636 - A inquirição das testemunhas e o artigo 212 do Código de Processo Penal


FELIPE POYARES MIRANDA [1] - Juiz de Direito

 

 

Sinopse: A inquirição das testemunhas e o artigo 212 do Código de Processo Penal

 

Synopsis: The witnesses and Article 212 of the Criminal Procedure Code

 

Tema que tem causado tergiversação na doutrina e jurisprudência, após a reforma do art.212 do CPP pela Lei nº Lei nº 11.690, de 09.06.2008, é o referente à forma de inquirição de testemunhas na audiência de instrução e julgamento.

                                              

Passemos à análise da quaestio iuris proposta, partindo dos ensinamentos da doutrina, a seguir elencados.

                                              

Guilherme de Souza Nucci in Código de Processo Penal Comentado, 8ª edição, revista, atualizada e ampliada, 2008, Ed. RT, p. 479/480 leciona que:

 

"69. Reperguntas diretas às testemunhas: a Lei 11.690/2008 eliminou o sistema presidencialista de inquirição das testemunhas, vale dizer, todas as perguntas, formuladas pelas partes, deviam passar pelo juiz, que as dirigia a quem estivesse sendo ouvido. Em outros termos, antes da reforma processual, quando a parte desejasse fazer uma repergunta, dirigiria a sua indagação ao magistrado que a transmitiria à testemunha, com suas próprias palavras. De fato, era um sistema vetusto e lento. Afinal, a testemunha havia entendido perfeitamente o que fora perguntado pela acusação ou pela defesa, bastando-lhe responder. Mesmo assim, era orientada a esperar que o magistrado repetisse a tal pergunta para que, então, pudesse dar sua resposta. Tratava-se de uma precaução para que as partes não induzissem as testemunhas ou não fizessem indagações despropositadas ou ofensivas. De todo modo, o sistema era anacrônico. Imaginemos a modernidade do processo informatizado, com os depoimentos colhidos em fita magnética. Para que ouvir duas vezes a mesma indagação? Desnecessário. Basta que a parte faça a repergunta diretamente à testemunha. Se houver alguma pergunta indevida, deve o juiz indeferi-la. Para isso, está o magistrado presente, controlando os atos ocorridos em audiência, sob sua presidência.Tal inovação, entretanto, não altera o sistema inicial de inquirição, vale dizer, quem começa a ouvir a testemunha é o juiz, como de praxe e agindo como presidente dos trabalhos e da colheita da prova. Nada se alterou nesse sentido. A nova redação dada ao art. 212 manteve o básico. Se, antes, dizia-se que "as perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à testemunha", agora se diz que "as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha (...)". Nota-se, pois, que absolutamente nenhuma modificação foi introduzida no tradicional método de inquirição, iniciado sempre pelo magistrado. Porém, quanto às perguntas das partes (denominadas reperguntas na prática forense), em lugar de passarem pela intermediação do juiz, serão dirigidas diretamente às testemunhas. Depois que o magistrado esgota suas indagações, passa a palavra à parte que arrolou a pessoa depoente. Se se trata de testemunha da acusação, começa a elaborar as reperguntas o promotor, diretamente à testemunha. Tratando-se de testemunha da defesa, começa a reinquirição o defensor, diretamente à testemunha. Após, inverte-se. Finalizadas as perguntas do promotor à testemunha de acusação, passa-se a palavra ao defensor (se não houver assistente de acusação, que tem precedência). O mesmo se faz quando o defensor finaliza com a sua inquirição; passa-se a palavra ao promotor e, depois, ao assistente, se houver."

 

Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, in  Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito, Ed. RT, 2008, p. 302, comentando a nova redação do art. 212, parágrafo único do Código de Processo Penal esclarecem que:

 

"A leitura apressada deste dispositivo legal pode passar a impressão de que as partes devem, inicialmente, formular as perguntas para que, somente a partir daí, possa intervir o juiz, a fim de complementar a inquirição. Não parece ser exatamente assim. Basta ver, por exemplo, a redação do art. 188 do CPP, a determinar que, no interrogatório, de início as perguntas são formuladas pelo juiz que, depois, consultará às partes se há algo a ser esclarecido. E mesmo a atual redação do art. 473 do CPP, que, no plenário do júri, determina a primazia do juiz de colher o depoimento da vítima e das testemunhas, para depois facultar às partes a formulação de perguntas. Afrontaria mesmo nossa tradição conceder-se, desde logo, a palavra às partes, para que o juiz, por último, pudesse perguntar á testemunha. Melhor que fiquemos com a fórmula tradicional, arraigada na "praxis" forense, pela qual o juiz dá início às suas indagações para, depois, facultar às partes a possibilidade de, também, inquirirem a testemunha, desta feita diretamente, sem a necessidade de passar, antes pelo filtro judicial".

 

Damásio E. de Jesus, in Código de Processo Penal Anotado, 23ª Ed., revista, atualizada e ampliada de acordo com a reforma do CPP, Ed. Saraiva, 2009, p.191, pondera que:

 

“(...) A lei nº 11.690/08 modificou a maneira como são elaboradas as perguntas às testemunhas (e ao ofendido). Antes da lei, adotava-se o sistema presidencialista ou do exame judicial, em que as partes formulavam suas perguntas ao Juiz, o qual, depois de verificar sua pertinência, as reperguntava às testemunhas. Agora, as questões serão formuladas diretamente às testemunhas, cabendo ao Juiz indeferir as que puderem induzir a resposta ou que não guardarem relação com a causa ou, ainda, que representarem repetição de outra já respondida. De ver que, pelo disposto no parágrafo único, o Juiz será o último a formular perguntas, abordando pontos não esclarecidos. Entendemos que o magistrado, em que pese a redação do preceito citado, pode formular perguntas a qualquer momento, até porque tal proceder não terá o condão de gerar nulidade processual. (...)”

                                              

Este autor tem o entendimento que é lícito ao Juiz formular perguntas às testemunhas e ao ofendido a qualquer tempo, inclusive antes das perguntas feitas pelas partes, sendo que, quando das indagações feitas pela acusação e pela Defesa (e vice-versa) às testemunhas, será observado o sistema de inquirição direta (cross examination), sem intervenção do Juiz, vez que não vigora mais no processual penal, no ponto, o sistema presidencialista.

                                              

Contudo, de se ressaltar que o Magistrado não ficou, após a reforma, impedido de fazer suas perguntas antes daquelas formuladas pelas partes. Isto porque o parágrafo único do art.212 do CPP, na redação da lei nº 11.690/08 menciona que “sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição”.

                                              

Há, pois, mera faculdade legal (e não obrigação, vez que a lei não utilizou expressões do tipo ‘deverá’, ou ‘o Juiz fica obrigado a apenas complementar a inquirição feita pelas partes’) para que o Juiz, ou atue em complemento à atividade de inquirição das testemunhas feita pelas partes ou assuma postura mais ativa em busca da verdade real (o que se deseja em um processo penal democrático), formulando suas perguntas antes das partes, como já tradicional em nosso ordenamento jurídico.

                                              

A postura do Juiz inerte, desinteressado na produção de provas, é incompatível com o devido processo legal (art.5º, LIV, da CF/88).

                                              

Outrossim, há que se fazer interpretação sistemática acerca do tema, não se podendo analisar o art.212 do CPP, na redação que lhe foi atribuída pela Lei nº 11.690/08 de forma isolada.

                                              

Com efeito, o art.222 do CPP, que não foi alterado pela lei nº 11.690/08, dispõe que “a testemunha que morar fora da jurisdição do juiz será inquirida pelo juiz do lugar de sua residência, expedindo-se, para esse fim, carta precatória, com prazo razoável, intimadas as partes”.

                                              

Logo, permaneceu menção expressa da inquirição da testemunha feita pelo Juiz, sem que se fizesse menção às perguntas a serem formuladas pelas partes, no caso de oitiva através de carta precatória.

                                              

Contudo, como é sabido, apesar de não haver menção às perguntas feitas pelas partes no referido dispositivo (sendo que o § 3º do art.222, na redação da Lei nº 11.900/09 apenas faz menção à presença do defensor no caso de utilização de videoconferência) é possível às partes formularem perguntas quando a testemunha é ouvida por precatória.

                                              

Seria ilógico, por outro lado, facultar ao Juiz a formulação de perguntas (inquirição) às testemunhas quando estas são ouvidas em outro Juízo e vedar-lhe a mesma providência quando a testemunha é ouvida na Comarca em que tramita a ação penal, mormente diante da introdução do princípio da identidade física, preconizado pelo parágrafo segundo do art.399 do CPP, na redação determinada pela lei nº 11.719/08, posterior à lei nº 11.690/08.

                                              

Além disso, deve ser a testemunha inicialmente inquirida pelo Magistrado, antes de se abrir às partes a possibilidade de formulação de questões, até para que se mantenha a imparcialidade do Julgador.

                                  

Com efeito, dependendo da linha argumentativa seguida pelas partes, ainda que com controle judicial, poderá ser construída uma versão dos fatos que mais se aproxime da pretensão daquele que formula as perguntas, o que deve ser evitado, até para que a verdade real seja esclarecida. Com o início das perguntas feito pelo Juiz, não se vislumbra nenhum prejuízo, seja comprovado, seja presumido, não se podendo falar em nulidade, nos termos do art.563 do CPP.

                                              

Ainda que se entenda que a introdução do § único ao art.212 do CPP estabeleceu a obrigação do julgador de necessariamente apenas complementar as indagações feitas pelas partes às testemunhas, impedindo-o de ter contato direto com a prova testemunhal, vez que obrigatoriamente suas questões deverão ser intermediadas pelas questões do MP e da Defesa (e vice-versa), entendo que referida obrigação foi derrogada pela lei nº 11.719/08.

                                              

Isto porque a Lei nº 11.719/08 (posterior à lei nº 11.690/08) introduziu (art.399, § 2º, do CPP) no Processo Penal brasileiro o princípio da identidade física do juiz.

                                              

Para que referido princípio tenha eficácia, pertinência e total aplicação, deverá haver incidência do princípio da imediatidade, ou seja, contato direto do Juiz com as partes e a prova, sem intermediários (no caso, sem perguntas obrigatoriamente feitas pelo MP e Defesa e vice-versa, antes das perguntas do Juiz).

                                              

Julio Fabbrini Mirabete in Processo Penal, 16ª Ed., Ed. Atlas, 2004, p.47/48 leciona que:

 

“(...) Pelo princípio da oralidade as declarações perante os juízes e tribunais só possuem eficácia quando formuladas através da palavra oral, ao contrário do procedimento escrito. Como conseqüência desse princípio se compreende a necessidade de concentração, que consiste em realizar todo o julgamento em uma ou poucas audiências a curtos intervalos, como ocorre, por exemplo, em parte, no julgamento perante o Tribunal do Júri ou nas Cortes de 2º e 3º grau. Outro corolário da oralidade é a imediatidade (ou imediação), consistente na obrigação de o juiz ficar em contato direto com as partes e as provas, recebendo assim, também de maneira direta, o material e elementos de convicção em que se baseará o julgamento. Por fim, para que se estabeleça o que se denomina genericamente de ‘procedimento oral’, requer-se a identidade física do juiz, que é a vinculação do magistrado aos processos cuja instrução iniciou.(...)” destaques nossos

                                              

Não se duvida, até pela simples leitura dos artigos 400 a 405 do CPP, após a reforma determinada pela lei nº 11.719/08, que foi adotado o procedimento predominantemente oral, com concentração de todos os atos em audiência (art.400, § 1º do CPP), com a conseqüente introdução do princípio da identidade física do juiz, sendo que para este existir e ter eficácia, o Magistrado deverá ter contato direto com a prova testemunhal, sem intermediários (MP e Defesa).

                                              

Por isto, com a lei nº 11.719/08, restou derrogado o art.212 do CPP, especificamente o parágrafo único do dispositivo. Aplica-se, analogicamente ao caso e com esteio no art.3º do CPP, o disposto no art.446, II, do CPC (“compete ao juiz em especial: II – proceder direta e pessoalmente à colheita das provas.”).

                                              

Calha à fiveleta a invocação do comentário de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, in Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante, 10ª Ed., 2007, Ed. RT, p.395:

 

“(...) Prova oral. O pressuposto para a aplicação do princípio da identidade física do juiz é a realização de prova oral em audiência, onde o magistrado tem participação ativa na tomada de dados que podem influenciar sua convicção. A sentença proferida por outro juiz, diverso daquele que presidiu a audiência, só acarreta nulidade se tiver havido colheita de prova oral naquela audiência (JTACivSP 109/356). No mesmo sentido: TRF-5ª, JSTJ 3/430).” Destaques nossos

                                              

A jurisprudência do Colendo STJ tem se orientado no sentido de que, em caso de inversão da ordem de oitiva na audiência de instrução, sendo as perguntas inicialmente realizadas pelo Juiz, haverá, em tese, nulidade relativa, a qual demanda comprovação de prejuízo.

                                              

Neste sentido, cito o seguinte precedente:

 

“HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. DIREITO PENAL. TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. INQUIRIÇÃO DAS TESTEMUNHAS. INVERSÃO DA ORDEM PREVISTA NO ART. 212 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NULIDADE RELATIVA. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. BIS IN IDEM. INOCORRÊNCIA. MINORANTE PREVISTA NO § 4.º DO ART. 33 DA NOVA LEI DE TÓXICOS INAPLICÁVEL. DEDICAÇÃO À ATIVIDADE CRIMINOSA RECONHECIDA. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO, NO ÂMBITO DO WRIT. ORDEM DE HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDA. 1. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal e ambas as Turmas desta Corte, após evolução jurisprudencial, passaram a não mais admitir a impetração de habeas corpus em substituição ao recurso ordinário, nas hipóteses em que esse último é cabível, em razão da competência do Pretório Excelso e deste Superior Tribunal tratar-se de matéria de direito estrito, prevista taxativamente na Constituição da República. 2. Esse entendimento tem sido adotado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça também nos casos de utilização do habeas corpus em substituição ao recurso especial, com a ressalva da posição pessoal desta Relatora, sem prejuízo de, eventualmente, se for o caso, deferir-se a ordem de ofício, em caso de flagrante ilegalidade. 3. Conforme a orientação deste Superior Tribunal de Justiça, a inquirição das testemunhas pelo Juiz antes que seja oportunizada a formulação das perguntas às partes, com a inversão da ordem prevista no art. 212 do Código de Processo Penal, constitui nulidade relativa. Assim, sem a demonstração do prejuízo, nos termos exigidos pelo art. 563 do mesmo Codex, não se procede à anulação do ato. No caso, não restou demonstrada, a partir dos documentos constantes dos autos, a ocorrência de prejuízo concreto à Paciente decorrente da pretensa nulidade. 4. Por se tratarem de condutas autônomas e tipos penais distintos, não há bis in idem na aplicação da causa de aumento da pena do art.40, inciso VI, da Lei n.º 11.343/06, concomitantemente aos crimes de tráfico e de associação para o tráfico de drogas. Do mesmo modo, é cabível a aplicação da majorante de o crime envolver ou visar a atingir criança ou adolescente em delito de associação para o tráfico de drogas com menor de idade. Precedentes. 5. Inaplicável a causa de diminuição de pena inserta no § 4.º do art. 33 da Lei 11.343/2006 na hipótese, na medida em que, conforme consignado pela sentença condenatória, mantida pelo acórdão de apelação impugnado, a ré não preenche os requisitos legais, tendo em vista se dedicar à atividade criminosa. 6. Ordem de habeas corpus não conhecida”. (STJ, HC 237.782/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 05/08/2014, DJe 21/08/2014) Destaques nossos

                                              

Por todos estes fundamentos, inclusive adotando-se como razão de decidir as judiciosas lições dos brilhantes doutrinadores acima mencionados, entendo que a inquirição das testemunhas, no Processo Penal Brasileiro, continua sendo realizada inicialmente pelo Magistrado, abrindo-se, após, às partes, a possibilidade de formulação de perguntas diretas ao ofendido e às testemunhas, observando-se o sistema da cross examination, tal como previsto no art.212, caput, do CPP, na redação da lei nº 11.690/08.

                       


Bibliografia
:

 

- ANDRADE NERY, Rosa Maria de; NERY JUNIOR, Nelson. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. São Paulo: Ed. RT, 10ª Ed., 2007.                               

                       

- BATISTA PINTO, Ronaldo; CUNHA, Rogério Sanches; GOMES, Luiz Flávio. Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito. São Paulo: Ed. RT, 2008.

                       

- JESUS, Damásio E. de. Código de Processo Penal Anotado. São Paulo: Ed. Saraiva, 23ª Ed., revista, atualizada e ampliada de acordo com a reforma do CPP, 2009.

                       

- MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Ed. Atlas, 16ª Ed., 2004.

                       

- NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Ed. RT, 8ª edição, revista, atualizada e ampliada, 2008.



[1] Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Mestrando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

 


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