630 - Lavagem de dinheiro: reflexões sobre alterações de direito material da lei 12.683/12
GLÁUCIO ROBERTO BRITTES DE ARAÚJO [1] - Juiz de Direito
I - Introdução e escorço histórico
As reflexões sobre a aplicação mais apropriada da nova lei sobre lavagem de capitais (12.683/12) devem ser norteadas pela compatibilização dos princípios constitucionais, pela compreensão mais moderna e ampla das funções do Direito Penal e pela definição prévia do bem jurídico tutelado. Assim, ao analisar cada norma e inovação legislativa, não se deve abandonar a tarefa de sopesar a eficácia do combate a um fenômeno tão grave e lesivo ao interesse público, com vistas à efetiva proteção do bem jurídico albergado pela Constituição Federal, e a observância das garantias individuais, arduamente conquistadas ao longo dos últimos séculos, atentando-se, por conseguinte, para concretização, principalmente, dos princípios da legalidade, culpabilidade e da proporcionalidade.
Neste ponto, a tese da separação forte entre princípios e regras, como espécies de normas, aduz a qualidade à característica da abstração que os distingue, pressupondo graus de otimização na sua aplicação, quando confrontados por outros. Busca-se, então, a melhor solução, concebida como a aplicação mais eficaz de cada princípio, no caso concreto, com o menor sacrifício de outro. Assim, na regulamentação e na interpretação de determinada matéria, os princípios constitucionais penais devem ser conjugados com vistas ao resultado ótimo. As contribuições acadêmicas certamente são úteis, outrossim, na delimitação da intervenção penal na seara econômica e financeira, de sorte a conjugar eficiência do Estado e responsabilização penal justa, prestigiada por esta resistência veemente à banalização da ideia de pleno e crescente controle da sociedade por instrumentos de coerção e punição e permeada por um reação contundente à tendência atual de inflação legislativa e hipertrofia do Direito Penal, com perfil simbólico e arroubos de emergência.
Neste sentido, a substituição do rol de delitos prévios por toda e qualquer infração penal atende à proibição da insuficiência ou da proteção deficiente do bem jurídico, entendido como a ordem econômica e o sistema financeiro, em matéria de lavagem de dinheiro, sem violar direitos e garantias fundamentais. É cediço que o produto apto a macular tais subsistemas sociais não depende, inexoravelmente, da natureza da infração. A contravenção de jogo de azar, por exemplo, sobretudo quando disseminada, pode gerar recursos ilícitos vultosos, contaminando-os mais do que alguns crimes violentos.
A inovação legislativa, outrossim, obsta divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca da subsunção de determinadas condutas a um dos incisos do rol, contemplando todos crimes antecedentes. Rechaça as críticas preexistentes acerca da ausência na vetusta norma de delitos que precediam muitas atividades de lavagem, como estelionato, receptação, sonegação fiscal, jogo do bicho, etc.. Dispensa, ademais, a malfadada previsão genérica de atos de organização criminosa, cuja constitucionalidade era contestada por ofensa à taxatividade, corolário do princípio da legalidade. Argumentava-se que a organização não estava conceituada na lei, embora a Convenção de Palermo de 2000, acolhida pela nossa ordem jurídica, trouxesse conceito de grupo criminoso e alguns operadores do Direito reputassem ser viável também sua conceituação pelo intérprete.
A ampliação da fonte de lavagem observa, além disso, os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no combate a esta prática e à criminalidade organizada, dependente, em regra, do proveito econômico e do financiamento que tal processo escuso propicia. Acompanha a evolução da ordem jurídica no tema, a partir da Convenção de Viena de 1988, que se preocupava precipuamente com o combate ao proveito do tráfico, invertia o ônus da prova da origem ilícita dos bens relacionados à atividade e eliminava internacionalmente o sigilo bancário como óbice à apuração da lavagem, até as sucessivas recomendações do GAFI, mormente aquelas que ampliaram o rol de delitos prévios e debruçaram-se sobre o financiamento do terrorismo em 2001 e sobre o diagnóstico das técnicas de lavagem e identificação dos países omissos no seu combate.
A reforma em estudo segue, a propósito, ideias propaladas desde a Convenção de Estrasburgo de 1990, que exigia previsão, pelos ordenamentos nacionais, de crimes, de embargo e do confisco de bens e instrumentos do delito; que admitia a prova indiciária; e que facultava a cada país a decisão sobre a punição do lavador que praticara também o delito antecedente. Submete-se, em vários aspectos, ao espírito da Convenção de Palermo contra a delinquência organizada de 2000, que ampliava o conceito de antecedentes, previa investigações conjuntas, ação controlada, infiltração de agentes, vigilância eletrônica, recuperação de bens e responsabilização de pessoa jurídica. Coaduna-se, por fim, com as pretensões da Convenção de Mérida contra a Corrupção, inclusive com a ideia de devolução de todo dinheiro lavado ao Estado requerente.
A Lei 12.683/2012 amplia, além disso, os deveres de informar e obstar condutas com o desiderato de ocultação e dissimulação de recursos ilícitos. Não despreza a orientação de organismos internacionais, vislumbrada, por exemplo, na Diretiva 308/91 da Comunidade Européia, que almejava a prevenção do delito e a difusão de obrigações, sobretudo de identificação de clientes e comunicação de operações suspeitas, impostas a instituições financeiras e profissionais e a empresas prediletas para lavagem, como cassinos e imobiliárias.
Neste diapasão, a alteração em apreço introduz nosso sistema no de terceira geração, superando-se a restrição da lavagem aos bens e valores provenientes do tráfico ilícito de drogas e à ulterior previsão de rol fechado ou de classes de crimes, como aqueles mais graves. Assim, nosso ordenamento abandonou a orientação mista, que conjugava uma lista de delitos com uma clausula mais geral, atinente a quaisquer condutas de organização criminosa. Esta procedência da lavagem permaneceu como causa de aumento, ao lado da habitualidade, conferindo maior coerência ao diploma. Assim, nosso sistema deixa de considerar organização criminosa, concomitantemente, elemento do tipo e fator de majoração da reprimenda, como fazia a lei 9613/98, provocando críticas, inclusive de pretenso bis in idem.
II – Bem jurídico e proteção da nova lei
Ainda que superado o entendimento inicial de que a incriminação da lavagem tutela apenas o mesmo bem jurídico protegido pela tipificação da infração prévia, subsiste a controvérsia acerca de sua finalidade precípua, se proteção da Administração da Justiça ou se da ordem econômica e do sistema financeiro, sem prejuízo da posição mais cômoda e sedutora, embora menos precisa e convicta, no sentido de que seria pluriofensivo, incluindo até mesmo o reforço da tutela conferida pelo tipo do antecedente. A primeira posição depara-se com objeções doutrinárias convincentes, mormente a incabível restrição do interesse protegido à Justiça de um país, quando a matéria alcança repercussão global e vem sendo tratada por organismos internacionais há décadas. Outrossim, aquele bem jurídico (Administração da Justiça) já estaria contemplado por figuras típicas como favorecimento real, que açambarca a conduta de terceiro, e a noção de pós factum impunível, quando a ocultação ou dissimulação é praticada pelo próprio autor do antecedente, como seu exaurimento.
Ademais, se o objetivo da norma fosse resguardar apenas a Administração, careceriam de sentido toda a evolução dos acordos internacionais e compromissos assumidos pelo país e a nova redação do art. 8, da Lei 12.683/12 e seu parágrafo segundo, que regulam as medidas assecuratórias sobre bens oriundos de crime praticado no estrangeiro e dispõem sobre sua repartição entre o Estado requerente e o Brasil, na falta de tratado. Destarte, o princípio da dupla incriminação e outras diretrizes de cooperação em matéria criminal, justamente nesta seara estratégica, perderiam sua relevância. Não interessaria ao país, por exemplo, sancionar a entrada do dinheiro abundante, sujo e barato em sua economia, como faz nosso ordenamento, se a infração penal tivesse sido praticada no exterior e se apenas àquela Justiça fosse importante a localização do produto do delito.
Ao argumento de que várias condutas maculam o sistema econômico-financeiro e nem por isso seriam punidas, como o emprego do “dinheiro sujo” em despesas pessoais de quem o recebeu sem dolo, é possível opor a ponderação de que nem todas ameaças ou lesões a todos bens tutelados, em qualquer âmbito, justificam a incriminação das respectivas condutas. Exige-se a tipicidade subjetiva e objetiva, formal e material. Além de criar o risco juridicamente reprovado ao bem, o agente deve agir com vontade e consciência para ser responsabilizado. Somente o ataque ao bem jurídico passível de dissuasão pela norma autorizaria a imposição de reprimenda penal, à luz do princípio da culpabilidade. Satisfeitas estas condições, a introdução indesejada do objeto ou valor ilícito na econômica formal, mediante ocultação ou dissimulação, mesmo que não destinada a frustrar a Administração da Justiça, deve ser coibida e punida. Vale dizer, o que está ao alcance do Direito Penal para proteger a ordem econômica e o sistema financeiro pode e deve ser feito. Aliás, ainda que procedesse a tese de que objetivo da lei é resguardar a Administração da Justiça, nem por isso toda contribuição, mesmo não dolosa, para a ocultação e dissimulação do produto criminoso seria necessariamente incriminada. Assim, o fato de não caber responsabilidade penal por toda mácula ao sistema financeiro e à ordem econômica não os desqualifica como bem jurídico merecedor da respectiva tutela.
Destarte, muito mais importante do que apenas evitar a insubmissão do produto da infração ao controle da Justiça é impedir: 1- a concretização do proveito que a torna vantajosa; 2- a circulação de bens e dinheiro ilícitos, como se lícitos fossem; 3- eventual reintrodução e incremento da atividade delituosa; 4- a convalidação da mácula e das distorções provocadas no mercado formal, em detrimento da segurança jurídica, da transparência que deve reger as relações sociais e econômicas, da livre concorrência e da isonomia substancial, dos poderes de controle e da arrecadação da Fazenda, do equilíbrio dos fluxos internacionais de capital e das condições normais para flutuação das taxas de juros, bem como para estabelecimento de divisas e políticas monetárias. Enfim, se os reflexos da lavagem de dinheiro na sociedade são muitos mais graves e amplos do que a simples retirada dos vestígios e proveitos da infração do alcance do Judiciário, extrapolando fronteiras territoriais, não há como reduzir o interesse protegido à Administração da Justiça de um determinado país.
O risco de distorcer o foco da tutela penal é restringir significativamente o espectro de condutas típicas e antijurídicas, dificultar a responsabilização penal, condicionando-a a uma lesão à Administração da Justiça, facilitar o cometimento da lavagem de capitais, violar a proibição da insuficiência em matéria que recebeu do constituinte atenção peculiar e desprezar o sentido integral do princípio da proporcionalidade. A dupla face do garantismo enseja a compreensão de que a intervenção penal é imprescindível em searas de grande interesse público para efetivação, em última instância, de direitos fundamentais de todos os cidadãos, mormente o da segurança (art. 5, caput, da CF), que fatalmente estariam comprometidos pela disseminação da lavagem de dinheiro, tão relevante para o financiamento e incremento da criminalidade, mormente daquela organizada e incrustrada no aparato estatal. A leniência com a lavagem, ademais, seria assaz determinante para a falência da economia formal e do Estado, em detrimento de direitos básicos consagrados constitucionalmente. Formatado, aliás, pela Lei Maior, como Estado de Direito e Democrático, não pode admitir a atividade à margem da lei, em condições mais favoráveis do que aquelas obedientes à ordem jurídica, abdicando do efetivo desenvolvimento econômico-social, aceitando o esvaziamento da própria fonte de recursos estatais, indispensável para prover a satisfação dos direitos individuais e coletivos estabelecidos pela Carta Magna, e descuidando da segurança pública.
Assim relegados a um segundo plano, inclusive pela inoperância do sistema jurídico e pelas distorções profundas na ordem econômica, os direitos fundamentais não seriam assegurados, concretamente, pelo Estado. Não se deve empreender o garantismo somente contra a intromissão indevida e abusiva na esfera individual, como ocorria na inobservância de direitos de liberdade, patrimônio e pensamento, nos regimes autoritários, mas invocá-lo contra a omissão inaceitável em um Estado Democrático – não apenas de Direito – que atenta contra os direitos humanos e fundamentais de segunda e terceira geração.
De outro lado, para evitar a eventual banalização da responsabilização penal decorrente da tipificação da lavagem de qualquer bem, concebido como objeto, direito ou valor, proveniente de toda infração, mesmo de menor potencial ofensivo ou repercussão irrisória, são úteis os princípios da insignificância e os critérios de imputação objetiva, limitando e adequando aquela intervenção ao princípio de que deve ser mínima, à culpabilidade e à proporcionalidade.
Por fim, o recente Anteprojeto de Reforma do Código Penal estabelece como antecedente qualquer crime, ao invés de infração penal, embora o faça em consonância com a eliminação das contravenções penais do nosso sistema. Não se deve olvidar, de todo modo, que qualquer ato tipificado pela aludida lei deve estar compreendido em uma etapa da ocultação ou dissimulação e que urge conceber a lavagem como um processo, não se identificando com mero ato isolado de exaurimento do proveito do crime prévio.
III – Condutas tipificadas pela lei
O caput do art. 1, da Lei 9613/98, modificada pela Lei 12.683/12, tipifica as condutas de ocultar e dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores, provenientes direta ou indiretamente de infração penal. O crime continua formal e comissivo, ressalvada a possibilidade de omissão na localização, movimentação ou disposição. O dolo é direito e admite o eventual, embora alguns doutrinadores, como Edilson Mougenot Bonfim, exijam o fim específico de inserir o bem – sentido amplo – no sistema econômico-financeiro. Há corrente minoritária também que reputa o delito permanente, pois a ocultação seria mantida, após a operação. A tentativa é de rara ocorrência, como na hipótese de detenção do agente, quando comparece ao banco para depositar o dinheiro escuso em conta fictícia. As dificuldades, em situações de tal jaez, de perquirir e demonstrar o elemento subjetivo, todavia, são ainda maiores.
O parágrafo primeiro do art. 1, com alterações da Lei 12.683/12, comina as mesmas penas a diversos atos, sobretudo de mercado, realizados com o fim de ocultar ou dissimular a utilização - e não os próprios bens, direitos ou valores provenientes de infração penal. A previsão do dolo específico é fundamental para observância mais fiel dos princípios da intervenção mínima e da culpabilidade, evitando-se que qualquer contratante responda objetivamente por ter realizado negócio com o detentor do dinheiro ou objeto oriundo de infração penal, sem conhecimento desta e sem vontade de contribuir para a lavagem. Se assim não fosse, o comerciante que se limita a vender um veículo seria punido, ainda que ausentes evidências do intuito do comprador de branquear capital escuso e vontade daquele de aderir à conduta típica. Não lhe cabe, na verdade, investigar a atividade e a origem dos recursos de cada potencial consumidor, tanto que as obrigações de informar e instrumentos de compliance estão disciplinados e delimitados na lei, não tendo, o Brasil, seguido orientação de alguns países de vincular amplamente as empresas, mas mantido rol de obrigados, geralmente no exercício de atividades mais estratégicas e propícias à lavagem, mormente das instituições financeiras. A doutrina majoritária reputa o crime formal e comum. Não se exige a entrega, por exemplo, mas apenas que o autor saia da inércia, com evidências da vontade de lavar o produto ilícito.
O parágrafo segundo do art. 1, da Lei de Lavagem, tipifica atos de quem utiliza em atividade econômica ou financeira, bens, valores ou direitos provenientes de infração penal, não tendo permanecido na redação final a expressão do projeto “ou que deveria saber provenientes”, que contemplava, claramente, o dolo eventual. A norma coíbe, principalmente, a abertura de empresas de fachada ou recebimento de produto do crime para aplicação em pessoa jurídica. Cumpre relembrar que, na hipótese de substituição, todo o resultado (bem ou valor revestido de aparente licitude que substituiu o criminoso) pode ser apreendido e, na mescla, deve haver a separação. Como se percebe, exige-se maior responsabilidade e redobradas cautelas de quem emprega os recursos do que daqueles que realizam negócios rotineiros ou contatos eventuais com o empreendedor da lavagem, deixando, a lei, de exigir dolo específico, no segundo parágrafo.
Na vigência da Lei 9.613/98, já se discutia, ante a exclusão do dolo eventual pelo texto final, se bastaria a percepção genérica da ilicitude ou se seria necessária a ciência da subsunção da conduta antecedente a determinado inciso do art. 1, do referido diploma. Havia intensa controvérsia na doutrina. Sergio Moro, por exemplo, contentava-se com a consciência do agente de que o bem provinha de alguma atividade criminosa, enquanto Edilson Bonfim preconizava o conhecer específico por causa da opção do legislador pelo rol, ao contrário de sistemas como o da Espanha. Esta tendência agora deve ser revertida pela reforma, pois é prescindível a certeza do enquadramento da conduta anterior a uma das figuras típicas predeterminadas. É suficiente, então, o conhecimento da relação daqueles bens com uma infração penal, o que realmente propicia uma tutela mais ampla e eficaz ao bem jurídico. Deve ocorrer, contudo, antes ou durante a execução de alguma das condutas do parágrafo. O uso do bem na atividade econômica ou financeira ou a participação em grupo, associação ou escritório dedicado à lavagem, outrossim, prescinde de dolo específico. Ao contrário do parágrafo primeiro, não demanda o intuito final de ocultar ou dissimular. Bastaria a contribuição para tal processo escuso.
As penas cominadas pela lei anterior são mantidas, assim como a previsão despicienda da tentativa e a inexistência de infrações culposas. Nos três grupos, os crimes são comuns, descabendo a tese de pos factum não punível ou de inexigibilidade de conduta diversa para o autor da infração antecedente, tendo em vista a diversidade de bens jurídicos, incompatível com a consunção. Ao contrário da receptação, por exemplo, em que o patrimônio é tutelado e já foi lesado pelo furtador ou roubador, a lavagem afeta outro bem jurídico (ordem econômica e sistema financeiro), justificando nova sanção ao agente, que, aliás, aderiu ao plus da ocultação e dissimulação para reintrodução do bem, em sentido amplo, na economia e no meio social, com aparência de licitude. Nosso sistema não seguiu o italiano e o alemão. Todavia, algumas condutas, como receber e adquirir, não podem ser realizadas faticamente pelo autor do delito produtor. A impossibilidade material não se confunde com a jurídica e não afeta as demais espécies de lavagem.
Preserva-se ainda a causa de aumento para a forma reiterada (habitual) ou desenvolvida por intermédio de organização criminosa. Com a eliminação do rol que a previa em um dos incisos, a disciplina ganha coerência, embora persista a possibilidade de controvérsia acerca do conceito. Ainda haverá quem invoque a inconstitucionalidade, desta feita não para exclusão do delito, mas da majorante. Subsiste útil, contudo, a definição da Convenção de Palermo e o Decreto 231/03. A organização seria a reunião de três ou mais pessoas para infrações previstas na convenção para obter benefício material, inclusive indireto. A seguir a doutrina, o parágrafo que contempla a majoração continuará aplicável, contudo, apenas à cabeça do artigo, não incidindo sobre as modalidades de lavagem dos parágrafos antecedentes. Não se aplica, ademais, se a organização criminosa praticou apenas a infração antecedente, sendo indispensável sua atuação na própria lavagem.
A Lei 12.683/12 perdeu a oportunidade, de outro giro, de eliminar dispositivo inconstitucional, consistente na tipificação de mera participação em escritório, cuja atividade principal seja de lavagem. Com efeito, a norma não descreve conduta tipifica, afrontando o princípio da legalidade e seu corolário da taxatividade, e encerra responsabilidade objetiva, violando o princípio da culpabilidade. No nosso sistema, é inconcebível punir quem não aderiu, com vontade e consciência, à lavagem e não contribuiu para a cadeia causal. Ausente também dever legal de evitar o resultado, não há delito omissivo, até porque um simples integrante de quadro profissional não poderia obstar a ação de um superior hierárquico, por exemplo. Sem tipicidade objetiva e subjetiva, não se cogita de sanção penal. Ainda que se considerasse típico o comportamento – que sequer está descrito minuciosamente – incidiria excludente de ilicitude, como a obediência a ordem de superior hierárquico, ou de culpabilidade, como a inexigibilidade de conduta diversa.
Enfim, estas são as alterações mais relevantes da Lei 12.683/12, no tocante ao direito material, atendendo, em linhas gerais, aos reclamos de instrumento mais eficaz para combate a um crime tão comum e grave, hodiernamente, mas impregnado da sensação de impunidade. As autoridades, sobretudo os juízes, terão à disposição um sistema normativo mais completo para aplicação, com vistas a tutelar de maneira mais eficiente bens jurídicos tão valiosos e dotados de dignidade constitucional, atinentes a interesses coletivos e difusos, sobre os quais se intensificaram as atenções do Direito Penal, nos últimos tempos, como não poderia deixar de ocorrer. A ordem econômica e o sistema financeiro, cujas perturbações adquirem repercussão supranacional, merecem zelo peculiar dos três Poderes constituídos, como defesa e efetivação do Estado Democrático de Direito, subvertendo-se a cultura de restrição da ingerência penal, na prática, à proteção de interesses individuais, ainda que prestigiados pela sociedade, ou coletivos, também relevantes, mas desprovidos da mesma magnitude. Em suma, urge aperfeiçoar e ampliar a aplicação do novo instrumental normativo para combater mal que tanto aflige nossa sociedade nos dias de hoje, com perspectiva de comprometer pilares do Estado e dos direitos fundamentais.
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[1] Mestre em Direito Penal pela PUC/SP, especialista em Direito Público pela EPM, graduado em Direito pela USP. Juiz de Direito Criminal no Estado de São Paulo e professor assistente da pós-graduação da PUC/SP