções. A destinação de veículo blindado, por exemplo, a autoridades ameaçadas poderia ser contestada, sobretudo se a motivação não estiver relacionada à lavagem.
A perda de instrumentos sem valor econômico, de outro giro, enseja a inutilização ou a guarda em museu criminal ou entidade pública, interessados na sua conservação. Por fim, admite-se a execução de medida assecuratória, mediante tratado internacional ou solicitação estrangeira, sobre bens oriundos de crime praticado no exterior. À luz da premissa da dupla incriminação, a conduta deve ser típica tanto lá como aqui. Na falta de acordo, os bens ou produto da venda serão repartidos pela metade entre o Brasil e o Estado cuja autoridade solicitara a medida.
III - Instrumentos de persecução penal e provas relevantes
A colaboração criminal premiada está disciplinada sucintamente no par. 5, do art. 1, da lei 9613/98, com pontuais alterações na redação pela lei 12683/12. Considerada, inicialmente, causa de diminuição da pena, traz a possibilidade de benefícios mais amplos. O entendimento mais correto é no sentido de que constitui direito subjetivo do delator, sob pena de se frustrar legítima expectativa gerada no agente pelo incentivo àquela concessão de ordem ética. Caso contrário, a delação, que já sofre críticas há muito, sob o aspecto moral, por implicar, geralmente, traição aos comparsas, estimulada pelo Estado com fins utilitários, em regra por incapacidade de obtenção de provas por outros meios mais legítimos de investigação, seria sucedida, ainda, por uma espécie de engodo ou ardil do próprio Estado, ao rejeitar as consequências esperadas ao ato significativo risco do colaborador.
Destarte, para que o instituto tenha amenizadas as imperfeições de ordem ética e possa alcançar sua finalidade, adquirindo plena aceitação prática, é fundamental compreender os benefícios da norma como direito e não faculdade do juiz. Mais apropriado ainda seria a regulamentação minuciosa da sua aplicação, mediante compromisso formal entre as partes, devidamente homologado, de sorte a gerar efeitos legais inexoráveis, sobretudo por ocasião do julgamento. O projeto no Senado conferia maior segurança, neste aspecto, ao réu.
A Lei 12683/12 aduz a concessão do regime semiaberto à do aberto, à redução de um a dois terços da pena, à substituição por restritiva de direitos e ao perdão judicial. Permitindo ao juiz deixar de aplicar a pena até adotar o regime intermediário, a norma amplia o espectro de aplicabilidade do instituto, contemplando desde infrações gravíssimas de reincidentes, incompatíveis com benefícios que acarretassem a imediata liberação do agente, até aquelas de menor gravidade praticadas por primários, os quais poderiam acabar favorecidos pela ausência de reprimenda. Embora tais critérios para definição do benefício não estejam explicitamente previstos, podem ser empregados, assim como o grau de participação do agente na empreitada, a extensão, a repercussão, a utilidade, a abrangência e a eficácia da colaboração, como ocorre em diversos países.
Assim, se a delação de um soldado da atividade delituosa permite a apuração de várias infrações, a identificação de todos os autores e partícipes, mormente dos chefes de um grupo, a localização do produto integral dos ilícitos e o desmantelamento de uma organização criminosa, o colaborador pode ser perdoado, enquanto o infrator contumaz, em posição de superioridade hierárquica, com domínio do fato sobre uma série de crimes graves, tão somente por simples entrega parcial de objetos da infração, não faz jus a benefício equivalente. A lei 9807/99 (de proteção a vítimas e testemunhas), a propósito, exige a avaliação dos fatores do art. 59, do CP, e da gravidade do delito.
A colaboração deve ocorrer também sob o contraditório e até a sentença. Não sustenta, isoladamente, uma condenação, devendo ser corroborada por elementos de prova concretos e convincentes, refutando-se assim a objeção daqueles que vislumbram no sistema grande risco à segurança do sistema, diante das ressalvas que merecem a palavra do criminoso, a possibilidade de falso por má-fé, vingança ou outra motivação egoística. Na Espanha, é dotada de valor equivalente ao depoimento da testemunha. Forçoso ressalvar, porém, a faculdade de não responder a reperguntas do delatado, se no exercício da autodefesa. Não se pode olvidar, de qualquer maneira, da excepcionalidade de tal prova, considerando a existência de variegados meios eficazes de investigação deste tipo de crime, como a quebra de sigilo financeiro, bancário, fiscal e telefônico, documentos e informações do CRI e juntas comerciais, escutas ambientais e interceptações telefônicas.
Os requisitos dos benefícios da colaboração, todavia, são alternativos, segundo a exegese literal do dispositivo legal. Portanto, basta que a colaboração com as autoridades seja espontânea (mais do que meramente voluntária) e que os esclarecimentos prestados conduzam à apuração das infrações, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, valores e direitos objeto do crime. Neste ponto, melhor teria sido o emprego da expressão infração penal, açambarcando as contravenções, com consonância com o caput do art. 1, da lei. A interpretação literal exclui o benefício, então, desta espécie de infrações, enquanto a teleológica e sistemática autoriza conclusão de que ele não se adstringe aos crimes. A norma não se refere aos instrumentos do delito. O legislador substituiu, ademais, a autoria pela alusão específica às diversas formas de responsabilização subjetiva, ampliando o âmbito de incidência e a utilidade do instituto. O princípio da proporcionalidade, contudo, contribuiria para norteá-la, a fim de observar a proibição da insuficiência e evitar a impunidade. Assim, delatar mero partícipe poderia ensejar a redução de pena, mas não o perdão judicial.
A ação controlada foi conceituada pelo art. 2, da Lei 9034/95 como acompanhamento do crime até o momento mais eficaz para obtenção de informações e provas, mas visando atividade de organizações criminosas e quadrilhas. Está prevista no art. 4, B, da lei 12683/12, embora não conceituada expressa e minuciosamente, como a possibilidade de o juiz suspender, ouvido o MP, a execução de suas ordens, quando puder comprometer as investigações. A norma, ao lado da ordem de prisão, traz a expressão ampla “medidas assecuratórias de bens, direitos e valores” (ao invés de especificar o sequestro e a apreensão).
Tal expediente deve ser manejado excepcionalmente, até porque oferece riscos de resultar contraproducente e de implicar concessões éticas ao utilitarismo na persecução da atividade criminosa. Pressupões, aliás, algum grau de certeza de que maior será o benefício no combate à lavagem e às infrações relacionadas do que o perigo de frustração do cumprimento das ordens judiciais. Parte da doutrina recomenda os seguintes critérios para adoção da ação controlada: a necessidade da medida, importância do crime e possibilidade de vigilância, à luz do princípio da proporcionalidade.
O novo diploma não dispôs sobre a infiltração de agentes, que somente poderia ser empregada, na forma da Lei 9034/95, restringindo-se à lavagem desenvolvida por associações criminosas, quadrilha ou bando, mediante autorização judicial e sigilo, em autos apartados, desde que nos termos não vedados pela jurisprudência do STF. Não obstante Edmilson Bonfim invoque o princípio da proporcionalidade para viabilizar sua aplicação, é preciso regulamentação minuciosa do instituto e do procedimento, inclusive sobre as possibilidades de cometimento de infrações pelo infiltrado, requisitos subjetivos e objetivos, treinamento e rede de sua proteção, admissão e hipóteses de mudança de identidade, termo inicial e final do acompanhamento da organização, fiscalização do infiltrado, consequências legais e valor probatório do material obtido. Ainda que se recorra aos corolários da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, sua amplitude não permite sopesar e definir aspectos específicos da aplicação do instituto, que desafiariam atividade legiferante, sob pena de ofensa à separação de poderes. A vontade popular devidamente representada e não a solução exegética do intérprete deveria ser manifestada sobre temas tão relevantes de interesse público, com repercussão significativa sobre direitos fundamentais e rumos da política-criminal.
A nova lei sobre organizações criminosas, finalmente, disciplinou as medidas de investigação mais complexas e específicas, como a infiltração de agentes, ante o incremento da demanda recente por alternativas para elucidação de seus crimes, cujas características são peculiares na comparação como a criminalidade clássica, como o pacto de silêncio, as adversidades aos flagrantes e o temor de represálias por testemunhas. A despeito de algumas lacunas, a regulamentação poderá contribuir para conciliar a proibição de proteção deficiente de bens jurídicos valiosos para o convívio social com o respeito a garantias fundamentais, mormente processuais, reduzindo a margem para criatividade perniciosa e abusos ou arbitrariedades nas investigações.
IV - Compliance. Obrigações de informação e controle
No art. 9, a lei amplia o rol de obrigados, incluindo pessoas jurídicas ou físicas que exerçam negociação de balcão, promoção imobiliária, consultoria, contadoria ou assistência de compra e venda de imóveis, participações societárias, gestão de fundos e investimentos, criação de sociedades ou fundos, transações em atividades desportivas e artísticas, exercício de direitos de atletas, artistas e eventos, transporte e guarda de valores, juntas comerciais, registros públicos, comércio de alto valor de origem rural ou animal. A norma impõe cadastros no COAF (conselho de controle de atividades financeiras), o atendimento de requisições deste órgão, mediante sigilo, comunicação em 24 horas daquelas operações e das suspeitas. O art. 12, da lei, estabelece multa pecuniária para o descumprimento dessas obrigações não superior ao dobro da operação ou do lucro real até vinte milhões de reais, além da cassação ou suspensão da autorização para a atividade. O par. 2, substituiu a expressão negligência por culpa, encerrando suas outras modalidades, além do dolo, na inexecução dos citados deveres legais.
Como se percebe, o rol de obrigados e obrigações foi ampliado e foram cominadas sanções administrativas gravosas, aplicadas progressivamente. Em caso de reincidência, aplica-se a reprimenda seguinte, na escala de gravidade, presumindo-se a insuficiência da anterior, mormente sob o aspecto pedagógico. De qualquer modo, a importância do aperfeiçoamento do regime de compliance reside na intensificação do controle pelo Estado sobre os negócios dos cidadãos, especialmente daqueles aparentemente espúrios e o acesso oportuno a provas cruciais para elucidação de crimes nessa seara. Preocupa-se com a prevenção e desestímulo a tais práticas, sem descurar da reação no âmbito penal. Busca-se o auxílio da eficiência do Direito Administrativo Sancionador, inclusive por sua simplicidade e celeridade na responsabilização de infratores na comparação com a efetivação estrita de inúmeras garantias penais e processuais penais, que depende de procedimento mais complexo e longo.
Conclusões
Nosso ordenamento, portanto, sofreu inovações relevantes em quatro sentidos, no tocante ao combate à lavagem de dinheiro: ampliação típica fundamental, contemplando a lavagem de recursos oriundos de qualquer infração penal; aperfeiçoamento do regime de medidas assecuratórias, facilitando o alcance sobre bens e valores obtidos ou usados no cometimento de tais crimes, o depósito e destinação pelo Estado, como a alienação antecipada, e dificultando a realimentação da atividade delituosa; disciplina mais detalhada e eficaz dos instrumentos de investigação, especialmente a delação premiada e ação controlada; e aprimoramento do sistema decompliance, não se olvidando da relevância da prevenção e obtenção prévia de elementos para conhecimento e persecução de delitos de lavagem, estendendo o rol de obrigados e obrigações e agravando as sanções para a inobservância das respectivas normas. Assim, espera-se que o combate à lavagem de dinheiro recebe maior atenção dos operadores do direito e intensificação na prática das relações entre particulares e destes com o Estado, ceifando essencial fonte de ampliação ou sobrevivência de variegadas atividades delituosas. De nada adianta a reação a infrações isoladas, se as causas ou meios de sua difusão não forem debelados eficazmente, sobretudo quando contam com a organização de grupos criminosos.
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Gláucio Roberto Brittes de Araújo é mestre em Direito Penal pela PUC/SP, doutorando em Direito Penal pela USP, especialista em Direito Público pela EPM, graduado em Direito pela USP. É juiz de Direito criminal no Estado de São Paulo e professor assistente da pós-graduação da PUC/SP.