638 - Jurisprudência do STF e (in)constitucionalidade do tráfico privilegiado

 

THIAGO BALDANI GOMES DE FILIPPO [1] - Juiz de Direito

 

        

O art. 5o, XLIII, da Constituição da República, expressamente proíbe a concessão de fiança, graça e anistia aos crimes definidos por lei como hediondos e aos assemelhados, terrorismo, tortura e o tráfico de entorpecentes e drogas afins. Ao vedar benefícios pontuais, parece-nos que a intenção do constituinte foi franquear à legislação infraconstitucional a possibilidade de recrudescer o tratamento penal a essas modalidades de delitos, mediante a fixação de penas condizentes à gravidade das infrações e tratamentos mais severos do que àqueles dispensados aos demais tipos penais, sem, contudo, implicar o aniquilamento das garantias constitucionais penais e processuais penais.

        

Para se concretizar essa diretriz constitucional, foi editada a Lei 8.072/90, que em sua redação original previa uma série de medidas mais gravosas para os crimes que etiquetou como hediondos e assemelhados: (1) vedação de concessão de anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória; (2) cumprimento da pena integralmente no regime fechado; (3) a excepcionalidade de o réu poder recorrer em liberdade; (4) prazo diferenciado para as prisões temporárias.

        

Pois bem. Com o passar do tempo, a jurisprudência, em especial do Supremo Tribunal Federal, passou a reconhecer a inconstitucionalidade de grande parte das vedações acima citadas. Em atenção ao princípio da individualização da pena (art. 5º, XLVI, CF), o Pretório Excelso decidiu que seria inconstitucional o cumprimento de pena integralmente no regime fechado (HC 82.959-SP), dando ensejo à edição da Lei 11.464/2007, que impôs a fixação de regime inicialmente fechado para as condenações relativas a esses crimes, além de estabelecer patamares diversos para a progressão de regimes de pena (2/5 para os apenados primários; 3/5 para os reincidentes). Em seguida, a jurisprudência do STF evoluiu para firmar entendimento de que essa fixação automática do regime inicial fechado também representa afronta à Constituição (HC 111.840-ES). Igualmente, a Suprema Corte reconheceu a desconformidade com o texto constitucional da vedação à liberdade provisória (HC 104.339-SP), face ao princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF).

        

Até o presente momento, contudo, a Corte vem chancelando as demais regras especiais, relativamente à diversidade de prazos e patamares para a concessão de progressão de regime e do livramento condicional (art. 83, V, do CP). Ao fazê-lo, de maneira genérica, o STF implicitamente reconhece não padecer de qualquer vício de inconstitucionalidade a lei que estabelece, aprioristicamente, regras mais severas aos crimes hediondos e assemelhados, desde que estejam em conformidade com os valores veiculados pelos princípios constitucionais e processuais penais.

        

Por outro lado, chama a atenção o fato de serem previstas penas relativamente altas para os crimes hediondos e assemelhados, à exceção do denominado tráfico privilegiado, previsto no art. 33, par. 4o, da Lei 11.343/2006. Nos termos desse dispositivo, se o traficante é primário, portador de bons antecedentes e não integra organização criminosa, tampouco se dedica a atividades criminosas, sua pena poderá (leia-se: deverá) ser reduzida de 1/6 a 2/3. Tem-se entendido que o critério para o patamar da redução seja a quantidade de droga apreendida (e.g., STJ, HC 114.070-MS; HC 151.676-SP; HC 134.841-SP).

        

Assim, se o sujeito for primário e tiver consigo, para a entrega ao consumo de terceiros, pequena quantidade de droga, que enseje a diminuição da pena no máximo legal, ele será condenado ao cumprimento de 1 ano e 8 meses de reclusão. Em atenção à jurisprudência do STF, provavelmente, ser-lhe-á imposto o regime inicial aberto, se estiver preso provisoriamente deverá ser automaticamente colocado em liberdade, e a sanção penal então será convertida em duas penas restritivas de direitos, ou uma restritiva de direitos e multa, a teor do art. 44, par. 2o, do Código Penal (haja vista a Resolução n. 5/2012 do Senado Federal que, valendo-se do procedimento do art. 52, X, da CF, conferiu eficácia vinculante à decisão do STF no bojo do HC 97.256-RS, que reconheceu a inconstitucionalidade da vedação à conversão da pena privativa de liberdade em penas restritivas de direitos para o crime de tráfico de drogas).

        

Curioso notar que o crime de tráfico privilegiado mantém sua natureza hedionda (Súmula 512 do STJ: “A aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 não afasta a hediondez do crime de tráfico de drogas”), mas, concretamente, quando é aplicada a maior causa de diminuição, não há muita diferença entre ele e os crimes de menor potencial ofensivo, assim entendidos aqueles cuja pena máxima seja igual ou inferior a 2 anos, cumulada ou não com multa, nos termos do art. 61 da Lei 9.099/95, já que, em relação a estes, como dissemos, a pena aplicada poderá, inclusive, ser superior àquela cominada ao tráfico privilegiado. Além disso, a depender do caso, por exemplo na hipótese de reincidência, poderá ser imposto regime diverso do aberto para os apenados por crimes de menor potencial ofensivo, ao passo que, sob a ótica do STF, nada impede que seja imposto o regime aberto para um condenado pelo crime de tráfico de drogas.

        

Não cremos que a possibilidade de tutelas penais muito semelhantes ao cometimento de crimes que apresentem naturezas tão dispares se coadune com o espírito constitucional. Se, como vimos, para os crimes hediondos a Constituição recrudesce o tratamento, para as infrações de menor potencial ofensivo a Lei Maior enfatiza a aplicação de procedimentos orais sumaríssimos, com os olhos voltados para a aplicação de medidas despenalizadoras (art. 98, I). Nesse passo, da mesma forma que se afiguraria inconstitucional se conferir o tratamento destinado aos crimes hediondos àqueles de menor potencial ofensivo, também cremos representar afronta a Constituição se conferir o tratamento destes àqueles. Esta ideia representa conformidade à máxima da proporcionalidade, representada não só pela proibição do excesso, mas também pela vedação de proteção deficiente (STRECK, 2005, p. 180).[2]

        

Obviamente, qualquer acusado pela prática de qualquer crime, seja ele hediondo ou não, deve gozar de todas as garantias materiais e processuais inerentes à cláusula do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF), presunção de inocência e individualização da pena. Assim, concordamos com a jurisprudência do STF ao admitir a possibilidade de liberdade provisória aos indivíduos processados por crimes hediondos e assemelhados, mesmo após a prolação de sentença condenatória recorrível. Pela mesma razão, nada impediria, a nosso ver, a concessão de fiança, se não houvesse vedação expressa da concessão dessa garantia real pelo constituinte originário e, assim, insusceptível de ver reconhecida a sua inconstitucionalidade, em atenção ao princípio da unidade, por não existir a possibilidade de normas constitucionais inconstitucionais (BARROSO, 2011, p. 327).[3] Todavia, acreditamos que a imposição legal de maior recrudescimento penal que surtisse efeitos após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (regime inicial/integral fechado, vedação de conversão em penas alternativas, prazos mais longos para progressões de regimes e concessões de livramentos condicionais, vedações de outros benefícios como indulto, graça etc.) se amoldaria perfeitamente ao espírito da Constituição, que objetivou se conferir tratamento legal diferenciado aos crimes hediondos e assemelhados.



[1] Juiz da 2ª Vara Criminal da comarca de Assis. Juiz docente formador e coordenador do Núcleo de Estudos Brasil-Estados Unidos da Escola Paulista da Magistratura. Mestre em Direito Comparado pela Samford University, Cumberland School of Law. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do norte do Paraná.

[2] "Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o resultado do sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem como conseqüência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador."(Streck, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da Ajuris, Ano XXXII, nº 97, marco/2005, p.180).

[3] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo.  3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 327.


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